Black Money: — Por que não fazemos o mesmo por aqui?

Impressões sobre o texto mais triste que li nos últimos tempos

Suzane Jardim
9 min readApr 26, 2017

Já faz algum tempo que o Portal Geledés republicou um texto chamado Precisamos falar sobre o “Black Money”. Esse aqui:

Só hoje esse texto chegou ao meu conhecimento e, sinceramente foi uma das leituras mais dolorosas que fiz recentemente.

Podem ler o texto se quiserem pois a partir de agora é com ele que irei dialogar.
Lá vai

Cornel West tem um capítulo no livro Questão de Raça, de 1994, sobre a crise das lideranças negras.
Ele questiona os motivos pelos quais mesmo após toda a luta por direitos, todas as denúncias, toda a mobilização dos anos 60 e 70 etc, os negros continuavam sendo mortos, discriminados e encarcerados, porém agora sem que existissem lideranças de massa como foram Malcolm X e Luther King, por exemplo.

Ele aponta vários motivos pra isso, mas todos giram em volta de um argumento central: segundo West, as lideranças de massa acabaram porque não havia mais líderes que dialogassem com os mais pobres verdadeiramente e permitissem uma união para a luta. Isso porque, após os direitos civis, cresceu uma classe média e alta negra que se importava muito em ocupar espaços, expandir ganhos econômicos entre os seus e ter grandes empresários negros como representantes. Esse grupo acabava por ignorar que o acúmulo de capital no sistema em que vivemos só se sustenta com a miséria e a exploração e que eram os negros mais pobres que se mantinham nesse lugar.

A criança nascida em um bairro negro pobre só dialogava com essa classe média negra quanto a querer enriquecer, mas sem ter os meios sistêmicos para isso, se tornava outro alvo fácil pra violência do Estado.

A ascensão dessa classe média negra foi se dando ao mesmo tempo em que crescia a cultura dos gangsters e o aumento do tráfico nas áreas mais pobres: todos esses movimentos se expandiram e muito durante o neo-liberalismo de Reagan que favorecia o empresariado mais precarizava de um modo absurdo as áreas sociais, por exemplo. Os bancos negros ficaram mais ricos, a guerra às drogas se tornou mais rígida. Celebridades negras vendiam muito, mas não mais do que a polícia matava.

Criava-se assim uma diferenciação de classes e conquistas.

Havia, em tese, meios de todos serem empreendedores e de crescerem honestamente destro do sistema — a tal meritocracia. O negro que mesmo assim não conseguia ascender era com certeza por falta de vontade.
Os criminosos portanto o eram por escolha, etc.
É a época que vemos no documentário A 13° Emenda sendo apresentada como o momento em que as políticas de encarceramento em massa foram formadas e os cidadãos aprenderam a ter medo dos negros — não só os brancos, mas também negros aprenderam a temer outros negros pois a propaganda para tal sempre foi eficiente.

É esse filme aqui, pede a senha da Netflix pra um brother ai e trate de ver, por gentileza.

Em resumo: uma liderança negra de massas forte foi impossibilitada pois quando surgia uma voz entre os pobres, ela não dialogava com os interesses, questões e objetivos dos negros mais ricos e, quando a voz surgia entre os mais ricos, não dialogava com os interesses, questões e objetivos dos mais pobres.

Tem uma matéria que circula bastante sobre desabrigados nos Estados Unidos que estão caçando ratos em lixeiras para se alimentar. O país nunca teve tantos ricos, sendo uma parte considerável deles negros, e a consequência direta disso é uma miséria em crescimento. Não estou dizendo que o enriquecimento de negros causou a desigualdade social norte americana — isso seria uma afirmação absurda. Os culpados pelo agravamento dessa situação foram a expansão do neo-liberalismo, o fim das iniciativas de bem estar social e uma política que prezou pelo empresariado fazendo com que o empresário se tornasse mais rico enquanto a pobreza aumentava sem assistência. Empresários negros ganharam benefícios com essas políticas (veja bem, empresários peixe-grande, não a senhora que vende comida de porta em porta pra sobreviver ou o garoto que vende camiseta que ele mesmo pinta na feira da cidade). Logo, a relação da classe média e alta negra se torna a relação de qualquer setor do empresariado diante das políticas neo liberais globais: por mais que se tenha boas intenções, o indivíduo não controla as lógicas do tal “mercado”, é a mão invisível, não é? Enfim…

Graças é essa lógica econômica, o país é hoje o mais desigual em todo o mundo tido como desenvolvido. E não sou eu que estou falando isso não.
Em 2010, a ONU soltou um documento com resultados de pesquisas e propostas de soluções para a desigualdade social no espaço urbano e afins. O documento já é direcionado e ideológico porque analisa apenas os países “em desenvolvimento” assumindo que nos países “desenvolvidos” a análise é desnecessária MAS MESMO ASSIM….

Em termos gerais, as desigualdades de renda em países desenvolvidos são baixas. Entretanto, aumentaram em geral entre meados dos anos 80 e 2005. (…) As variações mais surpreendentes entre os coeficientes nacional e específico por cidade de disparidades de renda ou consumo foram encontradas nos Estados Unidos, onde por volta de 2005 o coeficiente nacional foi de 0,38, mas superou 0,5 em muitas grandes áreas metropolitanas, incluindo Washington, D.C.; a cidade de Nova Iorque; Miami e outras. Esses valores são comparáveis à média dos coeficientes de cidades em países selecionados da América Latina, onde a desigualdade de renda é especialmente grande. —
- O Estado das Cidades do Mundo 2010/2011: Unindo o Urbano Dividido
pág 12

Ou seja, os Estados Unidos é um país que surpreende por sua desigualdade de condições e pela disparidade de renda entre ricos e pobres. Ok, né?
MAS AÍ VOLTAMOS PARA AQUELE TEXTO DO ÍNICIO.

Segue um trecho:

“Segundo levantamento feito pelo Sebrae, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), os negros correspondem a maioria dos empresários do pais. Confesso que nunca enxerguei toda essa beleza nesse dado e quando detalhei a pesquisa, a decepção foi maior ainda. Sim, somos a maioria entre os empresários no Brasil e ainda assim nossa renda corresponde à metade do empresário branco. Infelizmente os negros empreendem em setores de menor lucratividade e muitas vezes sem planejamento, é o famoso “empreendedor por necessidade”. (…) Gradativamente esses números tendem a melhorar, considerando que muitos jovens negros enxergam o empreendedorismo como ferramenta de mudança social e estão seguindo por este caminho com mais preparação técnica.
(…)
Entendo que o processo pós escravidão nos Estados Unidos foi totalmente diferente ao nosso, mas uma pergunta não sai da minha cabeça: Porque ainda não temos um “banco negro” aqui no Brasil? Os afro-americanos contam com várias opções de bancos fundados e presididos por empresários negros. O OneUnited Bank é o maior deles, foi criado exatamente com o intuito de mensurar o poder de compra da população afro estadunidense e canaliza-lo para gerar empregos, construir negócios e aumentar a riqueza.

Mesmo com todos os possíveis questionamentos, lá eles utilizam o poder econômico como uma ferramenta de protesto. Recentemente após as constantes mortes de jovens negros americanos, criou-se um movimento chamado de BankBlackChallange. A ação tem como objetivo gerar migrações econômicas, ou seja, os negros movimentavam seus investimentos de “bancos brancos” para os “bancos negros”.

Este movimento contou com a adesão de negros famosos, como os cantores Usher, Killer Mike, Solange Knowles. Outro exemplo, foi o aumento na venda de camisetas do jogador Colin Kaepernick nas lojas da NFL. O atleta ficou mundialmente conhecido depois que se recusou a levantar para cantar o hino americano em protesto à opressão aos negros. E sempre me questiono, porque não fazemos o mesmo por aqui onde somos a maioria numérica da população?”

Primeiramente temos que pensar no que a autora define como empreendedorismo e como interpreta os dados do PNDA afinal.
Tiago Augusto é agente de pesquisa e mapeamento do IBGE e sobre isso nos fala:

Na parte em que se fala dos “empreendedores negros”, há um porém muito forte: Existem os empreendedores com funcionários (empregadores) e os que trabalham por conta própria.
Esses da conta própria, englobam desde a tia que vende Natura, até o cara que vende bala no sinal/trem/ônibus, passando por uma infinidade de ocupações de rentabilidade baixa, e que normalmente tem como função complementar a renda da família, dando uma ajuda para o (a) cônjuge, filhos(as) ou pais. Esses “empreendedores por conta própria” superam de longe em número os empregadores, dentro do “empreendedorismo negro”. E a autora erra feio, erra rude, ao não revelar esse porém.

Mesmo entendendo que a maioria imensa da população negra vive no modo empreendedor por necessidade, por desespero e por não encontrar outros meios de se sustentar diante da falta de emprego e oportunidades, a autora JURA que os números tendem a melhorar e já dá aquele salto sugerindo que passemos da fase do Black Money a brasileira pra nos espelharmos na experiência norte-americana até finalmente podermos também usar o “poder econômico como uma ferramenta de protesto” (?????? q).

Enfim, vamos aos exemplos:

  • Fico pasma em perceber que tem gente que caí no conto do banco que existe para gerar riqueza entre a população.
    Nem sequer consigo comentar isso.
  • Diante da morte de diversos jovens negros norte americanos um banco cria um movimento para que negros migrem suas fortunas e economias para bancos negros como uma forma de protesto…………………. tipo……….
No site do OneUnitedBank: Houve um despertar da comunidade após eventos trágicos recentes… Hora perfeita pra você se revoltar e abrir uma conta conosco. Prometemos que vamos fazer várias paradas boas com isso, mas o mais importante: vamos aumentar o poder do black dólar” — não é o que tá escrito, mas a mensagem é meio essa ai.

Não existe um banco negro no Brasil porque a população negra brasileira é majoritariamente pobre. Não daria pra ver negros brasileiros migrando suas fortunas pra um banco negro, logo não existe o interesse — ou vocês acham mesmo que os bancos negros norte americanos existem para os pobres poderem abrir conta salário? O próprio OneUnitedBank passou por processos de falência depois de sua criação (em 1968) e só conseguiu finalmente se reerguer e se estabilizar após se voltar paras grandes fortunas e não só para a comunidade em si…

  • Um jogador profissional de futebol americano protesta contra a morte de jovens negros se negando a cantar o hino do país e a população negra reage comprando várias camisas dele no site da Liga Nacional de Futebol…………… tipo……………….. really?
Um protesto de 124 dólares que pode ser parcelado no cartão. Achou caro? Fica tranquilo que no site tem opções promocionais por apenas 59 dólares e 99 cents.

Se tem uma coisa que o negro brasileiro jamais deveria desejar é ver o país igual aos Estados Unidos: maior população carcerária do mundo (com uma absurda maioria de negros em uma região onde são apenas 15% da população geral); desigualdade social gritante, onde 46,7 milhões de americanos (um em cada sete) vive na pobreza, inclusive 20% das crianças; com números absurdos de negros assassinados pela polícia e de pobres​ que vivem na miséria extrema. É como eu sempre digo: onde tem muita riqueza pode ter certeza que vai ser fácil de encontrar a extrema miséria ao lado.

Pra mim com o povo negro dos EUA em uma situação dessas, só devemos usar a região como parâmetro para o que NÃO fazer ou desejar

MAS, voltando ao texto:
pra mim é óbvio o esvaziamento político e os métodos herméticos que em nada influenciam a vida daqueles que estão morrendo​.
Que diálogo há entre os que protestam contra a morte de homens negros comprando uma camisa de futebol oficial e a família do homem negro que foi morto após roubar pra poder comprar a mesma camisa?

E ainda perguntam porque não fazemos o mesmo por aqui…

Fazer o mesmo aqui seria querer um Brasil mais norte-americano onde alguns negros protestam migrando suas fortunas de banco enquanto outros negros matam ratos para poder se alimentar.

Ain a Suzane não quer ver negros ganhando dinheiro, invejosa e…

Er… Antes que você termine a frase:
Não, o problema não é e nunca será o do negro ter dinheiro, empreender ou enriquecer. Que tenha, espero ter um dia também, porque não? Seria muito show. O problema é colocar o ter dinheiro e o mercado como soluções para o racismo estrutural, como fins a serem alcançados para esgotar os problemas de uma população que ainda é uma das mais atingidas pelas lógicas econômicas em que somos obrigadas a viver.

Acho sinceramente muito bonita a ideia de que se cada um fazer sua parte poderemos todos nos fortalecer economicamente e, munidos do valor que hoje só é dado aos ricos, diminuir o racismo até seu fim.
É bonito.
Mas infelizmente não leva em conta o mundo onde realmente vivemos e acaba por promover apenas extensões de cores diversas da mesma lógica de morte e exploração.

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