Dissecando relações raciais através do Caso OJ Simpson

PARTE I: “Eu não sou negro, sou OJ.”

Suzane Jardim
25 min readFeb 22, 2017

Muitos de vocês devem ter reparado na série nova que chegou à Netflix brasileira e que conta com Cuba Gooding Jr, Sarah Paulson, o carinha do Friends e o John Travolta f̶a̶z̶e̶n̶d̶o̶ ̶o̶ ̶p̶a̶p̶e̶l̶ ̶d̶e̶ ̶u̶m̶ ̶b̶o̶n̶e̶c̶o̶ ̶d̶e̶ ̶c̶e̶r̶a̶ no elenco.
Provavelmente você também sabe que se trata de um série de ficção baseada em um caso real ocorrido em 1994 e que envolveu um ex-atleta norte americano de nome OJ Simpson.

O que talvez você não saiba, é que esse é um dos casos mais citados em pesquisas recentes sobre história dos EUA, representação, debate identitário, mídia, sociedade contemporânea e intersecções entre raça, classe e gênero.

Por isso, decidi que essa era a oportunidade perfeita para lançar minha própria série: uma série de textos que tem como objetivo principal pensar nessas nuances teóricas e promover reflexões, além de pontuar alguns fatos sobre a história norte-americana que nem sempre os que não estudam o assunto sabem sobre.

E esse é o primeiro deles.

Uma das cenas que mais impactou a todos que viram a série American Crime History foi exibida no episódio 03, quando Cuba Gooding Jr no papel de OJ se opõe a idéia de usar o recurso racial em seu julgamento e diz em alto e bom som a frase:“EU NÃO SOU NEGRO, SOU OJ”. A partir dessa frase, me proponho a trabalhar com a parte que a série não mostra — a história negra americana que vai do início do século XX até o final dos anos 70 — e a mostrar como a figura de OJ Simpson se encaixa nisso e nos serve de gancho para pensarmos em tendências muito maiores no debate sobre a identidade negra e modos com os quais a mídia recebe e lida com nossas concepções sobre nós mesmos.
Usarei como base algumas leituras feitas ao longo dessa minha vidinha, além do documentário produzido pela ESPN, Oj: Made in America, que se você não viu, fique sabendo que deveria.

**** AVISO: ESSA SÉRIE DE TEXTOS VAI TER SPOILER PRA CARAMBA*** Então se você não sabe nada sobre o caso e prefere descobrir tudo sozinho em uma maratona feliz na Netflix, pode ir lá assistir e depois volta aqui pra gente conversar.

ENTÃO VAMOS LÁ

Primeiramente, o que é ser OJ Simpson?

Sim, sim, sabemos que ele foi um atleta, que foi acusado de assassinato e pans, mas vamos tentar voltar um pouco nessa história, ok?

Orenthal James Simpson nasceu na cidade de São Francisco, no estado da Califórnia, em 1947. “Mas pra quê voltar tanto assim, Suzane? Que loucura!”. Calma ow! Tô voltando porque é importante entender como a história da família Simpson é uma alegoria perfeita sobre a vida dos negros nos EUA — você vai entender a utilidade disso mais pra frente, confia em mim.
Os avós maternos do pequeno Orenthal eram um casal de negros nascidos no estado da Louisiana nos anos 20 e, AMIGOS, se tem uma coisa que vocês realmente não iriam querer nessa vida é ser negro na Louisiana nos anos 20. Isso porque Louisiana é um dos estados sulistas que foi pro lado dos Confederados durante a guerra civil. Sabem aquele papo sobre o sul dos EUA ser a parte mais racista de todo o país? Pois então, Louisiana fica lá.

Uma das imagens mais icônicas da luta pelos direitos civis veio da Louisiana. Talvez você conheça essa foto da garotinha Ruby Bridges sendo escoltada por agentes federais para conseguir ir ao seu primeiro dia de aula em uma escola totalmente branca da Louisiana , em 1960. Ruby Bridges e sua história foram inspiração para essa pintura de Norman Rockwell que também aparece tanto na série quanto no documentário sobre OJ Simpson.

No sul, a rotina de espancamentos, assassinatos, incêndios em casas de famílias negras e privação das liberdades individuais, tornava a vida impossível principalmente para os negros do interior, fato que causou um verdadeiro êxodo rural. Entre os anos de 1910 e 1950, os EUA passaram por uma onda de migração negra que ia do Sul em direção ao Norte. Só na Califórnia a população negra aumentou em 600% em dez anos. Sabe no Brasil? Quando os nordestinos vieram em massa para os estados do sudeste em busca de empregos e oportunidades durante o boom econômico dos anos 1970? Pois foi um processo mais ou menos parecido - aqui no Brasil é super comum ser um paulista com avós ou pais nordestinos, assim como nos EUA é extremamente comum e normal ser um negro com a vida marcada por uma família que fugiu da violência no sul buscando a paz e as oportunidades dos centros urbanos do norte.

Louisiana nos anos 60: de um lado vemos uma senhora branca com suas bandeiras dos confederados protestando contra a existência de negros que queriam o fim da segregação racial X do outro lado vemos como a população negra enfrentava mesmo as regras porque aqui é resistência, fi! Tem essa de baixar a cabeça não.

Só a partir dos anos 50 e 60 que as mobilizações contra a segregação racial e as injustiças criminosas que ocorriam no sul começaram a surgir de um modo mais visível a todos nós, mas vamos voltar aos negros do sul que migraram para outros estados.
Devemos presumir que os negros sulistas que migraram para áreas do norte ficaram livres da violência, racismo e abuso? Não, não devemos mesmo. Existia esse mito de que os estados ao norte eram mais amigáveis, porém a população negra da Califórnia, por exemplo, convivia há anos com inimigos difíceis de denunciar: a polícia e o descaso do Estado que, como sempre, preferia dar benefícios e estrutura aos bairros ricos enquanto deixava os bairros pobres em um estado de quase abandono. Muitos desses negros viviam nos projects, apartamentos construídos pelo governo para abrigar os mais pobres nas grandes cidades, mais ou menos como os conjuntos habitacionais aqui do Brasil e com uma fama muito semelhante.

Pausa para uma trívia pra vocês saberem como esse era um destino comum: no primeiro episódio da primeira temporada da série Everybody Hates Chris, por exemplo, acompanhamos a mudança da família para Bed-Stuy enquanto Chris explica que sua mãe Rochelle não queria mais morar nos Projects porque achava que “project” era apenas outra palavra para “experiência” — “Nos laboratórios o governo dá queijo pra ratos. Nos projects o governo dá queijo pra pessoas.”. Na dublagem brasileira trocaram a palavra “project” por “conjunto habitacional”. Pode conferir aqui:

OJ Simpson vivia com sua mãe e irmãos em um desses projects que a Rochelle condenava e foi por lá que nasceu, cresceu e teve problemas típicos dos jovens negros de locais semelhantes: a falta de estrutura, a pobreza, a convivência com gangues de rua e com a violência urbana, passagem por reformatórios, etc. No documentário, um amigo de infância de OJ conta que ali Martin Luther King não chegava: os heróis de uma criança crescida por aquelas bandas eram os traficantes e cafetões.
Uma das poucas possibilidades de ascensão social para os jovens negros norte-americanos era conseguir bolsas de estudos através dos programas de incentivo ao esporte e foi exatamente isso que OJ Simpson fez para tentar fugir das estatísticas, assim como diversos outros negros com histórias absurdamente parecidas. OJ se destacou nos times do colégio e por sua performance notável, conseguiu uma bolsa para estudar e jogar futebol americano em uma universidade da elite branca em Los Angeles, onde já chegou com fama de monstro do esporte. Foi lá que OJ passou boa parte da década de 1960. Daí pra frente foi só sucesso, prêmios, honrarias, granas e participações em filmes, comerciais e programas de TV.

Eu contei tudo isso para que conseguissem perceber uma coisa importante logo de início: a trajetória de vida de OJ até o sucesso era (e talvez ainda seja) muito representativa pra um número gigante de afro-americanos. É a tipica trajetória de sucesso de um jovem negro que não se deixou abalar, de uma família que conseguiu fugir do sistema racista sem sucumbir. Milhares de outras famílias negras fizeram o mesmo caminho, diversos jovens negros tinham avós e pais com a mesma história e sonhavam em alcançar os mesmos objetivos, tendo uma vida bem sucedida em grandes cidades como Los Angeles. Toda essa trajetória funciona perfeitamente como uma alegoria de história comum e uma boa parte da população afro-americana conseguiria se reconhecer em uma história dessas sendo contada nos anos 60 ou 70. Esse é um dado importante para ser guardado na memória até o fim desse texto. Mas vamos avançando porque afinal, estamos agora nos anos 60 e nessa época não era só apenas o auge de OJ Simpson que estava rolando, não é mesmo?

Anos 60 podem te fazer lembrar de hippies paz e amor ou da Beatlemania, mas não dá pra negar que o que mais marcou os anos 60 na história do mundo foi: treta.

Foi a década auge da grande maioria das lutas organizadas que conhecemos hoje e isso com certeza influenciou movimentos por todo o mundo.
Muitos foram os fatos marcantes dessa década, mas por enquanto vamos nos focar em um evento em especifico que aconteceu em 1965, mesmo ano do assassinato de Malcolm X e da assinatura da Lei dos Direitos ao Voto: a Revolta de Watts.
A grande maioria da população branca dos Estados Unidos via imagens da brutalidade que ocorria no sul do país e pensava que no norte as coisas eram melhores. A Revolta de Watts veio pra mudar esse quadro ai.
Watts era um bairro pobre de Los Angeles onde se concentrava a maioria da população negra da cidade. Um belo dia a polícia parou um carro onde estavam dois irmãos negros porque suspeitava que o motorista estava dirigindo embriagado — até ai tudo bem — só que a polícia não fazia aquele “boa noite, senhor, poderia por gentileza sair do veículo para verificarmos sua situação: não queremos que o senhor se machuque, não é mesmo?”. NÃÃÃO. Os cara já chegava na voadora mesmo. Durante a abordagem, o irmão do motorista saiu correndo do carro e foi até sua casa chamar sua mãe pra ver se a senhora poderia ir lá resolver a situação. Aí foi que o pau quebrou: quando a senhora chegou no local pedindo pelo amor de deus pra deixarem os filhos dela em paz, a polícia fez sobrar até pra ela. A população do bairro viu aquilo e começou a se aproximar para impedir que os policiais continuassem com aquela abordagem nada a ver e em pouco tempo o local estava cercado por centenas de negros que ficaram pistola ao ver que a polícia resolveu prender a família toda simplesmente porque sim. O que aconteceu depois? A população do bairro se revoltou contra toda a violência policial que sempre sofreu e isso gerou uma explosão de fúria coletiva que se transformou em 6 dias de confronto entre os moradores do bairro e a polícia.

Cenas da repressão em Watts — 1965

Edifícios e veículos foram queimados, quebra quebra pra tudo que é lado em um confronto que teve o seguinte saldo final: 34 mortes, 1 032 feridos, 3 438 prisões e mais de 40 milhões de dólares em prejuízos para o bairro. Porém, a revolta teve também um resultado positivo: mostrou pra população imagens que não eram nada diferentes das que vinham do sul (nesse vídeo tem algumas das mais leves) e que trouxeram pra mídia e para os jornais a discussão sobre o tratamento diferenciado que a polícia dava para negros e brancos nas grandes cidades. Como acontece até hoje, muitos críticos consideraram que a culpa de tudo isso era dos negros e que as cenas de “vandalismo” que ocorreram durante a revolta serviam apenas como prova de que negros eram descontrolados e violentos. Independente da opinião, abriu-se o precedente: Los Angeles era uma cidade onde negros conviviam com a brutalidade policial e não estavam dispostos a aceitar essa realidade pacificamente. (Guardem bem essa informação, vocês vão precisar dela nos próximos textos).

Apenas dois anos após a revolta, OJ Simpson finalmente realiza o sonho de muitos outros jovens negros e se muda para Los Angeles, porém, ele não foi pra lá morar em Watts junto com os outros negros recém chegados, não não meus amigos, o cara já chegou metendo os pé na porta e se instalando na área imediatamente ao lado da região de Watts — o campus da Universidade do Sul da Califórnia (USC).

Estudantes típicos da USC nos anos 60. Muitos deles só conheceram e falaram com um negro pela primeira vez quando OJ Simpson foi estudar na instituição.

Vejam bem, o movimento estudantil norte americano teve seu auge nos anos 60 e tal, mas na USC as paradas pareciam estar bem paz, até porque era uma universidade formada por jovens brancos de elite que queriam fazer carreira no mundo dos esportes e na industria hollywoodiana, além de ser um centro de estudos ligado aos grandes bancos e grandes veículos de mídia, então pra que causar se tu já tá com a vida meio garantida, né? ENFIM, foi ali que OJ Simpson se instalou aos 19 anos, já casado com sua primeira esposa Marguerite L. Whitley, uma jovem negra muito gata.
Você deve estar pensando que OJ Simpson, um jovem negro vindo de um bairro pobre, comeu o pão que o demo amassou quando chegou nesse ambiente totalmente novo e que foi hostilizado de tudo que é jeito pelos estudantes brancos. MAS POR INCRÍVEL QUE PAREÇA não foi o que rolou não. Isso porque OJ construiu uma fama estadual como jogador de futebol (Vamos combinar que toda vez que eu falar de futebol nesses textos tô falando de futebol americano, tá bom? Não me vem imaginar o OJ Simpson fazendo embaixadinha, pelamordedeus) e sua presença ali era na verdade um item muito importante para a universidade que poderia ter garantia de se destacar nos jogos universitários nacionais (os americanos realmente ligam pra esse tipo de coisa e nunca vou entender o porquê). Logo, a jornada de OJ na USC não lembrava em nada a hostilidade sofrida por outros estudantes negros que entravam nos “espaços brancos”: em vez de ser identificado como qualquer outro negro morador de Watts, OJ deu altas entrevistas pra vários veículos, era celebrado pelos colegas e professores e visto como o novo Nirvana muito antes do Nirvana existir pra ser alguma coisa.

O jovem OJ SImpson sendo tietado por jornalistas na USC.

Em 1967, graças ao apoio e projeção que a universidade fodona deu a OJ, ele se tornou uma figura conhecida nacionalmente e a nova promessa do esporte. Até o recorde mundial de atletismo o cara ganhou na época porque corria pacas. Vocês são jovens e não devem se lembrar como foi quando o Robinho chegou no Santos, mas o bagulho foi bem parecido — só se falava em OJ, OJ era o futuro, OJ chutava bundas, era o mais gostoso e o mais promissor no mundo do futebol. Mas é aquela coisa: nem só de futebol vivia a nação e a tensão ainda era constante no país.
E agora começa a parte interessante…. Vamos voltar à frase tema desse texto: “Eu não sou negro, sou OJ”.

No documentário OJ: Made in America essa frase também aparece e em um contexto que vale umas palavras sobre.
Em 1967, ano em que OJ chegou na USC, a guerra do Vietnã era um assunto. As convocações chegavam aos montes para os jovens norte-americanos e chegavam aos montes também para os jovens negros. Muhammad Ali, conhecido também como @homão da PORRA (ou Cassius Clay), foi uma das principais vozes a unir a crítica ao racismo do país com a crítica à guerra. Sua frase “No vietnamese ever called me nigger” ou “Nenhum vietnamita jamais me chamou de nigger*” estampou cartazes por todo o país e fez com que outros negros, famosos ou não, se negassem também a participar do conflito.

Jim Brown (famoso jogador de futebol americano) preside um encontro de atletas afro-americanos em apoio a campanha de Muhammad Ali contra a guerra do Vietnã e a favor de melhorias na vida dos negros do país.

Jim Brown foi um dos principais e mais importantes atletas negros do mundo do futebol e também aderiu à causa, assim como vários outros atletas negros de áreas diversas.
No mesmo ano, foi formado o The Olympic Project for Human Rights (OPHR), uma organização de atletas negros que propôs um boicote às Olimpíadas de 1968 no México motivados pela oposição ao regime do apartheid na África do Sul — que foi convidada para as Olimpíadas como se estivesse tudo de boa— e para dar visibilidade para a situação dos negros nos Estados Unidos.
É importante salientar que na sociedade americana da época os únicos negros que realmente eram ouvidos pela mídia e tinham influência direta na juventude (negra e branca) eram os super atletas. Eles representavam o país em competições, traziam medalhas, troféus e glória, sendo retribuídos por isso com fama, grana e status, ou seja, não era a toa que os jovens negros viam no esporte um caminho pra mudar de vida. OJ Simpson já era considerado um desses atletas importantes na época: tinha fama por todo o país, era o jogador universitário mais famoso do rolê e, por tudo isso, foi obviamente questionado sobre o movimento encabeçado pelos atletas negros.
Com isso em mente, abaixo apresento quatro situações, todas ocorridas entre 1967 e 1968, e que nos ajudam a pensar mais a fundo sobre o significado da nossa frase-tema:

SITUAÇÃO 1: Em uma entrevista feita em 1967, esse ano ai com tantas paradas acontecendo no mundo dos esportes, um repórter pergunta a OJ sobre o boicote às Olimpíadas e ele basicamente responde um “pow mano, daora os cara tão lá lutando pelo deles né, mas eu não quero me envolver nisso não, falow”. Na mesma entrevista, perguntam o que ele acha sobre a iniciativa de atletas como Jim Brown que estava dando declarações públicas sobre as questões raciais e sociais. Você pode ver a entrevista clicando aqui, mas ela infelizmente está sem legendas em português, então reproduzo a resposta de OJ abaixo:

-Eu acho que é boa, pois caras como Jimmy Brown,(…) e alguns outros, nos mostraram que você pode chegar longe, sabe? Eles estão vencendo esportes e se tornando pessoas de sucesso e agora eles estão em uma posição em que eles podem falar “hey, eu consegui e você pode conseguir.”, e pode-se dizer que isso é o que eu estou tentando fazer. Eu estou tentando chegar longe, eu vim de uma área bem barra-pesada, e eu sinto que se eu consegui, isso faz de mim um bom exemplo pras crianças. E eu estou tentando, eu estou me direcionando a uma meta e se eu alcançá-la eu vou ser um bom exemplo que nem o Jim Brown foi pra mim.

SITUAÇÃO 2: Dr. Harry Edwards é um ex- caça talentos do esporte que hoje é um sociólogo especializado em sociologia do esporte com foco em atletas negros. Ele foi um dos primeiros olheiros a ir dar uma espiada na performance de OJ no colégio e anos depois foi o idealizador da campanha de boicote dos Jogos Olímpicos do México. Edwards conta como foi o dia em que foi convidar OJ Simpson a se juntar a ele na causa. Segue a fala:

Quando perguntei pra ele, disse que estávamos tentando fazer entender o papel que atletas negros tem no atual movimento por direitos civis e a resposta dele foi: “Eu não sou negro, sou OJ”. Com isso, OJ estava na verdade dizendo: “eu não quero ser julgado pela cor da minha pele, quero ser julgado pelo meu caráter e, acima de tudo, pelo calibre da minha competência (…) não me diga que eu preciso fazer isso porque sou negro.”

SITUAÇÃO 3: Enquanto atletas negros se uniam para dar visibilidade à causa racial, OJ Simpson deu uma entrevista para a TV fazendo a seguinte declaração:

“Eu diria que há menos preconceito no esporte do que em qualquer outro campo de trabalho porque você é apenas você, é aceito como você é, o que sabe e o que consegue fazer como atleta e eu acho que isso é bom para qualquer um”

SITUAÇÃO 4: Em 1968 o mundo virou de cabeça pra baixo. Nos EUA foi o auge dos Panteras Negras e o ano dos assassinatos de Luther King e John Kennedy.

Nas polêmicas Olimpíadas do México, os atletas negros Tommie Smith and John Carlos foram banidos dos jogos após erguerem os punhos em uma referência aos Panteras Negras durante a execução do hino nacional norte-americano (e geraram essa imagem icônica ai que eu adoro meter no meio de tudo). Enquanto TUDO ISSO tava rolando, OJ alcançava o posto máximo que um jogador universitário poderia alcançar em sua vida: o Prêmio Heisman, um troféu dado só para os maiores fodões do esporte e que significava pra caramba pra OJ e principalmente para a USC.
Enquanto todo o país se inflamava e enquanto todos os acontecimentos que marcaram o mundo ocorriam, OJ estava presente em uma cerimônia em sua faculdade em celebração ao sucesso da mesma na temporada de esportes. É nessa cerimônia que o apresentador da parada lança AO VIVAÇO:

Eu não preciso dizer que é um prazer estar aqui na OJ U (Universidade do OJ). Mas é maravilhoso estar aqui na USC: vocês não tiveram uma revolta, uma demonstração e nem mesmo um protesto — tem certeza de que isso aqui é uma faculdade? ***risos da platéia***

AGORA CHEGA DE ENROLAR E BORA PRA ANÁLISE

No livro Questão de Raça, o autor Cornel West faz vários ensaios delicinhas. Em um deles, ele aponta qual foi o poder revolucionário de Malcolm X e em outro, ele fala sobre como a população branca americana tem a tendência de perceber os negros como “pessoas problema” e não como cidadãos norte-americanos com problemas causados por um sistema racista. A concepção do negro como “pessoa problema” faz com que a sociedade adote uma postura culpabilizadora sobre sua existência: se ele se comportasse, se ele não fosse tão agressivo e tão envolvido com as coisas erradas, não seria tratado mal e não teria do que reclamar, afinal, todos vivemos em uma sociedade justa onde se você se esforçar e andar na linha, pode alcançar todos os seus objetivos e sonhos.
A partir dessa concepção, Cornel West aponta o que considera os dois caminhos possíveis para o negro que vive em uma sociedade racista:

  • a explosão da fúria e da repulsa à figura do homem branco: fator que pode afastar o negro do convívio social e que pode acabar se tornando uma negação da vida em sociedade como um todo, além de trazer um comportamento violento que geralmente volta contra a própria comunidade a que o negro pertence.
  • a internalização do racismo que faz com que o negro acredite que o branco tem razão e que ele deve provar por meio de bons exemplos que é um negro diferente dos problemáticos.

A Revolta de Watts, que mencionei lá em cima, pode ser vista como um exemplo do primeiro comportamento apontado pelo autor: uma explosão de fúria que é com certeza justificada, mas que também destrói material e psiquicamente a comunidade negra. O ódio pela injustiça é tão grande que a destruição parece ser a única linguagem possível: tenta-se atingir o homem branco, mas as casas queimadas e as mortes continuam sendo no lado negro e não nos grandes centros de poder que mantêm a injustiça.

No segundo grupo os negros internalizam a visão branca sobre a negritude, o que acaba por desenvolver um processo psíquico que gera uma dupla consciência: a sensação de olhar para si através dos olhos dos outros. Nesse caso, cabe a ele o ônus de todo o trabalho cultural e moral que deve ser feito a fim de obter relações raciais sadias. Isso não significa que esses negros não se reconheçam como negros ou que não reconhecem internamente a existência do racismo. Isso na verdade significa que esses negros desenvolvem estratégias de sobrevivência dentro do status quo para conseguir lidar de um modo mais mentalmente saudável e menos desgastante com o que os cerca pois acreditam que esse é o trabalho que devem realizar para amenizar o racismo: provar que são negros bons, diferentes da maioria.

Para West, o maior mérito do legado de Malcolm X foi o de organizar a fúria negra (modo um) e mostrar que os negros não precisam destruir a si mesmos para demonstrar seu descontentamento, eles precisam primeiramente destruir essa dupla consciência e retirar a máscara que a sociedade branca coloca sob seus olhos (modo 2). Só assim irão perceber que são belos, capazes e que têm sim o direito de exigir respeito sem precisar aceitar tudo o que vêm do branco pois é o branco que cria o racismo e não eles. Só assim poderão se organizar coletivamente, se entender como uma unidade e exigir o que lhes é de direito, usando a fúria contra o alvo certo. Cria-se então uma terceira via, um terceiro modo de se entender como negro e de tentar lidar com a sociedade racista. Muito da luta racial que conhecemos atualmente, seja nos EUA ou no Brasil, é baseada nesse terceiro modo e na influência de Malcolm X, como você pode ver aqui, por exemplo.

TÁ COMPLICADO NÉ, NOSSA DESCULPA, MAS VAMO RETOMAR.

Na SITUAÇÃO 1 vemos um OJ Simpson que ao ser questionado sobre opiniões raciais e sociais, ameniza o discurso, desconversa e no lugar de um dialogo com as tensões do momento, faz uso do conceito do “bom exemplo”. Jim Brown estava beeeem longe de usar a questão racial para mostrar que qualquer um pode chegar tão longe quanto ele, pelo contrário, estava fazendo comentários para dar visibilidade a milhares de negros que jamais chegariam aonde ele chegou devido a existência de um sistema racista de opressão onde oportunidades iguais e mérito não existem. Independente de OJ saber ou não a essência da crítica dos atletas negros do momento, ele faz uma manobra para que sua resposta permanecesse no campo do “estamos fazendo o bem”. É óbvio que a sociedade não via os manifestantes como aqueles que estavam lá pelo bem comum — até hoje não vê, né mesmo? Mas OJ, que em sua fala reconhece que está em um lugar que não é seu naturalmente ao dizer que veio de um lugar “barra-pesada”, valoriza o fato de que conseguiu chegar lá por mérito próprio, sem fazer barulho ou alarde, e que é um jogador valoroso pois pode trazer esse sentimento para mais pessoas, assim como outros trouxeram a ele. Ele pode organizar e dar bom exemplo para outros negros acreditarem, sem revolta, que “chegar lá é possível”.

Na SITUAÇÃO 2 vemos um depoimento com a tal frase que dá nome a essa parte do texto. E o próprio narrador à explica: OJ Simpson sabe que é negro, mas não admite que tenha que tomar “atitudes negras” para provar que é bom em algo. Ele quer ser aceito pelo sistema por quem ele é, não por sua cor. É uma utopia que assume que dentro de um sistema racista há a possibilidade de não se racializar os sujeitos não-brancos mas, para ele, e para boa parte da população negra, isso pode ser alcançado através do mérito. Se mostrar seu bom caráter e provar que é capaz de realizar grandes feitos em sua área de atuação, OJ acredita que estará imune ao racismo, que não precisará mais tratar de raças pois ele finalmente terá alcançado a aprovação social necessária (em sua cabeça, é claro) para ser reconhecido além da cor de sua pele. Essa concepção de mundo e da questão acaba sendo reforçada pelo meio, como vemos na SITUAÇÃO 3: OJ é de fato um garoto negro e pobre que chegou aos 19 anos em uma universidade elitizada e, além de ter sido muito bem tratado, conseguiu em pouco tempo ser elevado como um herói da instituição. Vemos aqui a dificuldade de se pensar coletiva e estruturalmente e a ênfase no exemplo individual que é tão valorizada nas sociedades capitalistas e liberais, tal qual os Estados Unidos.
Por fim, a SITUAÇÃO 4 ilustra a sensação de conforto que existe em se manter alheio. Sempre dizemos em nossas discussões sobre como ser negro e ter que lidar com o racismo 24 horas por dia é desgastante e trás consigo uma série de danos psíquicos. Ninguém consegue ser forte o tempo todo. Estar em um espaço onde é possível se isolar dos males do mundo com certeza é ou já foi o desejo de muitos aqui e é nesse lugar que OJ se encontrava no final dos anos 60. Ali, em um ambiente onde as tensões do país não chegaram de modo direto e onde os principais interesses não dialogavam com as cartilhas protestantes, talvez fosse possível se alienar e conseguir ver uma possibilidade de paz.

Essa não é uma tentativa de culpabilizar o sujeito OJ por não se posicionar sobre a questão racial, mas sim uma análise que tenta mostrar que assim como ele, muitos outros negros — não só dos Estados Unidos — acabam negando uma postura militante em uma tentativa de proteção de si e dos seus. Vale lembrar que todos os militantes estavam arriscando suas carreiras de um modo crítico ao se posicionar publicamente (vale lembrar de Nina Simone, cantora extremamente talentosa mas que sofreu uma série de boicotes por parte da mídia por ter decidir ser a voz da causa pelos direitos civis). Se posicionar custava e ainda custa muito caro e é preciso estar disposto a perder diversas chances e oportunidades que só dentro da lógica do sistema é possível conseguir. OJ sabia disso, como demonstra a fala abaixo:

“Eu fui atraído por isso (envolvimento com politica) uma vez ou outra no movimento negro, quando eu estava na escola. Eu acho que eles tentam nos usar e, em muitos casos, isso acaba prejudicando pessoas. Eu sentia isso com Harry Edwards (organizador do boicote às Olimpíadas do México). Prejudicou o Tommie Smith, o John Carlos (os atletas negros que levantaram os punhos durante a execução do hino nas Olimpíadas do México e que você nem saberia o nome se eu não tivesse escrito aqui). Representaram as ideias dele e eu acho que eles deveriam representar suas próprias idéias. Eu digo que se eu vou representar algo, eu vou representar o OJ.” — OJ em entrevista para a TV em 1978.

Vê-se aqui uma dificuldade de pensar no coletivo e uma ênfase no ganho individual onde a carreira e o nome são mais importantes do que a causa. A possibilidade de que atletas botassem em risco toda uma carreira em nome de uma causa maior sequer passa na cabeça de OJ — Tommie Smith e John Carlos foram certamente manipulados porque pra quê um atleta iria mandar uma mensagem política em cima do pódio por vontade própria? Pra quê colocar a possibilidade de aceitação social em risco e mexer em um time que está ganhando?
A questão PRINCIPAL é perceber que a concepção de “time” flutua — para os negros que se posicionavam, o time era a comunidade negra como um todo e colocar a carreira em risco era uma das condições para fazer o time ganhar; já para OJ, um time era formado por seu ciclo e tudo aquilo que ele mesmo conseguiu conquistar, quanto mais conquistas pessoais e mais reconhecimento, mais pontos para o time. E não seria essa uma das ideias que fundamentam o sentimento de ser norte-americano e de prezar pela liberdade de expressão, pelo espaço individual e pelo mérito?

OJ (ainda) não havia perdido o contato com a comunidade negra e era um pai exemplar em uma família negra lindíssima além de manter contato com seus amigos negros de São Francisco, porém, ele teve a oportunidade de ser aceito por um sistema que por certo reconhecia como excludente por ter vivenciado essa exclusão e resolveu adotar uma postura defensiva que o fez ser aceito naquele mundo e que dava a ele a garantia de não precisar vivenciar o racismo de modos tão intensos como antes. E quem poderia culpá-lo? Se hoje em dia muitos ainda preferem essa segurança, muitos praticamente SONHAM com essa segurança, IMAGINA COMO NÃO DEVERIA SER NOS ANOS 60, AMIGÃO.

Olha só essa família negra e m p o d e r a d í s s i ma (isso é uma piada, eu não to falando sério)

Mas a questão é: adotando essa postura diante do mundo, OJ Simpson deixa de ser visto como representativo para a comunidade negra da época? A resposta é: NÃO.

A história de sua vida familiar o aproxima de um modo muito eficiente de milhares de negros no país. Sua trajetória é a realização do sonho americano, afinal, todos querem ser aceitos baseados apenas em sua capacidade e em seu caráter, todos querem acreditar que após anos de dificuldades imensas que perseguiram gerações poderão finalmente alcançar um novo patamar. OJ Simpson serve então como uma ferramenta importante para se ter na mídia pois é um homem negro que tenta se adequar de um modo não questionador ao sistema hegemônico ao mesmo tempo em que desperta empatia em parte da comunidade negra.
Exatamente por isso, com a chegada dos anos 70 e após entrar para a liga profissional de futebol americano tendo sido contratado como o atleta mais bem pago até então, OJ Simpson se torna também uma figura da mídia e um garoto propaganda de tudo que é marca.
Veja bem, antes dos anos 70 até a publicidade nos EUA era segregada. Basicamente se você queria vender algo você colocava brancos no comercial, fim.

Pra gente que fala português, não fica tão obvio, mas nessa propaganda do McDonald’s voltada para o público negro, todo o texto está escrito tentando imitar um “dialeto”, em uma simulação bem da sem vergonha do “modo negro” de falar, assim como nas propagandas de produtos de limpeza ou de itens pro lar, o uso de negros era normal, afinal eram eles que faziam esse tipo de serviço mesmo…

Depois dos anos 60, finalmente descobriram que negros também eram consumidores, então, quando queriam expandir o público de um produto ou serviço, faziam as “propagandas étnicas” tentando “falar com o público alvo” e só as divulgavam em meios onde os negros tinham mais acesso.

Mas com OJ Simpson, essa tendência mudou: ele foi o primeiro negro a ser garoto propaganda de produtos não racializados.

OJ agora estava em propagandas de carros, botas e empresas de aluguel de veículos! Ou, segundo as palavras de Harry Edwards, “… ele foi o primeiro a provar que brancos comprariam qualquer coisa anunciada por um negro contanto que não fosse apresentado com características de negros”.

A introdução de OJ no mundo da publicidade trouxe essa mudança de paradigma exatamente porque ele não era alguém que trazia desconforto para os brancos ao mesmo tempo em que trazia uma boa parte da comunidade negra consigo. Era novo o fato de ver um negro vestido como empresário no horário nobre, era importante ter essa imagem e ver que aquele garoto que tinha uma história tão parecida com a dos demais havia finalmente chegado lá. Esse sentimento bonito que tocava a subjetividade dos negros da época era importante para a construção da auto estima de todo um povo e cumpria uma função na sociedade americana ao mesmo tempo.
Desse modo, OJ conseguia ser aceito nos dois mundos e maximizar os lucros de seus contratantes. Cria-se aqui um acordo: os EUA ganham um “self made man” negro que serve para provar como, apesar dos confrontos do passado, a situação está superada; as empresas maximizam seus lucros sem grandes riscos e OJ ganha em troca fama, muita grana e uma sensação de conforto diante do sistema.

Em resumo: “eu não sou negro, eu sou OJ” é uma frase que demonstra a vontade de um rapaz negro de origem pobre de ser reconhecido e aceito em uma sociedade que dificilmente vê o negro além de sua cor.
Para tal, esse jovem incorpora os valores morais dessa sociedade e se apresenta como aquele que pode ser capaz de expandir esses valores para um público cada vez maior, público esse que se identifica com esse rapaz por sua origem e que não o abandona, mesmo nas situações mais improváveis, como veremos mais adiante.
Quando a série usa essa frase na cena que usou (EPISÓDIO 03, SE NÃO VIU, CORRE LÁ) o que ela quer é enfatizar essa visão que OJ tem de si e do mundo. Ele não quer ser julgado como um negro, ele quer ser julgado como um cidadão norte americano, como um homem que realizou grandes feitos graças apenas a si mesmo e pelo legado subjetivo que deixou, onde é possível que existam relações raciais saudáveis: basta você, negro, querer e dar o exemplo.

Com o fim dos anos 70, OJ decide se aposentar dos esportes para aproveitar melhor as oportunidades de ouro que conseguiu na mídia e em Hollywood. É nessa fase da vida que ele conhece aquela que seria sua futura segunda esposa: Nicole Brown.
Mas essa parte da história ficará para o segundo texto onde focarei no mundo pós anos 70 e nas questões de gênero e classe.

Vai valer a pena, confia em mim.
;)

Até lá.

*As traduções geralmente traduzem a palavra nigger para o português como “crioulo”, entretanto, resolvi não tentar traduzir a palavra pois acredito que a opção mais comum não é suficiente e que não exista nenhum equivalente em português que realmente transmita a mesma idéia ou que tenha a mesma carga da palavra original.

ATUALIZAÇÃO:
PARTE II: Mesma cor, dois universos

PARTE III: “… ele está fugindo da polícia, então agora ele é negro.”

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