Até os Ossos (Bones and All) marca o primeiro longa do italiano Luca Guadagnino a ser ambientado na América, após contemplar as belezas naturais de sua terra natal em “Um Mergulho no Passado” (2015); “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), e se aventurar pela Berlim ocidental no remake de “Suspiria” (2018), o diretor decide por explorar a chamada “Americana”, a cultura estadunidense focada no Centro Oeste longe do foco e influências das duas costas Leste e Oeste (sempre representadas por Nova York e Los Angeles), nesta adaptação do livro de 2015 da autora Camille DeAngelis.

Acompanhamos a jornada de Maren Yearly (Taylor Russell), que após ser abandonada pelo pai, por não conseguir mais suportar conviver com a “condição” incomum da filha, parte em uma busca pela mãe no coração da América dos anos 80, na chamada era Reagan, onde se viu uma crescente onda do conservadorismo voltando as pautas sociais após os anos de transgressão do final da década de 60 e início dos anos 70. Eventos como o assassinato de Sharon Tate que revelou ao mundo a existência de líderes de seitas religiosas como Charles Manson e o medo da chamada “ameaça comunista” tomando conta dos estadunidenses no clímax da Guerra Fria, foram cruciais para que esse movimento de regressão cultural fosse uma das principais características dos dois governos de Ronald Reagan.

É nesta conjuntura onde Maren conhece Lee (Timothée Chalamet), um jovem com resquícios do estilo punk que também compartilha da sua mesma “condição”: ambos são chamados de devoradores, e precisam se alimentar de outras pessoas para sobreviver. Rapidamente os dois criam uma forte conexão, calçada principalmente no sentimento de identificação e tentativa de encontrar seu pertencimento neste mundo que os rejeita.

Desde a maneira como se vestem — Maren sempre com a jaqueta de seu pai (um símbolo de conforto para uma menina que esta enfrentando a sociedade pela primeira vez) e Lee com seus jeans rasgados, camisas coloridas estampadas e as icônicas mechas vermelhas no cabelo, denotam um jovem perdido em seu tempo, tentando se afirmar como alguém que tem todas as respostas que os outros procuram. É na troca de diálogos de ambos que muitos contextos se abrem, incluindo uma analogia à relação com a homossexualidade, e como pessoas homossexuais muitas vezes encaram sua própria identidade. Enquanto Maren se vê como uma “novata” entre os devoradores, não porque tenha praticado o ato poucas vezes, mas pelo fato de ter passado a vida toda fugindo de cidade em cidade com o pai, impossibilitando-a de criar qualquer laço afetivo com outra pessoa, e por fim levando-a acreditar que era a única com essa condição, Lee por outro lado, parece estar em conformidade consigo mesmo, e entendeu que sua natureza exige determinadas necessidades e que precisa satisfaze-las de qualquer modo, não apenas por prazer mas pela pura sobrevivência. Entretanto, todas essas certezas são postas a provas quando seu caminho cruza com o de Maren, e como o próprio personagem de Michael Sthulbargcita cita em determinado momento: “Talvez o amor irá te libertar”, e é neste quesito que a narrativa brilha: o amor entre esses dois personagens.

É incrível como Guadagnino em nenhum momento releva ou minimiza a natureza desses personagens, pelo contrário, faz questão de demonstrar como cada um enfrenta seus instintos e lida com as responsabilidades de suas ações. Tanto diretor e roteirista (David Kajganich) não alienam o espectador para manipular suas emoções, todas as cartas estão postas a mesa, você sabe quem são esses personagens, você sabe o que eles fazem, você sabe pelo que eles passaram, e mesmo assim é irresistível não sentir por eles. A indiferença não tem espaço em nenhum segundo dos 130 minutos do longa.

"Please do not feel alienated by the nature of these characters. They are who they are, but at the same time they are loving people who need love. So go and see it."

Taylor Russell é a pérola escondida dentro da ostra nesta obra, com tanta sutileza no olhar e a voz sempre carregada de emoções, a atriz (que está apenas no início de sua carreira) já pode ter cravado Maren como uma das personagens que ficará marcada em sua filmografia, a química criada com o já queridinho de Luca, Timothée Chalamet (que também produz o filme) é a alma de “Até os Ossos”, sem esse fator não haveria possibilidade alguma de triunfo da produção. Dois outros nomes que brilham são o de Michael Stuhlbarg e Chloë Sevigny, que mesmo com pouco tempo de tela, trazem dois dos momentos mais sombrios do longa. Mas é Mark Rylance que engrandece cada segundo de tela e eleva a potência máxima a tensão e bizarrice de seu personagem Sully, uma figura extremamente enigmática do qual nunca sabemos exatamente suas intenções, o que o torna ainda mais apavorante.

O longa carrega uma estética muito própria e adequada ao contexto em que se insere: dotado de zooms, fade outs e dissolves de imagens, Guadagnino e seu editor Marco Costa nos transportam de forma natural e potencializam esta história como poucos diretores contemporâneos conseguem tão facilmente, e claro, um grande protagonista aqui é o uso de película na fotografia divina de Arseni Khachaturan, que exalta a beleza do natural no coração da américa. Outro fator de extrema importância aqui é a música de Trent Reznor e Atticus Ross, a dupla responsável pelas fantásticas trilhas de “Garota Exemplar”, “A Rede Social” e “Soul” (com essas duas últimas lhes rendendo um Oscar). Aqui, Reznor e Ross abandonam os característicos baixos e sintetizadores para adotar uma sonoridade muito mais acústica, dotada apenas de guitarras e pianos. Tal decisão pode ser interpretada como uma adaptação a atmosfera oitentista e rural do filme. Por vezes a trilha pode parecer tímida, mas o fato é que os músicos sabem exatamente quando Luca os necessita para transformar simples diálogos em momentos especiais — Em particular a faixa (You Made it Feel Like) Home cantada pelo próprio Trent na poderosa e emocionante cena final do longa.

Não é surpresa que um filme com tantos nomes talentosos envolvidos em sua produção consiga se sobressair como um dos melhores de 2022, surpreendente, no entanto é a capacidade de Guadagnino em seus 51 anos, conseguir ressoar tão fortemente com a Gen-Z. Seus trabalhos mais recentes como “We Are Who We Are”, minissérie da HBO, e “Suspiria”, remake do clássico de Dario Argento, em toda sua imagética e temas denotam um fascínio deste público dificilmente visto tão fervorosamente em obras tão singulares, e pelo que me parece, todos os sinais apontam para que “Até os Ossos” repita tal fato.

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