Gata por Lebre

Sylvia Roque
10 min readOct 20, 2022

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— Amanda, por favor!! Não me pressiona, hoje não vai dar, ok? A Nádia me chamou para ir na casa dela agora, estou me arrumando para sair e a droga do meu rímel acabou. Ainda vou ter que parar em algum lugar para comprar outro…
— Amanda! Não insista, não vai rolar. Vou pegar um trânsito pesado na Washington Luís. Não tenho helicóptero, não vai dar. Tenho que ir até a Chácara Flora em hora de trânsito ver o que aquela chata quer… Hoje não vai dar, não vou te enrolar, se vira! A gente vai se falando, ok?
— Amanda, filha, vê se entende. Tchau!

“Chácara Flora” o escambau!! A Nádia morava no Socorro mesmo, depois da ponte. Ter que sair de Moema para ir até lá era mesmo uma chateação. Quando Marília chegou na casa, Nádia estava visivelmente depressiva e intoxicada. Estava enrolada numa manta no sofá, a televisão estava ligada sem som num canal de desenhos animados. O sol tentava entrar pela fresta da cortina, mas dava para perceber que Nádia não tomava banho há alguns dias pelo cabelo oleoso e despenteado. A mesinha de centro era uma confusão de lenços de papel, uma caixa de pizza com caroços de azeitona e bordas roídas, o cinzeiro cheio de cinzas e bitucas, o azulejo e o cartão da coca, a garrafa de uísque pela metade e o balde de gelo com água dentro e em volta…

Marília tinha morado naquela mesma casa anos atrás, mas agora era uma outra a atmosfera, não tinha saudades daquele lugar. Nádia tinha feito reformas, contratou um decorador e renovou os ambientes. E ali estava ela, em frangalhos. Marília acomodou-se numa poltrona e se dispôs a escutar a amiga, que não sabia como expressar seu sofrimento. Balbuciava frases sem nexo ou muito subjetivas…

Enquanto tentavam conversar dava para perceber na rua um certo burburinho das crianças da vizinhança. Lá era uma rua boa num bairro simples, mas a presença de um carro importado e blindado era alguma coisa incomum naquele começo dos anos 90. Como Nádia era casada com um dos membros de uma banda de forró, de vez em quando a rua ficava tomada desses automóveis estacionados. Era quando o pessoal se reunia ali para ensaiar. O terreno da casa era grande, Nádia mandou construir no fundo do quintal um pequeno prédio que abrigava um bom estúdio com proteção acústica, um banheiro completo, além de um dormitório com beliches e uma pequena cozinha que daria suporte à área de churrasco no jardim. Assim o pessoal da banda podia ir direto sem entrar na casa e ficar à vontade.

Nádia também estava percebendo o alvoroço e tranquilizou a amiga. Só que o burburinho estava atrapalhando a intimidade das amigas. Marília notou que havia alguém junto à porta de entrada e a abriu de supetão. Ali estava o guarda de segurança da rua trancando o portão de acesso do corredor lateral até o quintal, dizendo que não era nada e que já estava indo embora.

— Está tudo bem, Marília, o seu Gervásio tem as nossas chaves para usar o banheiro. Não se preocupe.

Mas tinha alguma coisa de errada ali, Marília não estava confortável com isso. Era estranho que um guarda de segurança tivesse acesso a uma parte da casa onde estavam os equipamentos caros da banda. Tentaram continuar a conversa, mas o burburinho não se acalmava.

As amigas decidiram ir à sala de almoço para tomar um café e comer alguma coisa, mas tudo que acharam foi um pacote de biscoitos de água e sal esquecido no armário e uma manteiga velha quase rançosa. Nádia afinal revelou que seu problema era a ausência do Milton, seu marido. A solidão estava pesando.

Milton era um músico excepcional na banda. Tocava o acordeão. Era um belo negro musculado e calvo que adotou o nome artístico de “1000tons”. Ele sabia da sua beleza e do seu potencial na banda, mas se mantinha discreto. Ele se destacava nos solos, levava a plateia à loucura e em seguida voltava ao seu lugar. Era muito querido pelas fãs da banda. Ele tinha um charme peculiar.

Foi quando Marília teve um sonho erótico com o marido da sua melhor amiga que ela percebeu isso. A forma que ela encontrou para resolver o problema foi na Europa. A pretexto de visitar um museu famoso em Amsterdam, ela foi sozinha ao Bairro Vermelho e lá escolheu o negro calvo mais belo que encontrou. Pagou em euros cada cêntimo e desfrutou ao máximo de cada milímetro daquele rapaz de programa. Repetiu a dose no dia seguinte e em mais outros dois. No último dia em Amsterdam ela se deu de presente uma pulseira em prata para nunca se esquecer daquelas boas fodas “terapêuticas”

— Querida, é ótimo que ele não esteja aqui. A banda está indo bem, não faltam contratos pelas cidadezinhas, eles estão ganhando dinheiro. Vida de músico é assim mesmo, de cidade em cidade, só voltam para casa quando dá…

Marília argumentava com a amiga, decidida a fazer Nádia se recuperar daquele estado de espírito deprimente.

— Mas, Nádia, veja. Você é a mulher do Milton. Se você ficar aqui, enrolada num cobertor, imersa nessa falta de estima, fedida, feia, toda carente e chata, é óbvio que ele não vai ter vontade de voltar para casa e ficar. Tá cheio de mulher bonita e gostosa em volta dele. Percebe??

— Você tem que reagir. — continuou Marília. — Vá tomar um banho. Vou escolher uma roupa para você e vamos para um spa de hotel, vou tentar marcar já alguma coisa e lá a gente conversa mais. Enquanto a amiga estava no banho, Marília viu pela janela do quarto que as crianças já não estavam mais tão alvoroçadas com o seu carro importado parado na rua. Abriu os armários da amiga, mexeu nos cabides e pegou um vestido confortável e fácil de vestir para aquele dia. Os sapatos de Nádia eram impecáveis e mas optou por um tênis branquinho que estava bem na moda. Quando abriu a gaveta das bijuterias, viu ali uma pulseira de strass um tanto estranha, muito espalhafatosa para o gosto da amiga. Então deixou que ela mesma escolhesse o que usar com aquele vestido.

Quando saíram, seu Gervásio deu um tchauzinho para Nádia e Marília reparou numa senhora de idade que colava um papel com a foto de um gato perdido no poste. As crianças jogavam bola na praça e não notaram que o carro importado estava indo embora.

Imersas numa banheira de lama morna, a princípio nojenta e em seguida muito acolhedora, Marília disparava sugestões:
— Pense em fazer um curso bacana. Quem sabe de gastronomia? Já pensou em aprender a fazer sushi?? Ou talvez um curso de Astrologia, você ia ganhar rios de dinheiro com isso! Defesa pessoal, krav magá é tão legal… Cursos não faltam. São todos muito interessantes. Iriam ampliar seus horizontes. Ou um bom curso de marketing digital? Já estamos no futuro!!

Nádia sorria desanimada, nenhuma dessas ideias a motivavam. Marília percebia que talvez a amiga precisasse de ajuda profissional, talvez não fosse apenas saudades do marido, mas sim uma depressão mais séria. Tinha saído um artigo sobre isso numa revista Claudia recente…

Relaxadas da massagem com óleos e pedras quentes, as amigas foram almoçar num restaurantezinho calmo próximo. Marília ainda acrescentou:
— Termine um bom curso desses que te dou de presente aquela bolsa Birkin da Hermès que você tanto quer. Ou aquela Chanelzinha matelassê com alça de corrente. Só quero que você abra os seus horizontes.

A mousse diet de maracujá de Nádia estava pela metade quando ela começou a falar quase sem voz, num fluxo que tinha que jorrar, que não podia ser interrompido… Olhava fixo para a toalha da mesa, apertava umas migalhas de pão com os dedos.
— Eu não sei o que se passa comigo, Marília… Tem horas que nem sei… O Milton ganhou uma calopsita e quem cuidava dele era eu, sabe? Limpava a gaiola, dava ração e o passarinho cantava comigo quando eu pegava no violão, sabe? Era a coisa mais linda. Alguns dos meus melhores arranjos para a banda foi o Michel que assobiou. O nome dele é esse porque teve um dia na MTV que tocou essa música dos Beatles, lembra?
Michelle, ma belle, sont les mots… — cantarolou a amiga.
— O Michel ouviu a televisão e começou a assobiar junto, inventando umas harmonias…
Nádia fez uma pausa e sem tirar os olhos da toalha, continuou a falar.
— A gaiola fica na área de serviço do lado da cozinha, sabe? Teve uma noite que eu não cobri com o pano porque estava muito quente, sabe? No dia seguinte era só sangue e penas no chão…
— Quando foi isso?
— Faz uns 3 ou 4 dias, sabe? Foi a maldita gata da Dona Jacira, uma velha de birote que se recusa a depilar o queixo e o bigode, a perna dela é mais peluda que uma aranha… A maldita da gata toda hora estava no meu quintal, sabe? Pulava o muro e ficava lá na grama perto da churrasqueira… Tomando sol, se lambendo…
— O que foi que você fez, Nádia? — Marília estava lívida, já adivinhando o que a amiga responderia.
— Não sei. Eu não sei o que aconteceu… Quando dei por mim, parecia que eu estava na fazenda do meu avô limpando um coelho que ele tinha caçado, sabe? Já tinha esfolado o animal, separado a cabeça e estava cortando a carne em pedaços pequenos.
Fez uma pausa e continuou…
— Não tinha sangue, tinha escorrido todo pelo ralo da pia de inox. O pêlo e a cabeça estavam num saco de lixo, tudo limpinho, imaculado. Nem o meu avental estava manchado. Não sei explicar… A coleira de strass da gata estava no meu braço como se fosse pulseira…
— Alguém te viu processando a gata, Nádia?
— Não sei. Os muros são altos, mas qualquer pessoa nos quartos de cima das casas do lado consegue ver alguma coisa do meu quintal…
— E o guarda, Nádia, ele não entrou para usar o banheiro?
— Não, ele só trabalha de manhã até o meio-dia, e isso foi de tarde. A carne está no freezer, é “coelho”. Depois é só marinar bem puxadinho nos temperos e grelhar… Os rapazes vão adorar…
— E o passarinho, onde está?
— No quintal. Comprei uns vasinhos de gerânio, sabe? Fiz um canteiro
junto ao muro, ele está lá…
Marília respirou fundo enquanto pensava se devia ou não dizer.
— Nádia, você gostaria de falar com a minha terapeuta? Ia ser bom para você entender essas emoções todas…
— Não sei. Não sei! Não sei…
— Mas vamos sair daqui e vamos lá para casa. Hoje você fica comigo, não quero que você fique sozinha. A Amanda vai adorar te ver, vai ser bom para vocês duas.

Enquanto dirigia o carro japonês de volta para Moema, Marília pensava num plano de ação. Queria recuperar a coleirinha de strass da gata e tentaria marcar um horário de emergência para Nádia com a psicóloga. Não foi difícil nem uma coisa nem outra. A terapeuta poderia atendê-la às 16:00 daquela mesma tarde e Nádia deu as chaves da casa sem resistência quando Marília propôs que a sua empregada fosse lá no dia seguinte fazer uma faxina.

Levou a amiga até o prédio do consultório da terapeuta e foi numa drogaria próxima onde comprou um rímel novo, luvas de borracha, um limpador multi-usos, uns panos de limpeza, sacos de lixo e uma bolsa térmica. O trânsito ainda estava tranquilo e fez o carro ir rápido pelas avenidas outra vez até a “Chácara Flora”.

Parou o carro em frente à casa, abriu o portão e entrou na casa sem que a vizinhança o notasse muito dessa vez. Foi para o quintal. Quando passou pela área de serviço, Marília verificou se havia roupa dentro das máquinas de lavar e secar que estavam vazias, mas reparou que a gaiola coberta ainda estava lá. Será que Nádia pretendia comprar outra calopsita para substituir Michel?

Entrou na cozinha do anexo rapidamente, fechou a cortina, e enquanto calçava as luvas, examinou bem a bancada e a pia. Não tinha um único pêlo da gata. Borrifou tudo com o limpador, inclusive a manopla da torneira e enxugou com o pano que tinha comprado. Fez a mesma coisa nas portas dos armários e gavetas. O chão estava limpo, mas repetiu a operação usando um pano novo no rodo que achou por ali. Examinou o lixo da cozinha, estava vazio. Procurou pelos aventais, todos estavam limpos e sem manchas. A chave do cadeado do freezer estava numa das gavetas e não teve dificuldade em achar o pote hermético do “coelho”. Envolveu o pote num saco de lixo ainda dobrado e colocou o pacote protegido dentro da sacola térmica. Trancou o freezer, a porta da cozinha e entrou na casa.

No quarto da amiga no andar de cima do sobrado, pegou a coleirinha de strass de dentro da gaveta e quase gritou de susto quando viu no espelho o reflexo de um gato branco bocejando de preguiça na cama de Nádia e Milton. Virando-se, viu que a cama estava vazia e perfeitamente desarrumada como a deixaram pela manhã. Trancou toda a casa com o coração acelerado e as mãos tremendo do susto, e foi buscar a amiga na psicóloga.

Desfez-se do saco de lixo com os panos de limpeza e as luvas numa lixeira pelo caminho. Mal podia esperar para chegar em casa para tomar um bom copo de vinho. Conversaria amenidades com a amiga, proporia irem juntas para Miami fazer compras ou passar uns dias entre caminhadas e dieta num spa no interior…

A psicóloga, talvez por pensar que Nádia fosse um caso de personalidade borderline, optou por indicar um colega. Marília suspeitava que Nádia, ela mesma, tinha matado o passarinho numa tentativa de chamar a atenção de Milton ou de fazê-lo sentir-se culpado por deixá-la sozinha, às vezes sem retornar nenhum telefonema, abandonada. Esses ou quaisquer outros pensamentos distorcidos da realidade, acabaram ferindo mais a ela mesma. Nádia nunca pensou em pegar o carro ou um avião para encontrar o marido na turnê da banda. Para disfarçar esse emaranhado de sentimentos confusos, Nádia transferiu a culpa para a gata e deu fim a ela num outro impulso descontrolado. Marília não ficaria surpresa se Nádia fosse internada. Com certeza, ela surtaria algumas outras vezes…

O pote da carne do “coelho” ficaria muito bem escondido no fundo do freezer de Marília dentro de um pote plástico maior e com outra etiqueta por cima. Talvez algo como “creme de brócolis”, que ninguém pegaria para jantar, mesmo que fosse a única coisa disponível. A coleira de strass ganharia uma caixinha e iria para dentro do seu cofre no banco. Algum dia poderia ser interessante usá-la contra Nádia, ou para chantageá-la. Nunca se sabe o dia de amanhã.
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Enviado para o Desafio Criativo, tema de outubro/22: “As emoções estão em alta!”, do P.E.C.
🎧 Michelle — Paul McCartney cantando para Michelle Obama — https://youtu.be/wW6Qna9F7QE

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Sylvia Roque

O que já fui ou quem penso que sou, é diferente de quem eu gostaria de ser. Nasci no Brasil, em São Paulo, e desde 2004 vivo em Portugal. Agora posso escrever.