o deus que sorri
- Eu aposto que deus não tem bloqueio criativo. — Disse Ana, batendo a ponta do lápis sobre o papel em branco.
- Lá vem você com essa conversa de deus de novo. Disse Dri, impaciente.
Ana tinha a insistente mania de meter deus em tudo, mesmo quando a situação parecia não ter relação alguma com a tal divindade. Como quando ela e Dri caíram após uma tentativa frustrada de andar de patins. Na ocasião, em meio a gargalhadas, Ana comentou que deus estava se divertindo com aquilo, afinal, era um cara bem humorado.
- Dri, o cara pensou, nos detalhes de aparência e comportamento desde os seres microscópicos até os imensamente descomunais. Você já parou pra pensar na complexidade do nosso cérebro? — Ana falava com uma pressa só sua e os seus gestos ilustravam o que as palavras não transmitiam.
- Eu só consigo pensar na inutilidade do meu cérebro no momento, porque o prazo que os investidores deram para que possamos entregar o roteiro desse espetáculo, está quase no fim e nós não temos absolutamente nada!
- É isso! Temos que nos inspirar em deus!
- Você realmente não ouviu nada do que eu te disse? Você sequer acredita em deus?
- Claro que eu ouvi e essa não é a questão aqui. A questão aqui é que o deus é um puta cara criativo e eu quero criar como ele. Ana levantou e começou a depositar algumas palavras que lhe vinham a sua mente no quadro pendurado na parede do escritório.
- Dri, eu estou falando da grandiosidade, da complexidade, dos mínimos detalhes bem programados e escritos. Vou meter todos os animais que existem e que não existem nesse roteiro. As raças e os gêneros, vou expor todos! Eu quero um novo big bang!
Conhecendo bem a pessoa com quem casara, Dri não tinha dúvidas que Ana não desistia com facilidade quando enfiava algo na cabeça e a melhor maneira de livrar a esposa de uma ideia ruim, era mergulhar de cabeça junto com ela.
No entanto, para sua surpresa, a ideia não era ruim. Mostrou ser boa, muito boa. Promissora. O tal do deus de Ana, enfim havia sorrido para Dri. Agora ela acreditava que ele também sorri.
Os dias se passaram e as duas trabalharam feito loucas na pesquisa: juntaram recortes, entrevistaram pessoas, assistiram documentários, ouviram músicas. Elas até foram a um zoológico (péssimo lugar para saber sobre os reais hábitos dos animais).
Elas também estavam escrevendo muito e enfim o roteiro começou a ganhar corpo e personalidade. Deus havia partilhado a sua genial capacidade de criar.
Só uma coisa não vinha a tona: o nome da obra. O que não era um grande problema no momento, afinal, os investidores aceitaram o nome provisório dado por Dri: “a nossa coisa”.
Após longos e exaustivos seis meses, em que Ana e Dri deram o sangue para a finalização daquele projeto, perceberam que não havia necessidade de mudar nem se quer uma vírgula.
- Agora, só falta uma coisa para que possamos dar o próximo passo nesse projeto, meu amor. Qual será o nome do espetáculo?
Com um sorriso no rosto e lágrima marejando os olhos, Ana digitou as palavras que intitularam o seu roteiro: “Eu não havia dito que não tinha um jacaré lá.”
proposta 3: escrever um conto que termine com a frase “Eu não havia dito que não tinha um jacaré lá.”
Esse texto foi escrito para o Clube Entre Escritas. Desafio 2 — Poesia, conto e muita criatividade com Anderson Shon. Saiba mais aqui.