O corpo da mulher como território em disputa

Tainá Muhringer Tokitaka
4 min readSep 17, 2019

--

Gerda Taro

I.

Quando os Cangaceiros do Grupo de Lampião invadiam algum território, a praxe era estuprar as mulheres presentes. A prática do estupro coletivo, por eles chamadas de “gera”, era vista como forma de humilhação para os demais homens presentes no local.

Em guerras, essa é uma prática recorrente. Ao conquistar um território, estuprar as mulheres. Foi assim na Segunda Guerra Mundial, nos Balcãs, no Congo. São os chamados “estupros de guerra” e tem como objetivo minar psicologicamente o inimigo.

O corpo da mulher é um território simbólico a ser conquistado. Homens, ao dominá-las, marcam posse, tornam-se os novos donos. E assim, humilham outros homens — aqueles do território conquistado.

O estupro de guerra não é sobre sexo. Não é sobre as mulheres. É sobre uma disputa de poder entre homens, na qual somos instrumento.

II.

Em “A Política Sexual da Carne”, a ativista estadunidense Carol J. Adams aproxima o consumo de carne em nossa sociedade com a violência contra a mulher. Associa o pensamento patriarcal com o consumo de carne animal. Uma sociedade que retalha a carne: dos animais, das mulheres.

A redução da mulher a um pedaço de carne é algo que constantemente se escuta. Como argumento, parece sedutor. A carne como metáfora direta. Porém há algo que escapa a tal ideia: a mulher, nas sociedades, é exterminada pela ameaça que representa. Nunca é apenas um pedaço de carne.

Liana foi acampar com o namorado quando foi estuprada sequencialmente e morta. Teve seus mamilos arrancados, naquilo que foi chamado de “requintes de crueldade”.

Nos casos de feminicídio — assassinatos de mulheres por motivações de gênero — essa é uma marca comum. Matar não basta. É preciso ferir o corpo, nas regiões associadas à prática sexual ou à feminilidade. Rosto, ventre, seios, vagina. É preciso ferir fisicamente para marcar o ódio.

Já Nadia foi morta pelo companheiro por trinta e seis facadas. Não queria mais estar com ele. Uma vez não bastava. Foram preciso trinta e seis. Afinal, Nadia era sua posse. Era território dele. Uma vez perdido, que ninguém mais o possuísse.

Há algo de pessoal na violência contra a mulher, que não segue a lógica do extermínio pura e simplesmente. É sobre manter o aspecto pessoal. Se numa guerra, homens viram apenas corpos a serem exterminados, o estupro parece lembrar: são indivíduos passíveis de serem humilhados. E, em nossa sociedade, para conquistar um território, é preciso primeiro assegurar o controle sobre as mulheres como posse primeira. O requinte de crueldade é um lembrete: mesmo após a morte, posso continuar a te ferir. Seu corpo ainda me pertence.

III.

Na guerra, a mulher tem seu papel assegurado. Afinal, contar com a participação das mulheres é uma forma de assegurar unidade política e garantir o apoio da população.

Geralmente, a mulher não é bem vista no front. Esse papel é reservado aos homens. O herói de guerra é um lugar masculino. Na guerra, a figura da enfermeira representa a mulher ideal: aquela que está presente para cuidar dos homens feridos, alimentá-los, ampará-los e curá-los. A mulher por trás do herói.

Na América Latina do século XIX, as mulheres foram fundamentais para as guerras de independência e, posteriormente, para a consolidação dos novos estados-nações. Findadas as guerras, o imaginário social continuou a valorizar as mulheres com seus papeis de apoio: eram mães. Esposas. Cuidadoras.

No Uruguai do mesmo período, a figura da mulher como filha era especialmente valorizada. Era a jovem, virgem, cantada pelos poetas do romantismo: ela representava a promessa de uma nova terra destinada aos homens. A lembrança de que há sempre um novo território a ser conquistado.

IV.

Toda relação de gênero é também uma relação de poder. Toda construção de papéis de gênero é sempre uma construção social.

Mesmo quando não há guerra, mantém-se as táticas nela utilizadas como forma de controle. É preciso lembrar: manter a dominação sobre a mulher é também forma de garantir o controle social.

O presidente profere: “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. Afinal, o corpo da mulher está à serviço, antes de tudo, da nação. O corpo da mulher é um território pronto a ser proclamado pelo homem.

Eu saio na rua, meu corpo está em disputa. Ele é visto como um território a ser assegurado. Eu sou conquistada a cada dia. Ou, a cada dia, me lembram disso. Convivo com os requintes de crueldade presentes nos olhos de tantos homens que cruzam na rua comigo todos os dias.

Eu me deixo conquistar para sobreviver. Em cada relação, em quando me calo, quando aceito, quando é mais fácil obedecer. Há que manter a boa conduta. Meu corpo como território assegurado.

Se escapo à lógica, sou ameaça à estrutura. Se me recuso, sou louca, errada, sozinha, desviante, perigosa. Num mundo que me conquista segundo uma lógica bélica, minha batalha é pela recusa a ser colonizada.

Cada dia, tento desenhar meu próprio mapa. Ele é falho, as linhas tremem. O corpo treme. Ora de alegria, ora de prazer, ora de cansaço ou de medo. Tem dias que consigo, outros não. As linhas oscilam. Na rua, dentro de casa, em cada local que ando, há sempre uma pequena batalha nova. Meu corpo segue, eu resisto. Mas tenho que lembrar, sempre me lembrar, nunca esquecer, mesmo quando dói ou me ferem: como contraponto à guerra, me proclamo meu próprio território.

--

--