Ser feminista me fez uma escritora melhor

Taís Bravo
4 min readOct 13, 2016

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minha estante, agora, totalmente ocupada por escritoras

Por muitos anos me debrucei sobre a vida de grandes artistas: Bob Dylan, Cortázar, Caetano, Leminski… Devorei biografias e obras em busca de um caminho similar para mim. Ainda que eu absorvesse muita informação e me cercasse de inspiração, faltava algo. A vida desses homens não servia como parâmetro para o que eu poderia vir a ser. Em mim falava uma solidão e um desespero que não encontrava nessas vozes. Movida por essa falta, me voltei para as autoras que davam vazão aos meus desejos e agonias, principalmente, Clarice Lispector e Hilda Hilst. Se as obras dessas mulheres eram impecáveis, suas vidas transformaram-se em memórias duvidáveis. Mais do que escritoras ou mulheres, Clarice e Hilda — e tantas outras, Sylvia, Virginia, Nina… — são retratadas como figuras mitológicas: Enigmáticas e inatingíveis. Diante desse poder ambíguo que de tão forte torna-se arriscado, o receio se multiplica em questões: É possível ser como uma delas? Ou melhor, quero mesmo ser como essas mulheres? Quero me contagiar com essa arte sabendo que elas custam um preço alto? Quero uma vida difícil e solitária em troca de um legado que sobreviverá a minha morte?

A associação entre arte e loucura — ou arte e melancolia — já é um repertório banal na história. Mas a figura do artista como alguém fadado ao sofrimento e à solidão perde os ares românticos quando falamos de artistas mulheres. Por exemplo, enquanto os beats vestiram o ideal de artista transtornado como uma aventureira em que se mistura propositalmente arte e perrengue, as vestes da loucura e da instabilidade prenderam os movimentos de muitas mulheres. Um exemplo é Camille Claudel que, além de ter passado os últimos anos de sua vida em um hospício, teve a autoria de sua obra atribuída ao seu mestre e amante, Rodin. Se acompanharmos os nomes femininos que se destacaram na história da arte — que quase sempre é escrita por homens — percebemos que parece impossível ser uma artista e não ser também uma heroína.

Acontece que não quero pagar o preço. Quero a vida fora da idealização, sei o peso de carregar agonias e não quero usar minha arte para justificar ou exaltar uma vida trágica. Não sei se é ousadia ou ingenuidade, mas ainda quero acreditar que posso ser uma escritora e sobreviver a uma vida com as minhas necessidades humanas e banais: comer bem, pagar as contas, ter companhia, bancar algum conforto, ser mãe, cuidar da minha saúde física e mental. E aí, como é que faz? Desisto da criatividade e de tudo que me comove para bancar a burocracia de uma vida tranquila? Faço um malabarismo enlouquecedor para dar conta de responsabilidades e desejos que parecem contraditórios? Choro em posição fetal?

O único caminho que me parece possível para ser mulher e ser artista é fazer parte de um projeto — de vida — que vai além de mim. Encontrei algumas respostas e outras questões quando abandonei os mitos e me aproximei das mulheres em suas diferentes realidades. Durante o último ano participei de um projeto construído exclusivamente por mulheres. Eu não sabia, mas precisava com urgência desse tipo de espaço, uma necessidade intensa e silenciosa que só se tornou palpável pela prática. Quando comecei a escrever junto com outras mulheres uma revista feita para outras mulheres algo se quebrou dentro de mim. Algo como um receio, mas também como resistências. Me tornei mais forte e, no entanto, mais aberta. Como se, enfim, eu pudesse me despir de uma armadura que nunca escolhi para poder, pela primeira vez, me expor vulnerável e inteira. A auto-organização entre mulheres me ensinou que podemos ser cúmplices, nos apoiarmos e respeitarmos para poder viver como desejamos em uma sociedade que nos nega a escolha de qualquer desejo. Juntas nós vamos além da contemplação estética e do status, ultrapassamos os limites que definem a velha história da arte e iniciamos outra trajetória.

Acolhimento e liberdade são necessidades que parecem opostas, mas caminham juntas. O feminismo funciona como prática quando sentimos que pertencemos a algo e ainda assim mantemos nossa autonomia. Obviamente não é fácil, mas quando realizamos essa pauta quase impossível, revoluções — ainda que de proporções individuais — eclodem. Foi somente quando me envolvi em narrativas femininas — através de livros, grupos no Facebook, conversas com desconhecidas, blogues, revistas e qualquer forma de mídia — que pude distinguir a pluralidade e a força de nossas vozes. Desde então não há estereótipo ou ideal que me capture. Passei a criar meus próprios parâmetros.

Texto originalmente publicado na Fanzine 2 da #KDMulheres.

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