A nova lei dos agrotóxicos em 10 tópicos checados por alunos da Cásper Líbero

Taís Seibt
8 min readOct 31, 2018

Curso livre de fact-checking desafiou participantes a verificar frases de deputados na discussão do PL 6299/2002. Entenda o que muda, riscos à saúde, contaminação de alimentos e impacto do setor na economia a partir do que disseram parlamentares durante a votação do parecer da comissão especial sobre a nova lei dos agrotóxicos. Aprovado por 18 votos a 9, o projeto pode entrar na ordem do dia do Plenário quando o presidente da Casa decidir.

Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

*Por Aline Albuquerque, Betina Galperin, Fernanda Talarico, Joanna Cataldo, João Pedro Assiz, Marcela Roldão, Marcos Morcelli, Veronica Oliveira e Victória Ribeiro, com edição de Taís Seibt

Como parte das atividades práticas do curso livre Fact-checking — Técnicas para Apuração de Fatos, realizado em outubro na Faculdade Cásper Líbero, os alunos verificaram trechos de discursos dos deputados sobre a regulação de agrotóxicos no Brasil. Ao investigar as fontes dos dados citados pelos parlamentares, a turma — formada por profissionais de jornalismo e publicidade, além de estudantes de comunicação — identificou erros e inconsistências na apropriação de estudos científicos e levantamentos oficiais, revelando que ainda restam muitas dúvidas em torno do tema.

Os trechos foram extraídos das notas taquigráficas da sessão de 25 de junho de 2018, última etapa de tramitação do projeto até o momento. Na ocasião, a comissão especial criada para dar parecer sobre o PL 6299/2002 decidiu pela aprovação da proposta por 18 votos a 9. Com isso, o PL pode entrar a qualquer momento na ordem do dia da Câmara, para ser apreciado no Plenário e, se aprovado pela maioria dos deputados, segue para o Senado. Confira 10 tópicos verificados pelos alunos.

1. Registro de agrotóxicos leva de 8 a 10 anos? Nem todos.

Um dos argumentos dos defensores do PL 6299/2002 é a necessidade de acelerar o registro de pesticidas, para que o setor produtivo possa ter acesso mais rápido a novas substâncias para combater pragas. O deputado Adilton Sachetti (PRB-MT) argumentou que o registro de um produto no Brasil demora de 8 a 10 anos. Segundo dados da Anvisa, de fato, há processos de registro em andamento desde 2009, mas algumas substâncias são liberadas em menos tempo.

2. Mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil são proibidos na Europa? Menos, deputado.

Os parlamentares citaram várias vezes atlas do uso de agrotóxicos elaborado pela pesquisadora Larissa Mies Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP), como referência para comparações sobre o uso de pesticidas no Brasil e na Europa ou nos Estados Unidos — mas nem sempre com dados corretos. Segundo Chico Alencar (PSOL-RJ), “dos 52 biocidas mais usados no Brasil, 22 são proibidos na União Europeia”. Nilto Tatto (PT-SP) também afirmou que “mais da metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil já estão proibidos na Europa ou nos Estados Unidos”. A pesquisa de Bombardi mostra a proporção de agrotóxicos usados no Brasil e proibidos na União Europeia, por cultivo (ver mapas nas páginas 227 a 243 do estudo). Do total, cerca de 30% dos agrotóxicos usados no Brasil são banidos na Europa.

3. Nova lei pode liberar substâncias potencialmente cancerígenas? É verdade.

O deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) destacou que “a lei em vigor no Brasil sobre agrotóxicos proíbe que sejam registradas substâncias que ofereçam perigo de causar câncer, má-formação fetal e mutação genética”. De fato, a atual legislação proíbe o registro de substâncias que possam estar associadas ao risco de câncer, enquanto a nova lei prevê que sejam estabelecidos “níveis aceitáveis” de risco, o que é criticado pela Fiocruz, entre outras entidades ligadas à saúde e segurança alimentar.

4. Uso de agrotóxicos no Brasil aumentou 300%? Bem menos, deputado.

Uma das estratégias dos opositores à PL 6299/2002 é reforçar que o uso de pesticidas está em alta no Brasil, o que sustentaria a associação do projeto a interesses comerciais da indústria. O deputado Padre João (PT-MG) disse que “o Brasil só perde para a China no consumo de veneno”. Chico Alencar (PSOL-RJ) afirmou que o uso de agrotóxicos no Brasil “mais do que triplicou” e citou novamente o estudo de Larissa Bombardi para mostrar que “entre 2000 e 2014 o consumo de agrotóxicos no Brasil saltou de cerca de 170 mil toneladas para 500 mil toneladas, um aumento de 194% em 15 anos”. Contudo, tal referência não foi encontrada no estudo da pesquisadora. Um estudo do Ibama, no entanto, contém indicadores parecidos, embora com recorte temporal um pouco diferente: de 2000 a 2012, a venda de agrotóxicos cresceu 194,09%. Foram 162 mil toneladas em 2000 e 477 mil toneladas em 2012 — quase três vezes mais. Mas exagero maior cometeu Ivan Valente (PSOL-SP) ao dizer que “de 2002 a 2012, houve um aumento de quase 300% no uso de agrotóxicos no país”. Mesmo tomando como base outro levantamento, a 6ª edição dos Indicadores de Desenvolvimento Sustentável Brasil (IDS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o uso de pesticidas em 2002 foi de 2,7 kg/ha (quilos por hectare), e em 2012 esse número chegou a 6,9 kg/ha, o que equivale a um aumento de 155,6% — e não de 300%.

Foto: Thiago Gomes/Agência Pará

5. Qual a proporção de resíduos de agrotóxicos nos alimentos? Depende.

No debate sobre a contaminação dos alimentos, os parlamentares lançaram mão de diferentes estatísticas, muitas vezes com sentidos opostos. O deputado Bohn Gass (PT-RS) citou um estudo do Instituto Biológico do Estado de São Paulo para sustentar que “60% dos alimentos que a população paulista consome têm resíduo de agrotóxico” — sendo que 36% continham agrotóxicos banidos no país. Os dados estão corretos, porém o estudo analisou amostras não só em São Paulo, mas também em Brasília — e foi realizado a pedido da organização não governamental Greenpeace. Já o deputado Sérgio Souza (MDB-PR) lançou mão de outro dado: “o que existe de fato é um estudo da Anvisa que analisou mais de 12 mil produtos agrícolas no ano de 2016 e constatou que 99% deles não tinham nenhum resíduo [de agrotóxicos]”. De fato, o estudo da Anvisa analisou 12.051 amostras de alimentos, porém concluiu que 99% delas estavam livres de resíduos de agrotóxicos que representam risco agudo para a saúde. Isso significa risco de intoxicação em 24 horas após o consumo, mas não quer dizer que as amostras estavam totalmente livres de resíduos, como sugeriu o deputado. Na verdade, 42% das amostras não apresentaram nenhum tipo de resíduo dentre os agrotóxicos pesquisados pela Anvisa. Em 38,3% dos casos foram encontrados resíduos de agrotóxicos dentro do Limite Máximo de Resíduos (LMR) estabelecido pelo órgão, 3% das amostras tinham resíduos acima do LMR e 18,3% apresentaram resíduos de agrotóxicos não autorizados para aquela cultura. O estudo foi feito entre 2013 e 2015, e divulgado em 2016.

6. Agrotóxicos inibem as defesas do corpo contra o câncer? Há evidências.

O deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) afirmou que “os agrotóxicos inibem as defesas do corpo humano contra as células cancerígenas”, usando como referência o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Em nota técnica, na qual repudia a PL 6299/2002, o Inca afirma que estudos evidenciaram efeito “favorável à diminuição na resistência a patógenos ou mesmo diminuição da imunovigilância com comprometimento do combate às células neoplásicas levando a maior incidência de câncer”. Ou seja, há evidências de que essas substâncias podem inibir as defesas do corpo, de acordo com estudos internacionais citados pelo Inca.

7. Agrotóxicos podem causar impotência, aborto e até câncer? Há evidências.

Segundo outro trecho do documento do Inca lembrado por Ivan Valente (PSOL-SP), “dentre os efeitos associados aos agrotóxicos estão infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxidade manifesta em distúrbios cognitivos, quadros de neuropatia e de desregulação hormonal e maior incidência de câncer”. O Inca referencia uma série de pesquisas que sustentam tais associações dos agrotóxicos com riscos à saúde. No caso dos distúrbios hormonais, a nota complementa que, em adolescentes, a exposição pode “causar impacto negativo sobre o crescimento e desenvolvimento dentre outros desfechos”.

8. Agrotóxicos podem causar doenças como Alzheimer e autismo? Há controvérsias.

Outros males possivelmente associados à exposição a agrotóxicos foram citados pelo deputado Chico Alencar (PSOL-RJ): “Já que falam tanto em ciência, quero citar Stephanie Seneff, uma cientista sênior do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, lá dos Estados Unidos. Ela diz o seguinte: o uso excessivo de glifosato — que é muito importante para os transgênicos — em nossa alimentação está causando doenças como Alzheimer, autismo, câncer, doenças cardiovasculares e deficiências da nutrição, entre outras”. Na verdade, a pesquisa de Seneff consiste em um levantamento sobre o aumento de diagnósticos de autismo a partir dos anos 1990: uma matéria publicada no Public Health Perspectives elenca uma série de relatórios onde se confirma que o aumento de casos está ligado ao aumento de diagnósticos, e não de uma epidemia do transtorno. Foi feito um cruzamento de dados e cálculos matemáticos, não uma pesquisa bioquímica e medicinal aprofundada — a pesquisadora é uma física com trabalho científico focado em inteligência artificial. Contudo, o glifosato, comumente usado em transgênicos, já foi categorizado pela Iarc, órgão da ONU voltado para a pesquisa de câncer, como possível causador de tumores.

9. Agrotóxicos podem contaminar o leite materno? Sim, mas em níveis baixos.

Outra referência citada por Ivan Valente (PSOL-RJ) foi a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cujos estudos “mostram que a contaminação por agrotóxico atinge o leite materno, o sangue e os alimentos”. De fato, existem pesquisas que comprovam a presença de agrotóxicos em leite materno, porém não há vínculo entre os estudos e a SBPC, como aponta o deputado. O que ocorreu foi um manifesto assinado pelo órgão e veiculado em sua própria publicação, o Jornal da Ciência, às vésperas da primeira votação do PL 6299/2002. Embora existam evidências de contaminação no leite materno, a pesquisadora Cláudia Schröder, em entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou que os níveis encontrados nas pesquisas são inferiores aos usados como referência pela União Europeia e pelos Estados Unidos.

Foto: Ivan Bueno/APPA

10. A produção rural puxou o crescimento do PIB brasileiro? É fato.

Defensor da nova lei, o deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS) lembrou a importância do setor rural para a economia brasileira: “Se o nosso PIB cresceu este ano, foi graças a esses produtores rurais”. O argumento econômico é um dos apelos da bancada ruralista na defesa do PL 6299/2002. De fato, os indicadores do PIB gerados pelo IBGE mostram que o setor agropecuário foi o que mais cresceu em 2017, puxando a recuperação do PIB nacional. Além disso, a safra recorde 2016/17 com 238 milhões de toneladas de grãos, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), contribuiu significativamente para a estabilidade de preços no Brasil no período.

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Taís Seibt

Jornalista diplomada, doutora em comunicação, amadora de vôlei e cantora nas horas vagas