Como fazer a revisão de um texto
Um texto bem escrito costuma ser resultado de uma boa revisão. Arrisco dizer que a habilidade mais importante para um escritor não é a de elaborar metáforas complexas e criativas, tampouco a de conduzir a escrita com uma voz autêntica, mas sim a de fazer a revisão e edição do próprio material.
De início, penso ser necessário ter clareza sobre o que estamos escrevendo e do efeito que queremos atingir com a nossa escrita. O texto é ferramenta, não é algo que acontece por mágica. Devemos, portanto, ter clareza da nossa intenção ao escrever. É essa clareza que nos ajudará a encontrar o melhor jeito de escrever um texto ou contar uma boa história.
O grande problema da revisão de textos é que só se aprende fazendo, então bate aquele medo de não fazer direito. A real é que tudo só se aprende fazendo, mas com outras coisas é mais fácil acompanhar as pessoas em ação. Justamente pela importância de ver fazendo é que o exemplo da revisão de textos é uma das bases dos encontros do Ninho de Escritores (as outras duas são os encontros em si e os exercícios praticados).
Neste texto, mostro o processo de revisão numa história escrita para um dos encontros do Ninho de Escritores. A minha ideia é fazer uma série de textos oferecendo dicas de escrita por meio da revisão, em paralelo à série sobre escrita criativa.
Antes, porém, uma ressalva: não tenho a pretensão de fazer uma correção profunda nem de ser perfeito. Minha proposta é tão somente apontar alguns caminhos e compartilhar o que faço durante a revisão dos textos.
O texto antes da revisão
Esta proposta de escrita para o Ninho de Escritores teve 300 palavras como o limite máximo. O tema do texto era a história contém um personagem fantástico. A autora, Bianca, deu permissão para que eu esmiuçasse o texto dela publicamente. Mais textos dela podem ser encontrados no site Digavando.
Começaremos com o texto original, sem quaisquer acréscimos ou mudanças.
Meu cachorro vomitou no sofá. De novo. Ele tem labirintite. Eu nem sabia o que era isso até uns anos atrás, quando o levei no veterinário. Recebi uma lista de doenças que na época meu recém adquirido animal tinha. Pressão alta, infecção urinária, epilepsia, asma, rinite, intolerância a lactose, labirintite, aracnofobia. Eu nem sei como esse bicho sobreviveu. Tomava mais remédio que a minha avó doente, e vive espirrando e vomitando na casa toda. Sobe no sofá, ataca a labirintite e vomita. Ficou muito estressado, tem crise de epilepsia. Nem tenho mais tapete, porque cansei dos acessos de espirro por causa do pó. E deus me livre de aparecer aranha em casa! Pensei em chamá-lo de Zé Meningite. Mas acabou ficando só Zé mesmo. O farmacêutico acha que tenho um filho, coitado, e que é todo estragado. Já foi internado tantas vezes que fiz amizade com a recepcionista. Ela é linda, toda delicada e meiga. Adora o Zé, e ele faz festa toda vez que a vê. Às vezes tenho a impressão de que ele está criando laços com ela. Saímos para tomar um sorvete um dia desses, eu, ela, o Zé e a Dolly, a Poodle mais feia que já vi. Conversamos a tarde toda, estendemos o sorvete para um jantar, e acabamos conversando na porta da sua casa. Ele começou a resfolegar, indícios de uma crise de asma, e eu pensando agora não Zé. Eis que ela o convida pra entrar e beber uma água. E quando entramos, Zé corre para a varanda, se estende no chão e dorme, como se tivesse simulado uma crise só para entrarmos. Que cachorro fantástico.
Temos um texto bom, simples e que conta uma história inteira em exatas 237 palavras. É um texto engraçado e com um personagem que certamente pode ser definido como fantástico, ou seja, cumpriu a proposta. Mas será que pode melhorar? Pode. Um texto sempre pode melhorar.
O processo de revisão
A questão mais importante que precisa ser mexida no texto é o tempo verbal. O texto começa no passado (“o cachorro vomitou no sofá”) para mostrar algo que está acontecendo no presente. E tudo bem, o pretérito perfeito é o tempo mais utilizado para contar histórias, especialmente porque passa uma certa sensação de distância e de história concluída que costuma ser relaxante (ou no mínimo menos intensa e imediata que o texto no presente). Eis que, lá para frente, quando o Zé começou a resfolegar (que verbo forte, bom!), a recepcionista o convida para entrar, no presente. Essa mudança no tempo verbal confunde o leitor porque as duas ações estavam acontecendo no mesmo momento, então deveriam ser relatadas com o mesmo tempo verbal.
Por exemplo, escrever Encontrei Maria e ela escrevia uma carta é bastante diferente de escrever Encontrei Maria e ela escreve uma carta. O primeiro mantém tudo no passado, enquanto o segundo, trazendo para o presente, faz a ação de escrever uma carta algo mais duradouro, quiçá eterno. Um exemplo melhor: Vi o padre, ele bebia vinho. Duas situações pontuais: ver o padre e ele beber vinho. Se mudarmos um dos tempos, o sentido se altera: Vi o padre, ele bebe vinho. Trata-se de uma ação pontual e outra recorrente, que perdura no tempo; o padre sempre bebe vinho. É possível, quando utilizado para causar esse efeito. Quando a intenção é mostrar uma sequência de ações pontuais, porém, devemos manter o mesmo tempo verbal.
Preposições também são muito úteis, pois direcionam os verbos, mas o costume oral acaba alterando o seu uso, como no caso a seguir.
Eu nem sabia o que era isso até uns anos atrás, quando o levei no veterinário.
Parece coisa boba, mas levar no veterinário é diferente de levar ao veterinário. Se o veterinário fosse uma mesa, levar o cão no significaria colocá-lo em cima da mesa. É o velho exemplo do sentar à mesa e não na (sobre a) mesa.
Recebi uma lista de doenças que na época meu recém adquirido animal tinha.
Durante a revisão desta frase, encontramos um problema: ela coloca as palavras em uma ordem confusa a partir do que. O melhor jeito de não confundir o leitor é escrever na ordem direta: sujeito, verbo, objeto. Recebi uma lista de doenças que meu recém adquirido animal tinha na época. Essa construção, porém, dá a entender que o cachorro tinha essas doenças apenas na época, e que no presente não as teria mais. Como resolver? Eliminando o na época e colocando dois pontos antes de recebi. Desta forma, esta frase inteira torna-se uma consequência direta do que foi dito anteriormente, que no caso é: quando o levei ao veterinário.
(Além disso, “recém-adquirido” é uma expressão com hífen.)
O escritor precisa ensinar as regras do jogo para o leitor, e isso é feito durante o texto. Se o texto se apresenta de forma coerente e com uma estrutura perceptível, passamos a acreditar que o escritor sabe o que está fazendo e mantemos a suspensão da descrença (o efeito que nos permite aceitar e acreditar que há uma história no conjunto das palavras). Se o escritor escreve uma hora de um jeito e, logo depois, de outro, começamos a duvidar dele. É o que acontece se o tempo verbal muda no meio da frase, como mencionei antes. Mas também é o que pode acontecer com algumas sutilezas.
Sobe no sofá, ataca a labirintite e vomita. Ficou muito estressado, tem crise de epilepsia.
Para este trecho, sugeri que Bianca mantivesse uma consistência entre as duas ocorrências. Na primeira frase, temos um fato concreto (subir no sofá) seguido de uma consequência concreta (vomitar). Como o cachorro é todo doente, acredito que há outras situações similares nas quais ele também vomita, mas não é necessário escrevê-las todas. Eu, como leitor, preencho essa parte da história com a minha imaginação (e fico grato à escritora por me permitir fazê-lo). Ficou muito estressado, porém, não é concreto como subir no sofá. É uma consequência de algo, então temos uma consequência abstrata (ficar estressado) que leva a uma consequência concreta (crise de epilepsia). Minha sugestão: ao invés de ficar estressado, sugerir um fato concreto que deixasse o cão com epilepsia, como ouvir o caminhão do gás ou qualquer coisa semelhante. Desta forma, cria-se ritmo na escrita.
Já foi internado tantas vezes que fiz amizade com a recepcionista. Ela é linda, toda delicada e meiga.
O ritmo de um texto é ditado por muitos elementos e, em particular, pela maneira como eles são dispostos na escrita. Os parágrafos são uma das melhores ferramentas para indicar mudanças de tempo ou de espaço, ou de temática geral. Por isso, sugiro que abra-se um parágrafo novo a partir de Ela é linda, toda delicada e meiga. Fazendo isso, teremos dois momentos no texto: um primeiro parágrafo dedicado a apresentar o principal personagem da história (o Zé) e um segundo parágrafo explorando como sua série de doenças e malandragem ajudam o dono a entrar na casa da recepcionista.
(…) e dorme, como se tivesse simulado uma crise só para entrarmos. Que cachorro fantástico.
Um bom jeito de fazer o leitor gostar de uma história é convidá-lo a participar dela, a imaginar junto com o escritor. Isso é feito por meio da sutileza, ou seja, da entrega cuidadosa de informações. Quando damos ao leitor apenas o suficiente para que ele perceba o que está acontecendo, instintivamente o leitor seguirá o rastro e buscará completar o que falta. Por isso, sugiro cortar a frase como se tivesse simulado uma crise só para entrarmos. Eu, leitor, acredito que não sou burro: consigo entender por que Zé é dito um cachorro fantástico depois de dormir dentro da casa da recepcionista.
Além disso, há um ponto interessante no texto que pode ser potencializado pela eliminação desta frase. Durante a leitura, não sabemos quase nada sobre o dono do Zé. Pode ser homem, mas também pode ser mulher, assim como pode querer transar com a recepcionista, mas também pode apenas ter curiosidade sobre a sua casa. Não sabemos! Portanto, ao não explicar a simulação, deixa a expressão que cachorro fantástico aberta a várias interpretações, muitas das quais estarão corretas porque não são desmentidas pelo texto (e, numa história, tudo o que importa precisa estar no texto).
Para finalizar a revisão, um último comentário: eu terminaria o texto com um ponto de exclamação depois de fantástico, ao invés de um ponto final. O ponto final é modesto, silencioso, quase invisível. Ele para e não faz alarde. O ponto de exclamação, por sua vez, comemora, estoura fogos de artifício, transborda energia. Dizer Que cachorro fantástico! é muito diferente de dizer Que cachorro fantástico.
Depois da revisão
Depois que um texto é revisado, ele está pronto para ser revisado novamente. E de novo. E de novo, até o ponto em que o escritor decida parar. Não há uma regra para quando parar. O processo deve ser encerrado quando o escritor acreditar que alcançou o melhor possível dentro de suas habilidades neste momento. Não precisa ficar um Gabriel Garcia Marquez, basta ficar o melhor que poderia ser feito agora.
Amanhã, para um novo texto, uma nova revisão, aí sim podemos melhorar.
Mas, antes de qualquer coisa, é essencial revisar, corrigir os erros, buscar soluções. É nesse processo que nós verdadeiramente aprendemos a escrever. Todo o resto ajuda, mas a qualidade vem da revisão.
Este texto foi publicado originalmente no meu site pessoal em 31 de janeiro de 2015. Se nós ainda não somos amigos, prazer, meu nome é Tales Gubes, eu sou o fundador do Ninho de Escritores e atualmente tenho dois livros publicados sobre como melhorar a escrita (um deles também traduzido para o inglês). Meu negócio é ajudar outras pessoas a criarem histórias melhores. Quer conversar sobre isso? Eu também :)