A rede social e o Vale do Anhangabaú

Ou “Que raios de praça pública é essa onde as pessoas só querem brigar com estranhos?”

Guilherme Floresti
7 min readSep 29, 2024

Por mais contraditório que isso soe, é muito provável que o banimento do Twitter no Brasil seja uma das poucas coisas boas que o Kiko da Tesla tenha provocado. O pequeno cosmos do microblogging passou a contar com alternativas ao app do então passarinho azul: o Threads, um misto de versão corporate e humor acessível do Instagram; o Mastodon, que só importa para aquele seu amigo devoto de Linux ; e o Bluesky, o mais próximo do Twitter pré-Musk que se tem hoje.

Enquanto alguns insistem em acessar o Twitter via VPN, desfrutando do o crème de la crème da internet– como perfis de estátua greco-romana proferindo ideias fascistas ou o próprio Musk compartilhando imagens de gatos gerados por AI sob conspiração racista-, os dados mostram que os brasileiros migraram em peso para outras plataformas, com destaque para o Bluesky.

O Bluesky surgiu com a benção do ex-CEO do Twitter, Jack Dorsey, que posteriormente abandonou o projeto porque não concordou com uma administração focada em moderação de conteúdo. Entre os atributos da rede estão uma linha do tempo (ou skyline) realmente cronológica, onde você só vê o que quem você segue posta ou retuíta. Em outras palavras, o Bluesky privilegia o engajamento direto entre os usuários, sem a mão invisível do algoritmo sugerindo o que você deveria ver ou, melhor ainda, com o que você deveria se irritar.

Por mais que esse modelo devolva poder ao usuário, permitindo-lhe ter um controle um pocuo maior sobre o que vê, nem todos estão encantados. No editorial do Financial Times "With Bluesky, the social media echo chamber is Back in vogue", Jemima Kelly argumenta que o Bluesky contraria a tendência das redes sociais ao encorajar a criação de “câmaras de eco”, em vez de promover a visão da rede social como uma “praça pública”. Segundo a autora:

I have previously argued that a “digital town square” is a contradiction in terms – the internet is never going to enable the kind of engagement and understanding that comes from coming up against a real person in all their raw and imperfect humanity.

But while it will always be much messier and more maddening than we might like, I believe such a place is preferable to a series of siloed echo chambers. The irony is that it is the man who warned of the “great danger” of a splintering-off who is most responsible for making that a reality.

Ao contrário do que Kelly sugere, por incrível que pareça Musk não é o único culpado pelo fenômeno das câmaras de eco simplesmente por fazer com que as pessoas fujam para o Bluesky em busca de conforto. Na verdade, o que Kelly falha em perceber é que as redes sociais nunca foram praças públicas.

Oconceito de "praça pública" remonta à Antiguidade, mais precisamente à ágora grega e o fórum romano, espaços onde os cidadãos se reuniam para debater questões públicas. A ideia é de que esses locais reunissem uma pluralidade de vozes, oferecendo a todos, ao menos teoricamente, a oportunidade de se expressar.

No âmbito virtual, a difusão das redes sociais, especialmente no pós crise de 2008, e sua importância em determinados episódios políticos, tais como a Primavera Árabe, o movimento Occupy Wall Street e as Jornadas de Junho de 2013, realçaram o papel das redes no debate público. Não por acaso que textos da época ressaltam esse aspecto, comparando diretamente a Ágora às redes sociais, sendo que o zeitgeist então vigente associava as redes como instrumentos pró democracia..

Contudo, ficou claro que a analogia estava equivocada, dado a própria existência da “praça pública” seja questionável. Na Antiguidade os debates ocorriam entre um seleto grupo de cidadãos e os demais eram excluídos. Na contemporaneidade, as praças, na verdade, têm donos e eles não querem qualquer um lá.

Ora, as redes sociais são geridas por empresas privadas, as quais, obviamente, operam no regime de obtenção de lucro. O modelo opera pelo regime de economia de atenção, monetizando tanto por meio de publicidade quanto pela venda de dados dos usuários.

Essa lógica até pode lembrar um espaço público, mas um local público cedido a um ente privado, como é o caso do Vale do Anhangabaú e o Parque do Ibirapuera, ambos em São Paulo.

O Vale do Anhangabaú após a sua reforma

Em essência, trata-se de um negócio em que uma empresa assume um espaço público, faz umas reformas, desenvolve todo um layout em que as pessoas fiquem o maior tempo possível lá e extrai lucro por meio de (i) veiculação de publicidade, (ii) sublocação de espaço para vendedores e (iii) realização de eventos de terceiros lá.

Esse modelo é feito para que as pessoas ajam lá de determinada forma, de modo que algumas pessoas são privilegiadas (como aqueles que podem pagar para estar nos eventos ou comprar lá), enquanto outras são toleradas mas passivamente empurrado para fora. Não por acaso que as cessões de espaço público possuem limitações, como um contrato que impeça que transeuntes sejam impedidos de utilizarem alguns facilities, como banheiros ou bebedouros.

As rede sociais, por sua vez, operam de modo similar a uma concessão, sendo que o ideal é os usuários fiquem o maior tempo possível lá para (a) veicular o máximo de publicidade ao usuário, (b) extraiam o maior número de dados e (c) vender serviços de priorização de visibilidade e personalização de perfil. O sucesso dessas formas de receita está atrelada ao engajamento do usuário, de modo todo design, funcionalidades e políticas vão ser feitas para que os usuários engajem ao máximo, mesmo que isso implique polarização dos usuários ou segregação de usuários entre os freemium e preemium.

Este modelo acaba por estimular que os usuários entre em colisão de ideias, embora não preocupado se seja um debate civilizado ou propagação de discursos de ódio. Na verdade, não é raro que o discurso de ódio, por mexer com o sentimento e ativar o engajamento emocional, seja priorizado pelos algoritmos. E como esse discurso gera cliques e monetização, a moderação tende a ser viesada, sendo omissa ou mesmo propositadamente lenta.

Em circunstâncias usuais e pressupondo um tico de boa-fé, o posicionamento de Jemima Kelly até poderia ser elogiável. O pluralismo de ideias é, afinal, um caminho para o aprimoramento do pensamento. Contudo, após mais de uma década de “debate me bro culture” no Twitter e as mudanças que transformaram a rede em um campo de batalha canibal sob o comando de Musk, fica claro que o progresso humano não vai ser acelerado — ou freado — pelo fato de as pessoas pararem de brigar com desconhecidos online.

Todas as decisões de Musk, na verdade, deixam bem claro que ele não quer uma praça pública de debate saudável ou equilibrado: ele fez do Twitter a sua echo chamber. Ao longo de pouco de mais de dois anos, a Carminha Frufru do 4chan desbloqueou contas de nazistas, considerou “cis” um xingamento; fez com que 80 funcionários trabalhassem num domingo de noite para que seus posts tivessem mais impulsionamento e sugeriu uma guerra civil no Reino Unido

O resulto foi na insalubridade da rede. O youtuber D’Angelo mostrou que um novo usuário do Twitter, mesmo que siga nenhuma pessoa, terá uma timeline curada com conteúdo chafurdado em miasmas pútridos, como teorias da conspiração e posts de alt right.

A pior parte é Musk é tão zé ruela que nem pode ser tido como o gênio do mal responsável por isso, dado que já se via a ampliação da retórica de extremistas no Twitter como resultado deste modelo. Musk apenas aprimorou este modelo de câmara de eco mais barulhenta e irritante, deixando bem claro que é isto que faz com que a concessão do espaço virtual seja rentável.

Assim, se os usuários preferem migrar para redes sociais onde possam interagir apenas com seus pares e terem as suas próprias câmaras de eco, talvez isso seja apenas o reflexo de como o modelo de negócios dessas plataformas está se desgastando. E quem pode culpá-los? No mundo real, as pessoas vão para as praças não para debater com estranhos, mas para se encontrar com aqueles que lhes são semelhantes.

No dia 22/09/2024, dia em que sua coluna viralizou no site, Jemima acabou sendo a pessoa mais bloqueada do dia no Bluesky:

Chico Barney ganhando seus minutos de fama por dizer que Shawn Mendes era chato

Curiosamente, para criticar a câmara de eco de um site, Jemima precisou construir a sua própria. Passou dias repostando seus defensores, numa campanha beligerante que só confirmou o que ela mesma condena. Após duas décadas de Internet, eu prefiro gastar meu tempo com o que realmente importa: interagindo com quem eu gosto e repostando tigres peitudos. A sanidade agradece

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Guilherme Floresti
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Written by Guilherme Floresti

Tipo aquele CD do Chico Buarque na promoção da Americanas: você odeia mas sua mãe vai te fazer ouvir.

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