Da Piada Satírica ao Trauma Religioso: a valsa emocional de Moral Orel

Guilherme Floresti
7 min readJun 5, 2022

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DISCLAIMER: O texto a seguir, por óbvio, possui alguns spoilers de Moral Orel. Não se trata de detalhes profundos, mas há descrições genéricas da estrutura de episódios e encadeamento de temporadas.

Tradicionalmente, o mundo da animação (seja ao tradicional em duas dimensões, seja ela assumindo outras formas como stop-motion ou 3D) é associado às tramas divertidas e engraçadas, simulando um certo escapismo (seja estético, seja moral).

Contudo, as animações, especialmente nas últimas 04 décadas, buscaram refletir questões sociais, traumas ou mesmo momentos depressivos, mesmo que de maneira breve, em seus enredos e backgrounds. Algumas animações utilizam desse expediente como pausa do tom animado e humorístico, outras levam para o campo de crítica, mesmo que veladas.

Muitos são os exemplos. As primeiras temporadas de The Simpsons utilizavam isso sempre como forma de humanizar Homer como um ser capaz de compaixão (i.e., “And Maggie Makes Three”, episódio que gira em torno de Homer desistindo de seu emprego dos sonhos para que pudesse sustentar sua família). A sua série irmã, Futurama, também utilizava do expediente de episódios mais emotivos como uma forma macabra yet heartwarming que Fry estava preso em um mundo em que todos os seus entes queridos estavam mortos há séculos (i.e., o famigerado episódio “Jurassic Bark”, que se encerra com um caso de cão fiel, no melhor estilo Hachiko, fazendo todos chorar). Mesmo animações infantis conseguem fazer isso, como é o caso de “Helga on the Couch” de Hey,Arnold!, onde a trama de slice of life infantil fica de lado para construir as bases de uma personagem no meio de abandono afetivo e alusões a alcoolismo e complexo de Édipo.

Pessoalmente, eu acho um absurdo que “Helga on the Couch” fique de fora da lista dos episódios tristes, uma perfeição de forma de roteiro.

Contudo, a despeito desses momentos, as séries animadas citadas não mudaram o seu tom preponderante: mantiveram-se coloridas e empolgadas, a despeito desse “respiro” emocional. No momento de seu lançamento (entre o final da década de 80 e o início dos anos 00s) não era comum que animações do mainstream ocidental (ênfase nesse ocidental) tivessem um tom predominantemente dramático, algo normalizado após o estrondoso sucesso de Bojack Horseman, o que somente se deu em meados na década passada.

Contudo, uma exceção a regra — uma série que adota uma abordagem positiva e humorística para depois passar para uma uma sessão de traumas psicológicos e danos emocionais — ficou presa em um limbo de desconhecimento, mas que, graças aos caminhos tortuosos do acaso (e dos algoritmos das redes sociais) ressurgiu nos círculos dedicados às animações: Moral Orel.

Moral Orel é uma série animada em stop-motion criada por Dino Stamatopoulos (o Starburns de Community), lançada originalmente em 2006 e cujo último episódio foi ao ar no final de 2008.

“Ah, mas que bonitinho”

O mote é simples: Orel Puppingtoné um jovem devoto de um protestantismo fervoroso que vive na fictícia Moraltown, uma paródia de qualquer região suburbana dos Estados Unidos. Meio que um Ned Flanders mirim, Orel tem como sua atividade favorita ir para a Igreja ouvir o sermão e tentar praticar a palavra divina.

A despeito de sua fé, Orel não sabe interpretar corretamente os ensinamentos que absorve dos cultos, seja por levar tudo por valor de face, seja pela ausência de bons exemplos e/ou tutores: seu pai, Clay Puppington, é um alcóolatra depressivo cuja única função paternal resume a espancar seu filho; sua mãe, Bloberta Puppington, esta presa às suas compulsões com limpeza e é incapaz de apresentar qualquer afeição ao filho; o Reverendo Putty, o mais próximo de um pai que Orel tem, não é grande entusiasta da própria palavra que prega e se mostra na maior parte do tempo preso na tentação de por desejos carnais . Os demais adultos se apresentam como grandes caricaturas, suja ações são apresentadas como dadas.

A primeira temporada de Moral Orel é formulaica: Orel, incapaz de aplicar a palavra dos sermões, procede a interpretar tudo errado e, após causar danos à sociedade, é repreendido fisicamente por sua pai que, posteriormente, procede com um discurso moral totalmente distorcido e que reproduz status quo, misoginia e hipocrisia.

A priori, não temos nada demais. Uma série crítica de religião por meio de paródias, humor exagerado e interpretação literal para apontar hipocrisias de fundamentalismo religioso ou mesmo o modo de vida WASP dos EUA não é algo novo. Inclusive, se Moral Orel tivesse se limitado a isso, permaneceria despercebida (talvez seria lembrado por uma ou outra piada de humor cru em demasia, típica de animações do Adult Swim). Não se trata de algo ruim, apenas que não se destaca tanto.

A segunda temporada reduz a dependência dessa fórmula, embora ela ainda esteja presente, passa por leves ajustes, de modo que os habitantes de Moraltown passam a ter maior destaque, bem como vemos maior desenvolvimento dos pais de Orel e seu casamento fracassado: uma mãe distante e um pai com tendências bissexuais. Contudo, ainda temos Orel feliz e saltitante, a despeito de tudo o que acontece.

Até que chegamos ao final da segunda temporada…

O final da segunda temporada consiste em um episódio duplo chamado Nature. O tom otimista de Orel desaparece pela primeira vez e Orel confronta o alcoolismo de seu pai e questiona sua mãe sobre o seu casamento, tudo após um final de semana que nota que quem deveria ser seu modelo de figura de respeito sequer consegue ficar de pé sem um copo de whisky.

His Smile And Optimism: Gone

Posteriormente, a terceira temporada girará em torno desse episódio, abordando o que aconteceu antes, durante e após os acontecimentos de Nature. Nesse momento, inicialmente, a temporada foca nos demais habitantes de Moraltown, que passam a ter sua história contada sem intermédio de Orel, de modo que passamos a entender a razão de seus atos para além “são esteriótipos”.

Assim, a estrutura anterior de Orel indo para a igreja aprender alguma lição é substituída por episódios com narrativas próprias, focando em esmiuçar a miserabilidade dos personagens, que deixam se de ser caricaturas do que deveriam ser representar. O episódio Alone é a epítome disso, onde personagens secundárias e tidas como meras piadas em temporadas anteriores são apresentadas como as formas como lidam com a violência sexual que sofreram: assédio sexual e dissociação, estupro e sentimentos conflitantes, castração e complexo de deus.

A estrela desta temporada, contudo, para bem ou para o mal, é o pai, Clay Puppington. Diversos episódios têm como mote explicitar abordar o mal que Clay causa em Orel e construir a gênesis de sua crueldade, consubstanciada em seu comportamento narcisista, controlador e incapaz de sentir qualquer empatia exceto por ele mesmo. Em Sacrifice, o clímax do episódio reside em um discurso em que Clay reconhece que é fraco e medíocre, e que sua sobrevivência somente se deu pelo fato de que fora capaz de afetar os outros.

Odiar Clay é inevitável, mas é necessário reconhecer que ele é essencial para essa temporada.

O final da temporada retorna o foco a Orel, que está claramente mudado. Mesmo que ainda resida no seu jeito feliz e alegre, é clara a sua mudança com o mundo, especialmente em torno de sua visão com seu pai. O último episódio, Honor, dedica-se a Orel tentando reatar sua admiração por seu pai, procurando quem ainda o admire. O final do episódio, então, é o season finale, com Orel vivendo sua vida no futuro, dado que o show foi cancelado (e por causa do controverso episódio Alone).

Muito poderia ser escrito sobre Moral Orel, desde o fato que, curiosamente, o show não se prestou a terminar como a crítica pela crítica do protestantismo no final do dia (dado que o recado não foi que a religião seria um mal em si, mas sim que pessoas ruins vão se utilizar do discurso religioso como justificador de sua atitudes), até pelo fato de que se junta a panteão de corajosas obras de stop-motion que chocam pela sua capacidade de emocionar, tal qual Mary & Max.

Contudo, acredito que por hora o principal ponto que posso destacar é como o show brilhantemente virou a chavinha e escolheu mudar completamente o seu estilo de abordagem e o tom do show. Ir de um programa satírico de fervor religioso para um show traumas intermediado por breves momentos de calor humano não é uma tarefa fácil.

O seu apelo não é muito abrangente, logo não diria que seria uma série para recomendar a qualquer pessoa, seja por momentos bem questionáveis ainda na primeira temporada (em certo momento, um pouco escatológico), seja por apresentar evidentes gatilhos psicológicos na sua terceira temporada.

Ainda pensando como um boneco de massinha em milhares de fotos me fizeram refletir.

Yet, não posso deixar de exclamar “arte!” após constatar que 43 episódios de 11 minutos foram capazes contar uma história tão comovente e inusitada.

E não se deixe cair em tentação: a beleza da terceira temporada está justamente em ser precedida pela primeira e pela segunda. O impacto está justamente no fato de que o que era bobo torna-se sério e o que era tido como dogma passa a ser questionado, ao mesmo tempo que o show não nega suas origens (tanto que a primeira temporada é constantemente referenciada).

Então, fica o apelo para que vocês assistam. Assim eu poderei escrever mais sobre os spoilers sem muito peso na consciência e sem ter que pisar em ovos nas descrições genéricas.

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Guilherme Floresti

Tipo aquele CD do Chico Buarque na promoção da Americanas: você odeia mas sua mãe vai te fazer ouvir.