Tradução do poema “Dahomey”, de Audre Lorde

tammuzs
5 min readNov 17, 2015
Fac-símile da contra capa da quarta edição da revista Sinister Wisdom, publicada em 1977.

Dahomey”, de Audre Lorde, foi publicado pela primeira vez na quarta edição da revista literária de arte por e para lésbicas, Sinister Wisdom. Já falei sobre a revista num post anterior, onde traduzi outro poema de Lorde que apareceu na terceira edição da revista (veja aqui). Mais tarde, “Dahomey” seria republicado em vários outros livros de Lorde, incluindo The Black Unicorn (1978, W.W. Norton & Company).

Audre Lorde (1934–1992) foi uma escritora, poeta e ativista norte-americana de ascendência caribenha. Referia-se a si mesma como “negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta” e isto é, portanto, condizente sobre o que consiste suas obras: questões lésbicas, raciais, de gênero e de identidade. Junto com esta postura (negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta) veio um desejo intenso de aprender sobre os antigos mitos matriarcais da África para entender sobre sua própria identidade. Escrevi sobre isso e traduzi dois outros poemas de Audre Lorde que fazem menção aos orixás africanos. “A invocação dos Orixás na poesia de Audre Lorde” está disponível no escamandro, blog-revista de poesia, tradução e crítica.

Fac-símile do poema “Dahomey”, de Audre Lorde, publicado na quarta edição (1977) da revista Sinister Wisdom.

§ § §

DAOMÉ

Foi em Abomei que senti
o sangue das guerras de meu pai
e onde encontrei minha mãe
Seboulisa
em pé, com as palmas das mãos estendidas
um dos peitos devorados por vermes de mágoas
pedras mágicas que descansam em seus dedos
secas como uma tosse.

No terreiro dos trabalhadores de latão
quatro mulheres unidas tingindo seus panos
zombam o tremor do ferro de Exu
ereto e ardentemente familiarizado
no seu terreiro
mudo como um porco-espinho em uma floresta de chumbo
No pátio dos trabalhadores de pano
outros irmãos e sobrinhos
estão costurando tapeçarias brilhantes
em contos de sangue.

Trovão é uma mulher com cabelos trançados
Soletrando as escritas sagradas de Xangô
adormecida entre pítons sagrados
que não podem ler
nem comer as oferendas rituais
de Asein.

Minha garganta no covil da pantera
é sem resistência.

Levando dois tambores em minha cabeça eu falo
seja qual for o idioma necessário
para afiar as facas de minha língua
a cobra está consciente, embora dormindo
sob meu sangue
como sou uma mulher de qualquer forma
você está contra mim.
Irei trançar meu cabelo
mesmo
nas épocas de chuva.

§ § §

Neste poema, Seboulisa vem com o significado de multiplicar: como uma deusa do panteão Daomeniano, como a “A Mãe de Todos Nós”, como uma das mulheres guerreiras marcadas pela falta de peito, como uma amazona. É usada por Lorde em um ato de auto representação da ativista/poeta, que lutou contra o câncer desde 1978: primeiro o câncer de mama (o que exigiria uma mastectomia), e depois no fígado.

AHOSI — Guerreiras do Daomé. “Amazonas de Abomey”. “Oficiais” do sexo feminino — uma espécie de polícia dos dias de hoje, usando chifres simbólicos de escritório em suas cabeças. As Ahosis são o único grupo de combate militar (linha de frente) feminino documentado na história moderna. Fonte: http://www.nairaland.com/1403521/dahomey-women-warriors-nigerias-deadliest

Glossário:

Daomé (ou Reino do Daomé) foi um Estado africano, fundado no século XVII (c. 1625) pelos povos Fon, que desenvolveram um poderoso império militar e comercial e que dominaram o comércio de negros com traficantes europeus (a quem vendiam seus prisioneiros de guerra). No final do século XIX, a França conquistou o Daomé e o agregou a outras regiões para formar uma colônia também chamada Daomé, a qual se tornou independente em 1960. O nome Daomé foi mantido até 1975, quando foi substituído pelo de República Popular do Benin, com o qual se mantém até hoje.

Abomei (ou Abomé) foi a capital do antigo Reino do Daomé. Hoje a capital do Benim é Porto-Novo.

Seboulisa, no panteão Daomeniano, é considerada a deusa de Abomei, a “mãe de todos nós”. Também é a representação local de Mawu-Lisa. Na mitologia Fon, Mawu (alternadamente: Mahu) é uma deusa criadora, associada com o sol e a lua. Em alguns mitos, ela é a irmã gêmea ou esposa do deus Lisa; em outros, as duas divindades são aspectos da mesma divindade andrógina, Mawu-Lisa.

Exú é um orixá conhecido como o mensageiro. Da religião Yorubá, também é cultuado por outros povos, entre eles, os Fon. Lorde, em seu glossário no livro The Black Unicorn (1978, W.W. Norton & Company), se refere à Exú como “o filho mais novo e mais inteligente de Mawu-Lisa, que é frequentemente identificado com o princípio masculino”. No entanto, Lorde observa também que “em muitos rituais, sua parte é dançada por uma mulher, segurando um falo”. Lorde continua, dizendo que “Exu é o mensageiro malicioso entre todos os outros Orixás e Voduns e humanos. Conhece todos os idiomas, é um linguista completo que transmite e interpreta. Esta função é de suma importância porque os orixás não entendem a língua do outro, nem a linguagem dos humanos. Exu é um trickster, também, uma personificação de todos os elementos imprevisíveis ao vivo”.

Xangô é um orixá conhecido como o orixá da justiça, do raio, do trovão e do fogo. Também da religião Yorubá e também cultuado por outros povos, entre eles os Fon.

Asein são assentamentos de ferro colocados na encruzilhadas para honrar os mortos.

LORDE, Audre. 1977. Dahomey. Sinister Wisdom. Ed. 4. Durham, North Carolina. Pág. 14. Outuno de 1977.

“Fon”. Encyclopedia Brittanica Online. 2014. Enciclopédia Britânica. Disponível em <http://global.britannica.com/EBchecked/topic/212396/Fon&gt;, acesso em 18 de dezembro de 2014.

BAILEY, Anne C. African Voices of the Atlantic Slave Trade: Beyond the Silence and the Shame. Beacon Press. Estados Unidos da América. 304p. 2006.

____________. “From the House of Yemanjá”. The Collected Poems of Audre Lorde. Charlotte Sheedy Literary Agency and W. W. Norton & Company, Inc. 1997.

____________. The Black Unicorn. W. W. Norton & Company; Reissue edition. 1995.

MOORE, Lisa L. Sister Arts: On Adrienne Rich, Audre Lorde, and Others. Disponível em: <http://lareviewofbooks.org/essay/sister-arts-on-adrienne-rich-audre-lorde-and-others&gt;>. Acesso em 04 de dezembro de 2014.

RAMEY, Lauri. BREMAN, Paul. Margaret Kissam Morris: Audre Lorde: The Voice of Multiple Consciousness. The Heritage Series of Black Poetry, 1962–1975: A Research Compendium. Inglaterra. Ashgate. 2008.

THOMPSON, Robert F. Flash of the Spirit: African & Afro-American Art & Philosophy. Estados Unidos da América. Vintage; 1st Vintage Books ed edition. 1984.

Tradução de Thamires Zabotto.

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