Crônicas do câncer — #01 O Diagnóstico

“Você não vai morrer. Não disso. Não hoje.”

Tati Lopatiuk
7 min readSep 7, 2016

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Tarde de quarta-feira. Na sala de espera do consultório médico distante apenas algumas quadras da minha casa, eu aguardava minha vez de ser atendida. Meio entediada, ficava olhando pros meus pés e apertando a mão do meu marido, sentado ao meu lado. Com a outra mão, ele conferia o celular. Nós não estávamos com medo. Era uma consulta normal, ainda que estivesse acontecendo algo misterioso comigo há semanas: na hora de ir ao banheiro, percebia que havia sangue no meio das minhas fezes.

Não é uma cena bonita, mas não era nada que me deixasse preocupada demais. Tendo um histórico desde a infância de constantes prisão de ventre, imaginei que estava com alguma lesão no intestino ou no estômago, algo causado pela rotina de ir ao banheiro apenas três vezes por semanas, às vezes até menos. Aos 15, eu tinha ido parar no hospital após passar um mês sem fazer o número dois. Ou seja, já estava meio que acostumada com esses problemas.

No entanto, é claro que um quadro envolvendo sangue preocupa mais um pouco, por isso fui em busca de uma solução. Isso me fez pular de médico em médico por quase um mês entre consultas, segundas opiniões, exames e retornos. Por fim, um clinico geral me ouviu e foi além do “deve ser a sua dieta, já passa”. Pediu uma dezena de exames. De estômago, principalmente. De sangue, como de praxe.

Voltei lá com todos eles, mas ele não conseguiu diagnosticar o que estava acontecendo comigo. Apesar dos episódios com sangue, eu me sentia muito bem. Não tinha nenhuma dor ou indisposição — eu tinha uma rotina intensa de trabalho, treino de Roller Derby cinco vezes por semana e escrevia pra caramba em um milhão de blogs, vivia correndo. Sem muito mais o que fazer, o médico me mandou fazer uns exames mais específicos e já chegar com eles na consulta com a médica que me indicou, uma especialista em intestino. Segundo ele, já com os resultados em mãos eu agilizaria a consulta e a médica teria alguma resposta.

Fui nessa médica, já levando minha colonoscopia e raio-x de tórax. Você não vai acreditar em mim, mas eu não tinha aberto os exames antes e nem tinha procurado nada no Google. Eu estava tão tranquila de que não era nada demais que nem me dei ao trabalho. No dia, fui sozinha até a doutora, que me atendeu com muita simpatia até abrir o primeiro envelope. Ao olhar as imagens da colonoscopia, a cor do rosto dela desapareceu e ela começou a falar muito rápido, querendo se livrar de mim o quanto antes.

- Você precisa de cirurgia urgente. Ainda esse ano.
- Cirurgia? O que eu tenho?
- Não posso cuidar disso, viajo para um congresso amanhã e fico fora até o ano que vem. Vou te indicar outro médico e você vê isso.
- Tem que ser esse ano? Se eu não fizer a cirurgia esse ano eu morro? Hahaha!
- Não é o caso de morrer, mas você precisa cuidar disso o quanto antes.
- Disso o quê?
- O médico que eu vou te indicar vai dizer melhor.

Devolveu os exames e me mandou embora. Foi tão absurdo que achei até graça. Em casa, comentei com meu marido que a médica era doida e não queria me atender. Quem vai pra um congresso que dura dois meses? Só podia ser desculpa, né? No mínimo, viu meu caso, achou um pouco complicado demais e me passou pra outro. Acontece. Marquei com o médico que ela me indicou. Se era caso de cirurgia, alguma lesão por conta de muitos anos de prisão de ventre, como eu desconfiava, ele poderia me dizer melhor.

Então, é quarta-feira, dia primeiro de outubro de 2014, e eu estou em outro consultório com meus exames já abertos e um mistério para resolver. Dessa vez, meu marido foi comigo, mas quando me chamaram, eu entrei sozinha.

Esse outro médico era um senhor muito sério e prático. Quando expliquei minha situação, ele fez a maior cara de “yada, yada, yada” e já pediu logo os exames. Em dois segundos, me devolveu os envelopes e disse, com a maior simplicidade do mundo: Você tem câncer.

Sabe aquela cena em 50/50 em que o personagem do Joseph Gordon-Levitt recebe o diagnóstico e fica em negação absoluta? Era eu. Comecei a perguntar do mesmo jeito para o médico diante de mim. Câncer como, se eu me exercito, se eu não fumo, se eu sou super gente boa, tenho dois gatos e trato meus pais bem? Câncer como, se eu tenho 30 anos e ontem mesmo andei de patins por duas horas sem morrer? Câncer como, se eu sou casada com o homem da minha vida e não estava lá muito a fim de morrer agora?

É curioso como vemos doenças sérias como o câncer como uma “punição” para os nossos hábitos, quando, muitas vezes, ele é apenas resultado da inesperada combinação de herança genética com um pouquinho de azar. Obviamente, naquela época eu nem fazia ideia de nada disso.

O médico ficou impaciente e me respondeu na lata: Tatiani, você é uma mulher adulta e acredito que pode lidar com isso, por isso estou sendo direto: Você tem câncer no intestino e precisa se tratar. Não sei se pode se curar, isso é o médico especialista em câncer que vai dizer. Vou te encaminhar para um e você começa o tratamento o quanto antes. Amanhã mesmo. Não se demore, não invente desculpa. Você tem que cuidar disso AGORA, entendeu?

Dito isso, me passou um encaminhamento para o IPC (Instituto Paulista de Cancerologia), onde eu deveria “ligar lá e marcar uma consulta”. Só que não me deu um nome de médico, de especialista, nada. Eu não fazia nem ideia de como lidar com isso de maneira prática. Eu quero dizer, pra que médico você telefona quando está com câncer? O que eu tinha que fazer? Ligar na recepção desse tal de IPC e falar “Fala, galera. Tô com câncer, o que vocês mandam?”? Eu não tinha experiência nenhuma no assunto, nunca tinha passado por isso com alguém de perto.

A consulta durou cinco minutos, se tanto. Assim que fui dispensada, encontrei meu marido na recepção. Também não quis enrolar muito, estava subitamente exausta. “É isso. Estou com câncer no intestino.” Ele não fez perguntas, me abraçou e descemos pra casa em silêncio.

O trajeto daquele médico até a minha casa era bem curto, dava pra fazer a pé em uns vinte minutos. Naquele dia, durou mais de uma hora. Eu e o Alex andávamos um pouco e parávamos em algum muro ou banco e chorávamos abraçados por minutos. Andava mais, vinha mais uma crise de choro, a gente parava pra chorar. Foi incrível como mesmo ali eu soube que ele era a pessoa certa para estar ao meu lado, pois sabia exatamente o que dizer: nada. Só me abraçava e chorava comigo. Era só isso o que eu precisava.

Foi um dos dias mais tristes da minha vida, em parte pelo medo, em parte pela desesperança. Tendo o médico dito que não sabia se havia possibilidade de cura, imaginei que eu morreria em breve. Não foi a outra médica que disse que eu tinha que operar ainda esse ano ou…?

Em casa, o Alex ligou para o IPC e fez exatamente o que eu pensei: Fala, galera, minha mulher tá com câncer, como faz? A nossa sorte é que a equipe do IPC é composta basicamente por anjos, como eu viria a comprovar inúmeras vezes mais na minha jornada. Por telefone, eles explicaram tudo o que podiam e conseguiram uma consulta pra mim já no dia seguinte. Essa primeira consulta era mais uma conversa com uma médica dedicada a isso mesmo, receber pessoas recém-diagnosticadas. Depois disso, veríamos como seguir com o tratamento, o que eu tinha que fazer, onde poderia fazer e eles me dariam todas as direções. Nos sentimos um pouco mais tranquilos, como se tivéssemos resolvido pelo menos parte do problema. E era bem isso, na verdade. Como duas pessoas práticas, queríamos um plano de ação e eles nos deram, ainda que em um primeiro momento tenham dito apenas “venham aqui e nós vemos o que fazer”. Quando você está com medo, só isso já basta pra dar uma amenizada na ansiedade.

Só que eu ainda estava preocupada com essa coisa de morrer, né? Lembrei de uma amiga de internet que passava por uma luta similar com o câncer e sempre se mostrou aberta a conversar sobre o assunto. Mandei um e-mail para ela contando a minha situação e ela me respondeu na mesma hora perguntando se podia me ligar. Detesto falar ao telefone e estava muito, muito triste para conversar, mas aceitei, pois estava também desesperada por algum alento.

Conversamos por uns trinta minutos, o que é um recorde para qualquer pessoa nos dias de hoje. Ela me contou a história dela, me acalmou e me fez rir. E me disse algo que eu guardei para sempre e uso até hoje, como um mantra para o câncer e para a vida em geral: Você não vai morrer. Não disso. Não hoje.

Ao final do telefonema, já estava um pouco mais calma e esperançosa. Quem sabe eu conseguisse vencer essa. Eu era jovem, forte e saudável — apesar das evidências em contrário. Eu tinha o amor do meu marido e seu apoio incondicional.

Naquele dia eu não chorei mais. Assistimos filmes e séries e tentamos não pensar muito no assunto. Era assustador demais para pensar, eu só queria ser logo consultada para entender melhor quais eram as minhas chances e até onde eu podia (devia?) me desesperar.

Com a primeira consulta já marcada para o dia seguinte, agora eu só precisava buscar me manter forte, achar um jeito de contar para os meus pais e amigos a notícia e me preparar para a maior batalha da minha vida.

Estava apenas começando.

Acredito que uma das maneiras mais eficazes de desmitificar o câncer é falar sobre ele sem medos. Estou fazendo a minha parte com essa série de quatro textos sobre a minha experiência pessoal com a doença. Você pode ler todos aqui. Se você gostou desse texto, dê um ❤️ ao final da página, assim ele pode chegar a mais pessoas.

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