Neoliberalismo, saúde mental, realismo capitalista e assombrologia
I. Introdução
Atualmente, a carga de trabalho semanal no Brasil não pode ultrapassar o limite de 44 horas, conforme estipulado constitucionalmente¹. No entanto, é interessante observar que, em 2020, o Brasil ocupou o 8º lugar em desigualdade de renda mundial, atrás apenas de alguns países subsaarianos da África². Além disso, em 2021, um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que 4% da população brasileira enfrenta jornadas de trabalho superiores a 55 horas semanais³.
Considerando que 90% dos trabalhadores brasileiros ganham menos de R$ 3.500⁴ por mês e que o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) afirma que a renda ideal para uma família de quatro pessoas no país é de R$ 5.351⁵, é, no mínimo, curioso e sintomático que crenças que exaltam o excesso de trabalho, como a da imagem acima, ainda encontrem repercussão em nossa sociedade.
Um aspecto cultural contemporâneo que chama a atenção é a abundância de filmes, séries e outras mídias que imaginam um mundo pós-apocalíptico, onde apenas parte da população sobrevive e busca formas cada vez mais desumanas de se manter. Vejamos a lista abaixo.
Lista de Filmes/Séries sobre Pós-Apocalipse (2010-2023)
- 2010: Juan of the Dead, Monsters, Stake Land, Skyline, Vanishing on 7th Street, Legion, Maximum Shame, The Book of Eli, Resident Evil: Afterlife
- 2011: 4:44 Last Day on Earth, Deadheads, Perfect Sense, The Darkest Hour, The Day, The Divide, Melancholia, Hell, Rise of the Planet of the Apes, Take Shelter
- 2012: The Hunger Games, Seeking a Friend for the End of the World, 5 Shells, Dredd, It's a Disaster, Battle: Los Angeles, Resident Evil: Retribution, Resident Evil: Damnation, Cloud Atlas, Cockneys vs Zombies
- 2013: Rapture-Palooza, The Colony, These Final Hours, This Is the End, After the Dark, After Earth, Los Últimos Días, Antisocial, Snowpiercer, Oblivion, Warm Bodies, World War Z, Edge of Tomorrow, The World's End, The Host, Goodbye World
- 2014: Die Gstettensaga: The Rise of Echsenfriedl, Wyrmwood: Road of the Dead, The Rover, Zodiac: Signs of the Apocalypse, X-Men: Days of Future Past, Young Ones, Aftermath, The Maze Runner, Dawn of the Planet of the Apes, Interstellar, The Last Survivors, Noah
- 2015: Scouts Guide to the Zombie Apocalypse, Turbo Kid, Z for Zachariah, The End of the World and the Cat's Disappearance, Extinction, Hidden, Air, Into the Forest, JeruZalem, The Survivalist, Attack on Titan, Terminator Genisys, Maze Runner: The Scorch Trials, Mad Max: Fury Road, Maggie
- 2016: 10 Cloverfield Lane, Train to Busan, Seoul Station, I Am a Hero, The Fifth Wave, Cell, Day of Reckoning, The Girl with All the Gifts, Diverge, The Northlander
- 2017: Stephanie, It Comes at Night, War for the Planet of the Apes, Resident Evil: The Final Chapter, Resident Evil: Vendetta, Everything Beautiful Is Far Away, Bokeh, Blade Runner 2049, Cargo, Deep
- 2018: Bird Box, Blue World Order, The Domestics, How It Ends, I Think We're Alone Now, In My Room, Maze Runner: The Death Cure, Mortal Engines, The Night Eats the World, Patient Zero, A Quiet Place, Scorched Earth, What Still Remains
- 2019: Blood Quantum, Zombieland: Double Tap, The Wandering Earth, The Silence, Io, Terminator: Dark Fate, Light of My Life, The Lego Movie 2: The Second Part
Com crenças tão obviamente falsas permeando o imaginário popular e uma vasta quantidade de produções cinematográficas sobre a destruição do mundo como o conhecemos, é justo questionarmos: "É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?" Para entender por que a sociedade contemporânea acredita que não há qualquer possibilidade de superar o atual sistema econômico, mesmo com suas inúmeras contradições, Mark Fischer escreveu o livro "Realismo Capitalista".
II. Realismo Capitalista
Segundo Fischer:
“O realismo capitalista, como o entendo, não pode ser confinado à arte ou à maneira quase propagandística pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera abrangente, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação - agindo como uma espécie de barreira invisível, bloqueando o pensamento e a ação” (2020, p. 33).
O realismo capitalista, em nosso entendimento, abrange todos os aspectos da subjetividade, tornando evidente a impossibilidade de romper com esse sistema econômico, apesar dos efeitos negativos que ele produz em níveis subjetivos e objetivos. Para que essa aceitação seja possível, é necessário normalizar todas as contradições do capitalismo, deixando-as completamente expostas aos olhos de todos. Dessa forma, qualquer crítica ao sistema reforça sua existência e corrobora sua intransponibilidade.
“Uma crítica moral ao capitalismo, enfatizando as maneiras pelas quais ele gera miséria e dor, apenas reforça o realismo capitalista. Pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade, enquanto a esperança de um dia eliminar tais formas de sofrimento pode ser facilmente representada como mero utopismo ingênuo” (ibidem).
O realismo, então, deve ser compreendido como a única possibilidade da própria realidade. Na leitura de Fischer, o realismo capitalista gera uma redução absoluta sobre aquilo que a realidade pode se tornar, fechando-a completamente no que ela apresenta ser no presente.
Nesse sentido, o realismo capitalista funciona tanto como uma crença quanto como uma prática. No nível da psicologia individual, manifesta-se como a convicção de que o capitalismo neoliberal é a única realidade possível, sendo qualquer outra opção uma utopia. Como prática, é uma submissão completa aos imperativos do mundo dos negócios; uma aceitação plena de que todos os aspectos da vida, como educação e saúde, devem ser geridos da mesma forma que seriam administrados dentro de empresas.
III. Contradições Necessárias
Para que o capitalismo seja aceito como a única realidade possível, as contradições inerentes a ele e os efeitos da ultraexploração dos recursos do planeta e da mão de obra dos trabalhadores precisam ser entendidos como inevitáveis. A destruição e o sofrimento devem ser naturalizados. Fischer afirma:
“Uma posição ideológica nunca realmente é bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato” (2020, pp. 34).
Em outras palavras, a perspectiva realista capitalista deve ser vista não apenas como um valor a ser adotado, mas como um fato intransponível.
Nesse sentido, as catástrofes ambientais também devem ser interpretadas dessa maneira. Acidentes ambientais são amplamente divulgados nas mídias e incorporados à publicidade sem qualquer tentativa de ocultamento. A maneira como o realismo capitalista incorpora tais acontecimentos ilustra perfeitamente a fantasia da qual ele depende:
“(…) o pressuposto de que os recursos são infinitos, que o próprio planeta Terra não passa de uma espécie de casco, do qual o capital pode a qualquer momento se livrar, como se fosse uma carapaça usada, e que qualquer problema pode ser resolvido pelo mercado” (FISCHER, 2020, pp. 36).
Uma ilustração clara desse movimento do realismo capitalista pode ser vista no filme de animação americano Wall-E (2008). Seu roteiro inicia-se da seguinte forma:
“O filme se passa no ano de 2805, época em que a Terra é um planeta abandonado e coberto por lixo, resultado de décadas de consumismo em massa, facilitado pela megacorporação Buy-n-Large (BnL). Desistindo de restaurar o ecossistema, a BnL evacuou a Terra, levando a população a viver no espaço em uma nave estelar chamada Axiom, totalmente automatizada, deixando no planeta apenas um exército de robôs compactadores de lixo chamados ‘WALL-E’ para limpeza durante um período de cinco anos. Entretanto, no ano de 2110, o ar da Terra se tornou muito tóxico para suportar a vida, forçando a humanidade a permanecer no espaço indefinidamente” (disponível em: Wikipédia, 11/04/2023).
Todas as dificuldades vivenciadas pelos humanos que fugiram do planeta Terra, destruído pela exploração desmedida de seus recursos, são mitigadas pelo fato de viverem em uma luxuosa nave espacial, completamente automatizada e comandada pela megacorporação capitalista Buy-n-Large (BnL), a mesma responsável pela destruição quase completa da Terra.
“No final de Wall-E, é apresentada uma versão dessa fantasia — a ideia de que a expansão infinita do capital é possível, de que o capital pode se reproduzir sem trabalho (na nave espacial Axiom, todo o trabalho é realizado por robôs), de que o esgotamento de recursos terrestres é apenas um probleminha técnico temporário e que, depois de um período adequado de recuperação, o capital poderá terraformar a própria Terra e recolonizá-la” (FISCHER, 2020, pp. 36).
Outra questão aprofundada por Fischer sobre a temática ambiental é a obrigatoriedade da reciclagem de lixo pela população. Quando somos questionados sobre “quem deveria reciclar seu lixo?”, invariavelmente a resposta é que todos são responsáveis. Não há questionamentos sobre quais são as maiores fontes de poluição ou quem são os verdadeiros responsáveis. A responsabilização de todos pelo desgaste do planeta é naturalizada de tal maneira que questioná-la torna-se antiético. Todos devem reciclar e ninguém deve resistir a essa determinação. Essa demanda só é possível, argumenta Fischer, em uma estrutura que não recicla.
“Ao invés de dizer que todos — ou seja, cada um de nós — são responsáveis pela mudança climática, de que todos nós temos que fazer a nossa parte, seria melhor dizer que nenhum de nós é responsável — e que é exatamente esse o problema” (FISCHER, 2022, pp. 112).
Como consequência, ao tornar a reciclagem uma responsabilidade de todos, a estrutura capitalista terceiriza sua obrigação, tornando invisível sua própria responsabilidade na destruição do meio ambiente e naturalizando todas as catástrofes que dela advêm. Se todos são responsáveis pela destruição do planeta, ninguém é verdadeiramente responsável por ela.
Nesse sentido, o capitalismo é marcado por uma divisão escancarada, onde, por um lado, existem empresas socialmente responsáveis, dispostas a abordar causas sociais e ambientais, como a Disney no filme Wall-E, e, por outro, são corruptas e causadoras de todos os males vivenciados pela população mundial, uma vez que dependem da desigualdade econômica e da exploração desmedida de recursos naturais. Esse duplo aspecto do capitalismo é assimilado e, devido ao realismo capitalista introjetado em todos, é aceito como natural e imutável.
“O filme (Wall-E) performa nosso anticapitalismo para nós, nos autorizando assim a continuar consumindo impunemente. O papel da ideologia capitalista não é o de fazer a defesa explícita de nada, como a propaganda faz, mas ocultar o fato de que as operações do capital não dependem de nenhum tipo de subjetividade ou crença” (FISCHER, 2020, pp. 12).
IV. Neoliberalismo e Saúde Mental
Para que a completa incorporação do realismo capitalista pelos sujeitos seja possível, mesmo que o sistema esteja repleto de contradições gritantes, é imperativo que os indivíduos assumam por completo as causas e consequências de todos os aspectos de suas vidas. Essa percepção surge, segundo Fischer, a partir do momento em que o neoliberalismo é entendido como modelo socioeconômico de gestão governamental.
Embora seja um conceito com diversas definições, o neoliberalismo pode ser compreendido como um modo específico de organizar o Estado. As formas pelas quais essa organização ocorre, segundo Andrade (2019), são as seguintes:
“O Estado pensa a si próprio como empresa, tanto em seu funcionamento interno quanto em sua relação com os demais Estados concorrentes. Assim, o Estado, responsável por construir o mercado, ao mesmo tempo se constrói segundo as normas de mercado. Não se trata, portanto, de Estado mínimo, como afirma o discurso ideológico, mas de um Estado empreendedor, que pode se expandir e mesmo se tornar mais dispendioso. (…) a universalização da norma neoliberal atinge também os indivíduos na relação que eles estabelecem consigo mesmos. O Estado, ao difundir situações de concorrência, conduz indiretamente os indivíduos a se conduzirem como empreendedores de si mesmos. A empresa é alçada a modelo de subjetivação, sendo cada indivíduo um capital a ser gerido e valorizado conforme as demandas do mercado.”
De modo geral, o neoliberalismo passou a ser adotado como modalidade de organização política a partir dos anos 1980, com a gestão implementada por Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido. Partindo do pressuposto da idoneidade do funcionamento do mercado financeiro e da impossibilidade de favorecimentos individuais, modelos empresariais de ordenamento foram incorporados às atividades de gestão pública. Dessa forma, governos passaram a lidar com sua população da mesma forma que empresas lidam com seus funcionários. O bem-estar público foi negligenciado, e situações que geram concorrência foram privilegiadas, uma vez que, segundo a lógica do mercado, a competição cria indivíduos mais “aptos” e mais “fortes”, beneficiando a totalidade da sociedade.
“O postulado dessa nova ‘governança’ é que a gestão privada é sempre mais eficaz que a administração pública; que o setor privado é mais reativo, mais flexível, mais inovador, tecnicamente mais eficaz, porque é mais especializado, menos sujeito que o setor público a regras estatutárias” (DADOT, LAVAL, 2016, pp. 290).
Essa perspectiva adentra o mercado de trabalho, ampliando os limites das atividades laborais. Se antes os trabalhadores podiam aprender um único conjunto de habilidades e com elas alcançar cargos e salários mais altos nas empresas em que estavam empregados, agora é exigido que estejam sempre se atualizando e aprendendo novas habilidades para manterem as posições que já possuem. A segurança econômica é dissolvida mediante a flexibilização de direitos antes garantidos pelo Estado e pelo dinamismo das necessidades do mercado, fazendo com que se acredite na naturalidade dessa situação. Sobre isso, Fischer aponta:
“A aceitação (tipicamente relutante) deste estado das coisas é a marca do realismo capitalista. O neoliberalismo pode não ter tido sucesso em se fazer mais atrativo do que outros sistemas, mas conseguiu se vender como o único modo ‘realista’ de governo. ‘Realismo’, nesse sentido, é uma conquista política: o neoliberalismo teve sucesso em impor um tipo de realidade modelado sobre práticas e premissas vindas do mundo dos negócios” (2020, pp. 143).
Para se manter empregado em uma sociedade que exige cada vez mais, o sujeito rompe com os limites entre sua vida pessoal e profissional. A gestão de sua própria vida passa a ser desenvolvida através de lentes econômicas, justificando como má administração pessoal qualquer dificuldade vivenciada. O sujeito passa a se perceber como uma empresa que deve ser gerenciada de modo eficiente.
Dito de outro modo, cada membro das classes operárias é encorajado a se sentir culpado por sua pobreza, falta de oportunidades, desemprego ou doenças. “Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que de fato não existem (são apenas desculpas, invocadas pelos fracos)” (FISCHER, 2020, pp. 140). O trabalho nunca termina, pois é levado para casa e monitorado pelo próprio trabalhador. Não há espaço para vida pessoal, separada das demandas do trabalho. Vida e trabalho tornam-se um só.
Diante dessa internalização subjetiva da dinâmica neoliberal, é inevitável que surjam dissonâncias psíquicas nos sujeitos. Se não há qualquer possibilidade de melhora a curto prazo para os constantes abusos trabalhistas e vivemos em um planeta cuja destruição é inexorável, nada mais natural que o agravamento de casos de ansiedade e depressão em todos que são obrigados a vivenciar diariamente suas rotinas. No Brasil, por exemplo, os números de enfermos mentais não param de subir.
Fischer aponta que questões relacionadas à saúde mental tornam-se paradigmáticas na manutenção do realismo capitalista (2020, pp. 37). Para que os sujeitos aceitem o capitalismo como incontornável, é preciso que haja um consenso de que doenças mentais são um fato natural, tal como é entendida a destruição ambiental, descartando completamente quaisquer aspectos político-econômicos dessas enfermidades. É necessário negar a possível origem social das doenças psicológicas. Caso contrário, o capitalismo corre o risco de ser questionado enquanto a única realidade possível.
Isso não nega os fatores biológicos individuais das doenças psiquiátricas. O que Fischer critica é a privatização desses problemas, que os transforma em uma espécie de sentença genética completamente destacada da sociedade em que vivemos. Dentro do realismo capitalista, não mais existem loucos e doentes, mas depressivos e fracassados. Dessa forma, o esgotamento trazido com a depressão e o burnout está no assujeitamento ao imperativo de ser seu “próprio chefe” e na necessidade de sempre ter excelência no trabalho.
Como consequência, essa perspectiva individualizante das condições psiquiátricas reforça as características do próprio sistema, já que, se você não está bem, isso decorre das reações químicas do seu próprio cérebro. Além disso, cria e mantém um mercado lucrativo para multinacionais farmacêuticas, supostamente capazes de desenvolver pílulas que irão curar nossos desequilíbrios químicos ou garantir noites de sono com calmantes cada vez mais potentes.
“O estresse, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, ansiedade, depressão, entre outras tipologias normativas de manuais como DSM-V ou CID-X, ganham outro tensionamento ao serem concebidas como sofrimentos adversos à ‘impotência reflexiva experimentada pelos sujeitos’ (…)” (MARQUES, GONSALVES, 2020, pp. 163).
Fischer afirma: “A epidemia de doenças mentais nas sociedades capitalistas deveria sugerir que, ao invés de ser o único sistema que funciona, o capitalismo é inerentemente disfuncional, e o custo para que ele pareça funcionar é demasiadamente alto” (2020, pp. 37).
V. Assombrologia
Em uma entrevista concedida em 2010, Mark Fisher foi questionado sobre o porquê de o capitalismo exercer tanto controle sobre nossa consciência. Ele respondeu: “Não tenho certeza de que ele tenha tanto controle sobre nossa consciência quanto sobre o nosso inconsciente. Ele molda os limites do que podemos imaginar”. Esses limites impostos pelo realismo capitalista são construídos por meio da subordinação a uma realidade inconstante e caótica, que se reconfigura constantemente.
Com a existência dos sujeitos sendo constantemente reduzida pelas diretrizes neoliberais, rompendo o limite entre vida privada e trabalho, e as demandas trabalhistas sendo atualizadas conforme os interesses imprevisíveis do mercado, a percepção de si mesmo e do mundo se fragmenta. Em outras palavras, para que o sujeito possa sustentar sua subjetividade dentro do realismo capitalista, exercendo trabalhos cada vez mais precarizados e exigentes, é necessário haver uma separação entre a atitude subjetiva interna e o comportamento exterior (Fisher, 2020, p. 94).
“É precisamente esse desinvestimento subjetivo nas tarefas cotidianas que permite aos trabalhadores continuarem a realizar um trabalho sem sentido e desmoralizante” (ibidem).
O sucesso do realismo capitalista não reside em se ocultar, mas em expor seus efeitos nocivos e naturalizá-los. Sua vitória máxima está no sequestro e aprisionamento do inconsciente coletivo. Aqui, não estamos tratando do conceito junguiano, mas de um conjunto de desejos ou pulsões libidinais que mobilizam os sujeitos, de modo inconsciente, em direção ao que desejam. Nesse sentido, o realismo capitalista direciona todas as pulsões dos sujeitos para aquilo que, supostamente, apenas ele é capaz de prover. Consequentemente, os sonhos dos sujeitos, aquilo que almejam, conscientemente ou não, só podem ser criados e alcançados dentro do próprio sistema capitalista.
Com a naturalização do capitalismo, a percepção subjetiva do tempo também é reduzida. Em Fantasmas da Minha Vida (2022), Fisher analisa os impactos do roubo do tempo nas obras culturais contemporâneas, constatando que a precariedade do trabalho, fruto da vivência neoliberal promovida pelos governos mundiais, e as comunicações digitais resultam em um cerco de atenção (p. 33). Com a velocidade exigida para o cumprimento de todas as atividades, qualquer forma de arte que necessite de desenvolvimentos mais lentos para a construção de sua complexidade é deixada de lado, perdendo seu apelo aos consumidores. A pornografia, por exemplo, oferece uma solução rápida e familiar diante da falta de tempo, energia e atenção.
Ressignificando o termo do filósofo Jacques Derrida (1930–2004), Fisher utiliza o conceito de assombrologia para suas leituras socioculturais. Ele define “assombrologia como agência do virtual, entendendo o espectro não como algo sobrenatural, mas como aquilo que age sem (fisicamente) existir” (2022, p. 37). Esse conceito aborda determinadas influências que a cultura sofre contemporaneamente, mesmo que não estejam fisicamente presentes. Ao falar sobre como isso ocorre na música, Fisher afirma:
“Na música assombrológica há um reconhecimento implícito de que as esperanças criadas pela música eletrônica no pós-guerra ou pela euforia da dance music dos anos 1990 evaporaram — não apenas o futuro não chegou, ele já não é mais possível” (2022, p. 41).
Nesse sentido, somos assombrados por um certo luto fracassado, uma recusa em deixar para trás aquilo que já não mais podemos alcançar em um mundo governado pelo realismo capitalista. Fica claro que temos diante de nós uma infinidade de futuros perdidos, enaltecidos pelas músicas das décadas anteriores, mas que não deixamos ir embora porque as alternativas que nos são apresentadas não bastam. Por consequência, o tempo está estático, incapaz de avançar, já que o futuro não nos acalenta e o passado é a única referência de conforto possível.
Para clarificar a questão, vamos ao que Fisher chama de assombrologia festiva. Analisando os artistas estadunidenses Kanye West e Drake, ele compreende que uma das grandes marcas culturais do consumo do século XXI é a busca pela completa normalidade destituída de falhas, utilizando quaisquer meios digitais necessários, sendo o autotune⁶ um grande expoente dessa característica. Além disso, Fisher identifica que “uma tristeza secreta se esconde por trás do sorriso forçado do século XXI. Essa tristeza diz respeito ao próprio hedonismo⁷” (2022, p. 213).
Ele afirma que o hip-hop se tornou um grande aliado do prazer consumista nas últimas duas décadas, e as músicas de West e Drake exploram exaustivamente o vazio hedonista vivenciado por aqueles que alcançaram o máximo sucesso. Nas obras desses músicos, há uma constante busca pelos prazeres facilmente alcançados pelo dinheiro, destacando sentimentos como frustração, raiva e aversão a si mesmo na busca pelo preenchimento do vazio⁸.
Outro exemplo da aparente inocência na busca pelo prazer pode ser encontrado na música “Last Friday Night”, de Katy Perry. Na letra, vemos uma celebração de mais uma sexta-feira sendo comemorada (sexta-feira passada / sim, estouramos nossos cartões de crédito / e fomos expulsas do bar). Entretanto, a repetição da ação, como um carrossel que jamais encontra sua parada, evoca um certo desespero em manter-se nessa condição para jamais permitir que o vazio se faça notar (sempre dizemos que vamos parar / nesta sexta à noite / vamos fazer tudo novamente).
Nos casos expostos, a ausência de perspectiva por parte dos artistas os leva inevitavelmente a se entregarem a prazeres que em nada os ajudam. O hedonismo torna-se o imperativo da ação, e a repetição das vivências evocadas os assombra constantemente, roubando qualquer espaço para um tempo vindouro e novas possibilidades de existência, refletindo na subjetividade de seus ouvintes. O tempo, novamente, é paralisado, e as possibilidades de sonhar se findam antes mesmo de serem formadas.
Por fim, Fisher coloca que isso não é, de maneira nenhuma, algo que não possa ser superado, afirmando:
“A questão parece ser: este é o mundo do qual todos tínhamos medo; mas também é o tipo de mundo que queríamos. Não deveríamos ter que escolher entre a internet e a segurança social. Uma maneira de pensar a assombrologia é que os futuros perdidos não forçam essas escolhas falsas; em vez disso, o que assombra é o espectro de um mundo no qual todas as maravilhas da tecnologia comunicativa podem ser combinadas com um senso de solidariedade muito mais forte do que qualquer coisa que a social-democracia possa reunir” (2022, p. 46).
VI. Bibliografia
FISHER, Mark. Realismo capitalista. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia literária, 2020.
____________. Fantasmas da Minha Vida — Escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos, São Paulo: Autonomia literário, 2022.
DARDOT, P.; LAVAL, C.. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016
ANDRADE, D. P.. (2019). O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais. Sociedade E Estado, 34 (Soc. estado., 2019 34(1)), 211–239. https://doi.org/10.1590/s0102-6992-201934010009
WILSON, Rowan, They Can Be Different in the Future Too: Mark Fisher interviewed, disponível em: https://www.versobooks.com/en-gb/blogs/news/3051-they-can-be-different-in-the-future-too-mark-fisher-interviewed, 16/01/2017
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¹ “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XIII — duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho” BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
² AMORIM, F., MADEIRO, C., Brasil tem a 8ª pior desigualdade de renda e supera só países africanos, disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/12/15/brasil-tem-a-8-pior-desigualdade-de-renda-e-supera-so-paises-africanos.htm, acesso em: 25/07/2023, 07:46.
³ BBC NEWS BRASIL, Trabalhar ‘demais’ mata 745 mil pessoas por ano no mundo, revela estudo, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57154909, acesso em: 25/07/2023, 08:34.
⁴ MOTA, Camilla Veras, Calculadora de renda: 90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3.500; confira sua posição
⁵ DE PAULA, Aécio, Salário mínimo ideal no Brasil seria de R$ 5.351, diz pesquisa, disponível em: https://noticiasconcursos.com.br/salario-minimo-ideal-no-brasil-seria-de-r-5-351-diz-pesquisa/, acesso em: 25/07/2023, 08:50.
⁶ “O autotune, em livre tradução, é um “autoajuste” ou ajuste automático, que por sua vez, afina a voz dos cantores segundo o tom da música. Ou seja, este software pega uma música que está na escala de Dó Maior, e transporta a voz para este mesmo tom” (BATISTA, Moyses, O que é o Auto-Tune e como ele revolucionou a música?, disponível em: https://www.bitmag.com.br/o-que-e-o-auto-tune-e-como-ele-revolucionou-a-musica/, acesso em: 18/08/2022, 12:12).
⁷ “HEDONISMO (in. Hedonism; fr. Hédonisme, ai. Hedonismus; it. Edonismó). Termo que indica tanto a procura indiscriminada do prazer, quanto a doutrina filosófica que considera o prazer como o único bem possível, portanto como o fundamento de vida moral. Essa doutrina foi sustentada por uma das escolas socráticas, a Cirenaica, fundada por Aristipo; foi retomada por Epicuro, segundo o qual “o prazer é o princípio e o fim da vida feliz” (DlÓG.L, X, 129)”. (ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia, 2007).
⁸ “A tristeza deste hedonista — uma tristeza tão difundida quanto rejeitada — em lugar nenhum foi melhor capturada do que na forma melancólica em que Drake canta “nós demos uma festa / sim, nós demos uma festa”, em “Marvin’s room”, do Take Care” (FISCHER, Mark, Fantasmas da minha vida, 2022).