Construindo interações entre Humanos e Máquina.

Tayla Gurgel
11 min readApr 27, 2020

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Robótica afetiva para idosos: como surgiu a Robô Maya.

No Mestrado em Design do CESAR School, aqui em Recife-PE os alunos são estimulados a resolver problemas reais em suas pesquisas, como um momento inicial para pôr em prática os aprendizados das aulas, logo nas primeiras aulas fomos apresentados a clientes reais com problemas que suas empresas buscam resolver.

Briefing do cliente: Como usar Robótica Afetiva para auxiliar pessoas a ajudar/cuidar de idosos? Quais as features esse robô deve ter?

Sim, Robôs para ajudar a cuidar de idosos, de início também não gostamos muito da ideia, tivemos nosso momento de “que coisa absurda, colocar um robô para cuidar de idosos”. Mas você já parou pra pensar em quantos robôs já existem no mercado, ou até mesmo com quantos você já interagiu?… Quando você pensa em robôs qual a primeira imagem que vem a sua cabeça?

Robôs podem ser causa de preocupação, medo e até uma certa repulsa por parte de algumas pessoas…Afinal quando escutamos sobre o assunto, geralmente vem atrelado a notícias ruins, como pessoas que podem perder seus empregos para robôs ou videos de robôs atirando que vazaram na internet.

A robótica pode vir a trazer inúmeros impactos negativos para população humana , por isso devemos nos preocupar em construir robótica com propósito. Como toda tecnologia, soluções robóticas também trazem muitos benefícios e podem ajudar ajudar a melhorar nossa qualidade de vida. Esse é o foco da construção da Robótica Afetiva, área da tecnologia que deriva da Computação Afetiva, termo criado pela pesquisadora Rosalind Picard, do MIT.

Computação Afetiva é aquela que se relaciona, surge ou influência, intencionalmente, a emoção ou outros fenômenos afetivos. ( Rosalind Picard, MIT Press, 1997)

Para isso precisamos conhecer e entender muito bem o público que vai interagir com o robô, estabelecer uma personalidade para o robô que faça sentido para o contexto e propósito, mapear as interações e validar fluxos e a efetividade da comunicação.

Mas será que é possível criarmos algum tipo de afeto por máquinas? e como seria isso?

A partir do briefing que recebemos do nosso cliente, iniciamos uma intensa pesquisa que resultou na robô Maya, uma inteligência artificial que oferece estímulos para o bem-estar físico, cognitivo e emocional dos idosos a partir do que eles mais necessitam: boas conversas.E é sobre esse processo de descobertas e aprendizados que nos fez chegar até a Maya,que quero contar.

Em resumo, vou explicar o que fizemos em cada fase, e também nossos aprendizados, que foram além do aprender sobre a temática proposta ou/e podem ser aplicados como base para diversas pesquisas futuras.

1.Pesquisas Secundárias:
Primeiro precisávamos entender sobre as duas temáticas centrais do desafio, público idoso e robótica afetiva. Pesquisamos na internet palavras-chave relacionadas e também sobre o contexto qualidade de vida. Encontramos vários artigos científicos que abordavam a construção de robótica para auxiliar idosos, e também sobre benefícios e malefícios que a interação humano-robô pode ter. TED Talks, artigos de revistas e sites também foram fonte de várias descobertas.

Logo descobrimos, que a relação entre idosos e robótica já vem sendo estudada em vários lugares do mundo, pelo simples motivo de ser uma tendência de mercado que está cada dia mais próxima de virar realidade.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde até 2050 a população idosa representará um quinto da população mundial, e é esperado que as pessoas não idosas, sejam incapazes de oferecer o cuidado e ajuda necessária que os idosos necessitam, em questões de números mesmo… vão existir mais idosos, do que adultos, jovens e crianças juntos.

Aprendizados desta primeira fase:

  • A Robótica está mais presente no nosso dia-a-dia do que imaginamos.
  • A robótica é uma solução que pode trazer muitos benefícios
  • Idosos precisam de ajuda, e se não vão ter pessoas suficientes pra isso robôs podem ser uma ótima solução.
  • Existem poucos Designers estudando sobre robótica afetiva.

2.Pesquisa de profundidade com Especialistas.
Precisávamos entender ainda mais o universo do Idoso,e por isso fomos conversar com quem tem propriedade do assunto: Dra. Cirlene Francisca Sales da Silva (psicóloga especialista em Relacionamento inter-geracional, suicídio e depressão na velhice e família.) e Dra. Carla Núbia Nunes Borges (Gerontologista especialista em Doenças psicossomáticas + Ageismo, e envelhecimento mais ativo.) Foi muito importante conversar com elas, afinal um dos pontos mais importantes dentro da temática “População Idosa” é saúde.

Pra essa fase preparamos um questionário estruturado, com oito perguntas relacionadas a qualidade de vida do idoso. Em nenhum momento falamos pra elas que a intenção principal do estudo seria criar uma solução robótica, porque queríamos entender qual o seria o real ponto de vista delas, sem ter influência da nossa parte. E no final da conversa algo muito interessante aconteceu, as duas especialistas comentaram sobre “ e se existissem robôs para ajudar no cuidado de idosos?”, uma delas já havia até lido pesquisas sobre o assunto.

Aprendizados desta fase:

  • Em torno de 80% dos familiares que convivem com seus pais/avós em na mesma casa sofre de depressão grave. — Ver alguém próximo, que amamos, envelhecer, nos faz encarar nossa própria velhice, logo, nossa própria morte… é um ato do nosso subconsciente.
  • Os idosos sofrem com a Inter-geracionalidade. Quando somos crianças convivemos com outras crianças, quando adolescentes temos outros adolescentes como amigos e confidentes, quando adultos temos amigos adultos, e quando idosos?… Geralmente os idosos perdem contato com amigos e outras pessoas de sua idade, por ficarem restritos ao círculo familiar, logo não tem com quem dividir as mesmas experiências sobre aquele momento da vida em particular.
  • Para um grande número de idosos, manter o mínimo de independência, como fazer compras no mercado, é muito importante.
  • Conversar com especialistas, e profissionais de áreas diferentes da nossa é muito enriquecedor. São pessoas que enxergam o problema de maneira diferente, trazem questionamentos e insights que antes não pensamos.

3. Pesquisa de Campo com Idosos.
Agora faltava conversar com o usuário central da nossa possível solução, os idosos. Fomos á casa de alguns idosos, entender melhor sobre a rotina deles, como era a convivência com filhos e netos, quais as coisas que eles mais gostam de fazer e o que deixaram de fazer por conta da idade. Essa foi de longe, a fase mais desafiadora.

Registros feitos por nós durante visita na casa de alguns idosos.

O primeiro desafio com o qual nos deparamos foi Entrevistar público Idoso. Entendam, entrevistar pessoas não é algo difícil, algumas de nós já tinha bastante experiência em entrevistas com usuários, já estávamos com o roteiro elaborado e uma lista de idosos que recrutamos para participar da pesquisa,mas o público idoso tem suas particularidades.

Rapidamente agendamos entrevistas presenciais com 5 idosos, mas foi muito difícil para visita de fato acontecer. Chegamos a tocar o interfone de um dos agendamentos marcados, na hora exata prevista (18h), e escutamos que tinha que ficar pra outro dia, pois a pessoa estava com dor de cabeça, outro também que escutamos é porque naquele dia em específico a pessoa queria dormir cedo e não poderia nos receber daqui a 30 minutos ( no horário que tínhamos marcado). Na segunda tentativa, procuramos marcar horários durante a manhã ou começo da tarde, e só então tivemos sucesso. E dos 5 idosos que recrutamos inicialmente, só conseguimos entrevistar 3.

Durante as entrevistas nos deparamos com o segundo desafio, Não se envolver emocionalmente. Os idosos ficaram tão animados com as pessoas jovens, que estavam interessadas em suas vidas que contavam suas histórias com um enorme prazer… contavam sobre seus casamentos com companheiros abusivos e a vida difícil que tiveram, ou sobre uma esposa muito amada que faleceu e por conta disso a vida já não era a mesma, reclamavam dos filhos, filhas, noras e genros, mas sempre muito orgulhosos de seus netinhos. Nesses momentos era praticamente impossível segurar as lágrimas, e aí está uma coisa que não aprendemos na faculdade de Design ou até no Mestrado: como fazer uma pesquisa de teor tão emotivo, sem sentir empatia, e mantendo a neutralidade?… foi uma dificuldade que realmente não prevemos, mas sem dúvida um dos maiores aprendizados deste projeto.

Outra dificuldade que tivemos nas entrevistas foi, seguir o roteiro e terminar no tempo previsto. Nossa primeira pergunta era: Poderia nos contar sua rotina? De que horas costuma dormir e fazer refeições?… As respostas sempre começavam com a hora de acordar, mas nunca chegavam na hora no almoço, pois no meio do caminho se lembravam de coisas, que na visão deles, era mais interessante de contar… e fomos nos adaptando durante a entrevista pra não perder nenhuma informação importante e também não fugir do roteiro. E quando a entrevista acabava, eles sempre tinham um cafezinho pronto para nos servir, e se sentiam ofendidos se não aceitássemos, ah… e antes de irmos embora eles com muito gosto nos convidavam para conhecer cada canto de suas casa, mostrar as fotos da família, e seus santuários onde cada santinho ali disposto tinha sua importância particular.

Ainda fizemos uma pesquisa de Guerrilha com o intuito de encontrar usuários extremos. Em um dia de semana pela tarde, fomos a um shopping e encontramos vários idosos dispostos a conversar bastante, que tem o hábito de ir todos os dias pro shopping apenas para conversar, passear e “ver as novidades” como eles mesmo disseram.

Fotos tiradas por nós, durante a pesquisa de Guerrilha no shopping

Os idosos que entrevistamos na Guerrilha tinham duas coisas em comum, todos eles tinham uma vida social ativa, e sempre quando perguntávamos sobre qualidade de vida, as respostas que escutamos eram as mais positivas possíveis. Eles tinham orgulho do que tinham conquistado na vida e agora queriam apenas curtir os netos, viagens e a liberdade de não terem mais obrigações profissionais ou de cuidar de filhos.

Encerramos essa fase com aprendizados muito importantes:

  • Muitos idosos sentem falta de conversar. Conversar com pessoas que de fato estão interessadas em escutá-los, e não apenas por obrigação.
  • A Religião é algo muito importante, e que tem impactos significativos na rotina dos idosos.
  • Aqueles idosos que conseguem manter uma rotina de atividades interativas, e de convivência com outros idosos apresentam uma melhor qualidade de vida
  • Idosos tem sim vontade e necessidade de consumir tecnologia, as tecnologias é que não estão preparadas para as necessidades desse público, e também poucas pessoas tem paciência de ensiná-los.
  • Quando necessário fazer entrevistas com usuários idosos, estar consciente que o planejamento necessita de algumas particularidades, como perguntas bem objetivas, e também ter momentos que os deixem à vontade para falar aquilo que estão ansiosos para dividir com alguém.

4. Análise de Artefatos existentes:
Já existem vários robôs sendo comercializados, consequentemente necessidades de usuários foram traduzidas em features. Quando se constrói um produto a pesquisa de similares pode ser uma etapa decisiva, afinal qual o sentido de “criar” algo que já existe, e se existe, quais os diferenciais que um novo produto poderia ter.

Nesta fase a pergunta que tentamos responder foi: E se existem robôs têm Idosos como público alvo, quais os problemas que eles resolvem? Esses robôs ajudam esses idosos a terem uma melhor qualidade de vida?

Pontuamos os robôs em 7 categorias, são elas:
Aprendizado: O Robô é capaz de registrar / aprender as necessidades individuais do idoso?
Físico: Alguma feature ou conjunto de features seria capaz de suprir alguma limitação físicas da pessoa idosa?
Cognitiva: Alguma feature seria capaz de suprir alguma limitação cognitiva da pessoa idosa?
Emocional:Alguma feature ou conjunto de features seria capaz de suprir carência emocional da pessoa idosa?
Supervisão e Vigilância: o robô apresenta alguma funcionalidade para chamadas de emergências, sensor anti-queda… algo do tipo?
Comercializado: está disponível para comprar?
Idoso: este robô foi construído com foco em idosos?

Nesta fase identificamos que existem ainda muitas dificuldades técnicas para construir soluções robóticas, como fazer robôs se movimentarem por exemplo, e também que ativar suas funções deve ser algo extremamente simples, ou caso contrário pode atrapalhar a interação com o usuário.

5. Compilação de dados:
Depois de tantas informações e aprendizados precisávamos compilar e traduzir essas informações em dados, para isso usamos diversas ferramentas de Design neste processo, como mapa de stakeholders, Matriz CSD e Mapa-ator rede, que nos ajudaram a encontrar as informações mais importantes. Toda essa massa de informações resultou em um Storytelling com 4 personas: 2 idosos, de perfil diferentes, e seus respectivos cuidadores. Esta fase rendeu muito mais aprendizados do que cabe escrever aqui, por isso tem um artigo inteiramente dedicado a contar como construímos este entregável: “UX Research + Storytelling: transformando dados de pesquisa em histórias”

Apenas nesta etapa, depois de todo conhecimento que construímos com a pesquisa aprofundada,chegamos no nosso usuário alvo, o perfil de idosos que seria beneficiado por uma solução robótica-afetiva e que principalmente, aceitaria consumir tal tecnologia. O idoso semi-dependente. Aqui concluímos que a problemática inicial precisava ser reformulada, de forma que refletisse os dados encontrados na pesquisa.

As necessidades específicas de cada idoso são totalmente variáveis e diversificadas — com base nas condições cognitivas, físicas e emocionais, como também quanto à rotina, envolvimento da família, grau de dependência/independência e qualidade de suas relações sociais. E isso vai mudando dia a dia, rapidamente. Porém, o que encontramos em comum em todos os idosos, independente de suas condições, foi a necessidade de atenção, compreensão, presença e conversa, que traduzimos em carência afetiva.

O Briefing que recebemos do cliente foi ressignificado, pois pensar no robô como solução para ajudar a cuidar de pessoas, não fazia mais sentido. O desafio foi reescrito da seguinte forma:

Como melhorar a qualidade de vida dos idosos, amenizando a carência afetiva através da robótica?

6.Ideação
Depois de um longo, divertido e assíncrono processo de ideação, chegamos á uma possível solução: Um robô facilitador de conexões. Que seria Uma inteligência artificial que oferece estímulos para o bem-estar físico, cognitivo e emocional dos idosos a partir do que eles mais necessitam — boas conversas. A solução atua ainda como facilitador de conexões, contando com uma rede de pessoas conhecidas e desconhecidas do seus usuários.

Algo muito importante que construímos nesta fase foi a Persona do robô. Um dos meios que facilita a interação entre o robô e usuário é tornar a tecnologia mais amigável e mais próxima de algo conhecido.

E foi assim que chegamos a Maya, um chatbot pró-ativo, que estimula conversas através de perguntas.

Com uma possível solução bem desenhada e estruturada a próxima etapa é a de prototipação, para assim validar com os usuários se a solução escolhida realmente atenderia suas necessidades. Mas os aprendizados desta etapa foram tantos, que vão ficar pra um segundo artigo. Já adianto que construímos 2 protótipos, e voltamos a campo para testá-los com os usuários.

Quero deixar aqui registrado, meu agradecimento ao meu grupo Giulia Zanella, Giselle Rossi Araujo e Jéssica Kianne, profissionais incríveis que assim como eu mergulharam nesse projeto durante longos 11 meses, e sem

elas essa experiência, nem de longe, teria sido a mesma. E ao amigo Almir Henrique Dantas, que sempre revisa meus textos e também tem colaborado com os desdobramentos desta pesquisa.

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Tayla Gurgel

Product Designer from Recife living in Toronto, Canada. Masters in Design, passionate about robotic and foresight