Introdução ao Sincronário da Paz e seu “Dia Fora do Tempo”: entre política e mística, do “tempo natural” à invasão europeia e o congelamento do Calendário Maya

Thiago Cavalcanti
15 min readMay 17, 2018

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Imagem do calendário da paz, que ilustra mistura de elementos inspirados no calendário maya e no I Ching.

Por Thiago Cavalcanti (versão ligeiramente revisada do original, publicado em 25/07/2013 e disponível em http://blog.calendariosagrado.org)

ÍNDICE

0. Nota do autor
1. Introdução ao Sincronário da Paz
2. Do funcionamento do calendário de Argüelles e da importância dos dias “0.0 Hunab Ku” e “Fora do Tempo”
3. Da influência colonial no calendário de Argüelles e o paradoxo do resgate maya galáctico
4. Breve comentário sobre a convergência harmônica
5. Considerações finais: “tempo natural”?

0. Nota do autor

Este texto pretendeu, à ocasião de mais um dia 25 de julho, “Dia Fora do Tempo” (ou DFT), trazer uma introdução sobre o “Sincronário da Paz” (ou SdP), um calendário new age em que o DFT é celebrado. Este é, antes de mais nada, é um ensaio franco direcionado a todos os leitores que se interessem pelo assunto do Calendário Maya e/ou do “Calendário da Paz”, e que pode ser lido no todo ou em partes. Não se pretende um escrito concluído, mas sim pertencente a um âmbito de constante reflexão e diálogo desde 2006.

1. Introdução ao Sincronário da Paz

Em 1987, veio ao mundo uma obra que marcaria tanto a popularização do “Calendário Maya” quanto do “Fenômeno 2012″. A obra, em forma de livro e escrita pelo estadunidense José Argüelles, tem como título “O fator maya”, e tratou-se claramente de um esboço daquilo que viria a ser conhecido no Brasil primeiro como “Calendário da Paz” e, posteriormente, como “Sincronário da Paz”. Por extensão, também um esboço de muitas crenças sobre os mayas.

Já naquele primeiro livro, instalou-se uma tentativa de afirmar a versão argüelliana, isto é, a ordem específica dos dias divulgada no livro, como sendo “o calendário maya” (ver início do capítulo 5 do meu livro, clicando aqui). Argüelles foi criticado e acusado por fazer uso da estrutura de calendários mayas para impor sua própria versão e sua ordem dos dias. Mais do que isso, seus principais críticos apontam para uma manipulação da conta de 260 dias, de maneira que os dias de nascimento, no calendário ritual, de Argüelles e sua segunda (e principal) esposa, Lloydine, fossem particularmente interessantes para a sustentação de sua própria teoria e de sua espécie de missão espiritual do novo tempo.

Numa breve analogia, o que se fez na prática seria o mesmo que pegarmos o calendário gregoriano, mantendo sua estrutura e sua divisão em meses mas afirmando que o dia 25 de julho seria, por exemplo, 20 de março, ao mesmo tempo sustentando que essa nova versão é o “calendário gregoriano”. É claro que haveria contestação.

Ainda no fim da década de 1980 e começo da década de 1990 começaram a aparecer reações contrárias às teorias de Argüelles, e que se amplificaram com uma maior elaboração e desenvolvimento do “Dreamspell” (inicialmente um jogo de tabuleiro), nome original do “Sincronário da Paz” em inglês e que significa “Encantamento do Sonho”, que ilustrou mais diretamente um esforço espiritual e estético de Argüelles e seus apoiadores, em busca de legitimação universal para seu calendário.

Em lugar de aprofundar acerca do calendário maya (para além dos achismos e insights próprios), Argüelles parecia cada vez mais abraçar elementos de outras culturas (alheias ao próprio continente “americano”) como, por exemplo, as “Runas de Futhark” (Escandinávia) e o “I Ching” (China). Para introduzir essas novas práticas, negligenciou-se toda a riqueza dos calendários que, antes mesmo de serem mayas, são mesoamericanos e guardam um universo nativo riquíssimo e completamente preterido em nome da inclusão de elementos kaxlan (palavra, normalmente de cunho pejorativo, que alguns mayas de hoje usam para designar os “gringos”, os “de fora da tradição”) e da própria vida e experiência artística do casal Argüelles. Resumindo, Argüelles preferiu abraçar as vertentes místicas e o movimento nova era, ao invés de trabalhar para “resgates” ou “divulgações” da cultura maya e mesoamericana em si.

Àquela altura (da virada da década de 1980 para a de 1990), seria sistematizada a inserção do que Argüelles chamou de “conta das 13 Luas”, a divisão do ano em 13 ciclos de 28 dias cuja existência entre os mayas, apesar de encontrar respaldo em pesquisas acadêmicas (que tendem a tratar os 13 ciclos como referente às constelações transitadas pelo Sol e não a ciclos da Lua), ainda não nos permite afirmar sua correspondência em relação ao calendário gregoriano, e menos ainda às constelações greco-romanas (como haveria de ser, já que diferentes povos têm diferentes constelações). Há aí, portanto, ao mesmo tempo uma nova versão hipotética para este ciclo, e que viria a justificar o advento do “Dia Fora do Tempo”, do qual falaremos mais adiante. Algo que pouco se comenta, ainda hoje, é que Argüelles, para instituir as suas “13 Luas”, baseou-se no trabalho de Hector Calderón e Hugh Harleston, de quem ele copiou toda a estrutura fazendo adaptações pontuais e na ordem das “luas” (note-se, ainda que para Calderón e Harleston eram 13 “sóis” e não “luas”). Entretanto, estes autores também não gozam de muito crédito entre especialistas, e a forma de contar o ciclo de 364 dias segue sendo uma questão em aberto (pessoalmente, uso apenas como curiosidade matemática, sem “cravar” uma contagem ou afirmar uma ordem dos dias mais objetivamente).

Ideologicamente, o movimento argüelliano estabeleceu um discurso que apela para o que seria “tempo natural”, amparado pela “frequência 13:20″ (oriunda dos dois ciclos, de 13 e de 20 dias, que compõem o calendário ritual mesoamericano, que totaliza 260 dias). Afirma-se, reiteradamente, uma necessidade, que beira um dogma religioso, de se substituir o paradigma de “tempo é dinheiro” pelo de “tempo é arte”, lado-a-lado com a problematização da inconstância do calendário gregoriano (com meses que variam de 28 a 31 dias); isto deu a Argüelles a confiança de um projeto sólido e que poderia instituir-se politicamente no mundo.

Baseado numa retórica cujos argumentos principais circundavam esse discurso do “tempo natural”, e cuja defesa ao mesmo tempo mostrava-se até certo ponto (discursivamente) anticapitalista e (neo?)hippie, pregando uma cultura da paz, amor e arte, e introduzindo elementos de culturas europeias e asiáticas, Argüelles levou adiante seu projeto de substituição do calendário gregoriano pelo seu próprio calendário. Apresentou-o, em especial, a duas das instituições mais influentes do mundo, e capazes de legitimar sua ambição: a ONU e o Vaticano.

Tendo seus planos junto a essas instituições frustrados, e sem conseguir impor uma mudança na ordem mundial do tempo, seu calendário desviou-se por outras sendas, cada vez mais personalistas ou parecidas com culto à sua personalidade, que fizeram com que, em boa medida, o movimento e o calendário literalmente girassem em torno de José Argüelles, que passou a ser cada vez mais reverenciado, a partir da narrativa de diversos ritos de passagem e sonhos pessoais (daí mais uma razão para o nome Dreamspell). O culto a sua figura se deu também com a atribuição de diversos títulos, tais como “encerrador do ciclo” (de 2012) e “doutor da cura planetária”, dentre outros. As críticas new age ao capitalismo, e as práticas e explicações místicas ou religiosas, poderiam abundar, uma vez tendo falhado a diplomacia junto às instituições que poderiam legitimar as ambições de mudança do calendário mais diretamente…

Na contramão de seus interesses, a comunidade científica (com apoio de pesquisadores independentes) fazia cada vez mais pressão sobre Argüelles e seu movimento para que deixassem de se propagar como “calendário maya”, demonstrando, de diversas maneiras, como sua teoria era falha, como seus escritos continham erros e, principalmente, como o “ciclo de 2012″, que o próprio Argüelles defendia, não estava sendo respeitado, e nem a ordem dos dias do calendário ritual de 260 dias que, diferente do México (de onde se clama uma suposta origem nativa para a versão de Argüelles), foi mantida na Guatemala — fato que já era difundido entre antropólogos mais de 50 anos anos da própria aparição de Argüelles na cena pública como suposto “especialista” em calendários mayas.

Acuado (e possivelmente questionado por vários seguidores do “Calendário da Paz”), Argüelles buscou outra saída que lhe pusesse numa posição cômoda e ainda de legitimação e resgate do “calendário maya” a que se propunha. Assim, instituiu-se o discurso de que seu calendário era diferente daquele hoje mantido, sendo referente ao resgate “maya galáctico”, isto é, dos grandes mestres da antiguidade maya que, supostamente, teriam abandonado a “nave Terra”, transcendendo a dimensões superiores. Em outras palavras e em contraste, os mayas que sobreviveram à época gloriosa das antigas elites mayas seriam indígenas “menos evoluídos”, que já não guardariam toda a sabedoria dos verdadeiros mestres (e é assim que certas lideranças atuais do movimento seguem argumentando, numa lógica no mínimo “evolucionista”).

Isto acaba por relacionar-se, também, nas teorias argüellianas e de maneira previsível, às teorias de origens extraterrenas e na mítica do retorno ou reencarnação de mestres espirituais, de supostos propósitos revolucionários através da paz. A/O leitor(a) pode imaginar por si quem seria o mestre do grande ciclo revolucionário de 2012, e também que o discurso “maya galáctico” sobreviveu apesar da própria morte de Argüelles, ocorrida ainda em 2011. Desta maneira, as confusões foram mantidas mas, com certeza, têm sido desfeitas no Brasil e em língua portuguesa graças especialmente a nossas contribuições no âmbito do Projeto CMAIA (Calendário MesoAmericano Independente e Aberto), da Associação Ibero-Americana de Estudos Mayas e das minhas pesquisas pessoais, e que culminaram em publicações, sites e outros projetos, publicizando principalmente análises antropológicas, históricas e matemáticas a partir de 2006.

2. Do funcionamento do calendário de Argüelles e da importância dos dias “0.0 Hunab Ku” e “Fora do Tempo”

O “Calendário da Paz” funciona a partir da apropriação da estrutura de três ciclos mayas: o Tzolk’in (260 dias, divididos em 20 trezenas ou 13 vintenas), o Ja’ab’ (365 dias, divididos em 18 “meses” de 20 dias e um ultimo período de 5 dias) e o “Tun-Uk” (364 dias, divididos em 13 ciclos de 28 dias). Contudo, e ao contrário dos antigos calendários mayas usados antes da invasão da “América”, o calendário de José Argüelles instituiu uma fórmula matemática simplificada no sentido de, contraditoriamente, transportar a estrutura desses ciclos e submetê-las ao calendário gregoriano, ou seja, para estabelecer uma correspondência fixa ao calendário gregoriano.

Isto significa dizer que a mudança matemática proposta por Argüelles, para “sincronizar” e “modernizar” o calendário maya, na verdade serviu para que sua estrutura fosse “sincronizada” ao próprio calendário gregoriano, tão criticado pelo próprio Argüelles.

Na prática, isto se prova facilmente: basta constatar que o dia de ano novo, no “Calendário da Paz”, é sempre equivalente ao dia 26 de julho, no calendário gregoriano. Isto evidencia uma adequação que vai no sentido oposto àquele do discurso, isto é, ao invés de ser uma alternativa que rompe de fato com o calendário gregoriano, torna-se uma versão que, de maneira intencional, se relaciona e principalmente se submete à matemática inerente ao calendário gregoriano.

A solução matemática encontrada por Argüelles para que os 365 dias do ano maya tivessem correspondência fixa aos 365 dias do calendário gregoriano foi o uso do dia que ficou conhecido como “0.0 Hunab Ku”. Este seria o dia (ou o não-dia) equivalente aos dias 29 de fevereiro. Dessa forma, este não-dia não tem equivalência própria em nenhum ciclo, independente de o âmbito ser o do calendário de 260, 364 ou 365 dias. Na prática se, num ano bissexto, o dia 28 de fevereiro for o 10, o dia 11 será apenas em 1º de março — e o dia 29 de fevereiro poderá pegar, “por empréstimo”, os símbolos associados a qualquer dos dois dias, seja o anterior ou o posterior.

Isto significa dizer, também, que se preferiu instituir um dia em que a sequência de dias deixasse de ser contada, sendo literalmente interrompida, de modo a favorecer uma simplificação matemática que ajuda o “Calendário da Paz” a harmonizar-se e sincronizar-se com o calendário gregoriano. Contudo, o dia “0.0 Hunab Ku” explica apenas como José Argüelles adequou a estrutura do ciclo maya de 365 dias — e, por extensão, do ciclo de 260 dias — ao calendário gregoriano, não tendo qualquer relação com o antigo calendário maya.

Faltava, ainda, “sincronizar” o ciclo de 364 dias dentro dessa estrutura. Aqui entra o tão falado “Dia Fora do Tempo” (DFT). Diferente do dia “0.0 Hunab Ku”, que poderia ser considerado “fora do tempo” de fato, por não ser contado em nenhum dos ciclos que integram o Dreamspell, o DFT tem, como função matemática, somar um dia a mais no ciclo de 364 dias, e assim fazer com que suas datas (em especial, suas “13 Luas”) encontrassem equivalente fixo tanto no ciclo maya de 365 dias — já que o ciclo de 364 dias passa a ser de 364+1 — quanto no calendário gregoriano.

3. Da influência colonial no calendário de Argüelles e o paradoxo do resgate maya galáctico

Fato pouco comentado, contudo, é o de que os métodos descritos na parte anterior a esta (especialmente no que se refere ao dia “0.0 Hunab Ku”) tem precedentes mayas, sim, precedentes nativos no México, sendo assim tem, ao menos parcialmente, uma origem mexicana. Contudo, antes de legitimar e dar força às teorias de Argüelles, estes precedentes servem apenas para levantar mais contradições. Argüelles faz por repetir manobras matemáticas que, em tempos coloniais, quando os invasores europeus já impunham suas vontades, foram usadas justamente para submeter o calendário maya ao calendário europeu.

Isto significa dizer que, historicamente, a mesma prática replicada por Argüelles com o dia “0.0 Hunab Ku” já havia sido oficializada em alguns povoamentos e comunidades indígenas (sem tal nome, claro), sob influência europeia e cristã, de maneira a adequar o calendário antigo ao calendário dos invasores. Prática similar ocorreu entre diversas etnias, principalmente entre os séculos XVI e XVII, e embora o dia europeu escolhido para ser “suprimido” de equivalências nas contas nativas pudesse variar, o dia 29 de fevereiro era um deles.

Neste sentido, o caráter de resgate dos “mayas galácticos” encontra um grande problema, pois encontra-se imerso num paradoxo. Este paradoxo se deve muito ao fato de que a mitologia argüelliana apela exaustivamente para estabelecer uma relação entre Argüelles e Pakal, o (hoje) mais popular governante maya, que governou sua região no século VII, desde a cidade atualmente conhecida como Palenque. O encantamento dos sonhos de Argüelles está, se pode dizer, amparado naquele período histórico e, mais do que isso, é àquele período histórico que o termo “mayas galácticos” se enquadra, quase como uma espécie de sinônimo para “mayas antigos” ou “mayas clássicos” (o chamado período clássico maya, visto como o “auge” maya, vai, aproximadamente, do ano 250 ao ano 900, portanto ocorreu há mais de mil anos).

Como poderia, então, o calendário argüelliano fazer uso de medidas empregadas mais de 500 anos após o chamado período clássico maya, e que foram introduzidas como forma de submeter os calendários antigos ao calendário do invasor europeu/cristão?

Até onde a ideia de um resgate dos “mayas galácticos” pode ser prejudicada quando nos damos conta de que a forma de contar proposta por Argüelles encontra mais referencial no período colonial do que no período que justifica a própria categoria de “mayas galácticos”?

Dito de outra forma: se as estratégias da conta de Argüelles têm menos de 500 anos, e o próprio Pakal não as utilizou, há como falar num resgate da ancestralidade conforme se almeja estética e discursivamente? Mais: se Pakal não utilizou o calendário como Argüelles, quais sentidos os dias dedicados ao antigo senhor maya podem de fato ter no “Calendário da Paz”, se não vinculam a um ciclo que Pakal celebraria de fato naquele momento?

Entendemos que estes dados evidenciam um paradoxo insuperável, uma contradição intransponível e que, ao contrário do discurso, separam o calendário de Argüelles completamente dos calendários antigos e de qualquer possibilidade séria de um resgate pertinente do que o próprio Argüelles chamou de cultura “maya galáctica”.

O calcanhar de aquiles do “congelamento” incentivado, proposto e imposto pelos europeus mostra que a própria distinção entre “mayas galácticos” e “mayas contemporâneos” se torna muito mais falaciosa do que os defensores dos “mayas galácticos” gostariam. Tal distinção visava justamente dizer que o conhecimento e o calendário dos “mayas galácticos”, do tempo de Pakal, havia sido perdido e que, mesmo respeitando as tradições contemporâneas (muito mais no discurso do que na prática), o “Calendário da Paz” se diferencia deste (e, nas entrelinhas, era superior a este) na medida em que supostamente resgata este conhecimento perdido.

Uma vez que a história nos mostra que a manobra de adequação e congelamento dos calendários mayas em favor do calendário europeu influencia muito mais a forma de funcionamento do calendário de Argüelles, todo este discurso dos “mayas galácticos” perde qualquer apelo às mentes que não estão demasiado envolvidas ao culto em que este calendário da nova era se tornou.

Se aparentemente, na pior das hipóteses, poderíamos falar dessa origem colonial para o calendário de Argüelles, o mesmo não serve para justificar a ordem dos dias deste calendário no que se refere ao ciclo de 260 dias, pois até onde sabemos tal ordem dos dias é incompatível àquelas das etnias em que o calendário foi congelado.

4. Breve comentário sobre a convergência harmônica

A convergência harmônica foi o grande evento que inspirou e impulsionou Argüelles a escrever (ou apressar) o livro “O fator maya”. Este ciclo, em agosto de 1987 seria, de acordo com Tony Shearer, o fim de um grande período de trevas, cujo início estava ancorado ao evento mítico de partida de Quetzalcoatl (divindade, “Serpente Emplumada”) da Mesoamérica. Isto passa pela problemática interpretação de que a chegada do invasor Hernán Cortez seria o retorno de Quetzalcoatl. Nove ciclos de 52 anos após Cortez seria o ponto de referência para se calcular a convergência harmônica, e seria o fim de um ciclo de trevas que havia iniciado justamente no encontro entre Cortez e o grande líder mexica (“asteca”) Moctezuma. As contas de Shearer, contudo, não apontam para 9 ciclos exatos de 52 anos, de maneira que a data de agosto de 1987 também é problemática por si.

O que talvez muito ainda se ignore é o fato de que Argüelles aprendeu sobre isto com o próprio Tony Shearer. Mais: Tony Shearer usava outra ordem dos dias. Não resta dúvida: Argüelles teve contato com a ordem nativa dos dias (cuja continuidade cultural se pode atestar), e mesmo assim escolheu seguir com sua própria versão.

O DFT de 2013 foi apontado como uma espécie de ápice, a completude de 26 anos de convergência harmônica e o primeiro DFT pós-2012. Contudo, parece que há muito tempo os adeptos do “Calendário da Paz” esqueceram-se de (se é que conheceram a) Tony Shearer e do calendário que ele usava, ao celebrar tal ciclo.

5. Considerações finais: “tempo natural”?

Resumidamente, este texto apresenta razões suficientes para que o “Calendário da Paz” não seja considerado, em hipótese alguma, um calendário maya e, menos ainda, um resgate de um antigo calendário maya ou do calendário que seguia o (hoje) famoso governante maya, Pakal de Palenque.

Qualquer noção de “tempo natural” esbarra claramente na evidente intervenção humana sobre a contagem, organização e a administração do tempo. Isto significa que, ao introduzir os dias “0.0 Hunab Ku” e “Fora do Tempo”, e graças a eles adequar seu calendário ao gregoriano, Argüelles está na verdade afastando-se de uma defesa minimamente crível de algum conceito de “tempo natural”, na medida em que elaborou uma versão modificada de uma forma de entender e organizar o tempo que é culturalmente determinada. Ou seja, uma versão modificada de um calendário que já havia sido social/culturalmente construído (como qualquer calendário é) não se sustenta enquanto “tempo natural”, ao contrário, estabelecem mais intervenções que afastam-na ainda mais de um suposto “tempo natural”, aproximando-o da abstração (demasiado humana) do tempo.

E ainda que se utilizasse a versão “original” de aplicaçao de todas essas estruturas matemáticas e calendáricas — teríamos que voltar ao tempo da oralidade, pré-escrita, bem antes dos mayas… Quão expressão do “tempo natural” eles seriam? Ou, sendo mais objetivo, quanto de observação pautada exclusivamente no mundo natural o calendário teria de fato, antes da construção cultural ou social do tempo (se é que poderíamos dissociar estas duas coisas), e da idealização abstrata de que “tempo é arte”? Entendemos que não há razões para defendermos a ideia de um “tempo natural” universal, especialmente se ele depende do uso de um calendário específico, que se apropriou de estruturas mayas e mesoamericanas que foram modificadas por um kaxlan e que agrega elementos de outras culturas . E é exatamente isto que o “calendário da paz” defende, sem sequer se embasar com propriedade na antiga tradição que dizem trabalhar para resgatar.

Continuaremos a evidenciar o que é silenciado a respeito disto tudo, mas o “Sincronário da Paz” continua muito forte política e economicamente no Brasil, tendo bastante influência em vários círculos, com destaque para os artísticos (por razões óbvias) e o mundo da música eletrônica, enquanto o Projeto CMAIA é apenas um foco independente de resistência e esclarecimento sobre aquilo que a eles próprios nunca foi conveniente esclarecer, a não ser pontualmente e enquanto reação às consequências do nosso trabalho junto a milhares de seus seguidores, a maioria dos quais abandonou este calendário new age entre 2006 e 2010.

Chamem-no de “Sincronário da Paz” ou de “Calendário da Paz”, este calendário nunca foi, e nunca será, um Calendário Maya. Ao contrário, continua propagando desinformação, e “jogando contra” a História, a Arqueologia e a Antropologia levadas a sério. Se constata facilmente, em pleno 2020 (e durante a famosa pandemia), que o movimento de maneira ampla, seus seguidores e outros tantos curiosos continuam levando o público leigo a acreditar que isto se trata do “Calendário Maya”. Isto se dá através de suas dispersas redes, que possuem longo alcance proporcional ao perfil incauto de muitos que, voluntária ou involuntariamente, disseminam desinformação e “fake news”.

Saudações “mayas” deste antropólogo que vos escreve, em respeito aos calendários mayas de ontem, de hoje e de amanhã!

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Thiago Cavalcanti

Especialista em Mayas, calendários e Guatemala; antropólogo, mestre em sociologia, doutorando interdisciplinar; movido a política, não é monotemático, e… TRETA!