O cabelo do mar

Tempos Crônicos
4 min readApr 13, 2024

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por Carolina Schettini

Imagem: https://br.pinterest.com/pin/495747871465024960/

O mar escuro. Verde escuro. A areia escura. Cinza escura. O sol começa na água. Antes da água, na areia, sombra. Sombra do prédio baixo. O cinza do prédio colore de cinza a areia. O dia está cinza. Estou sentado no banco de cimento. No banco de cimento cinza. Olho para baixo. Estou cinza. Hoje.

Ontem.

A sombra estava mais para o alto. Era mais cedo. O sol chegava na areia. Branca. O mar estava claro. Com algas. Claro com algas. Um tumulto um pouco ao longe. Não fui ver o que era. A notícia sempre vem. Alguém iria me contar. O sol chegou para cima. O dia estava amarelo. A areia clara. Branca. Mar azul. Sol amarelo.

Um picolé. Um afogado.

O vendedor de picolé me disse. Imaginei o homem. O vendedor me contou. O homem queria nadar. O mar forte. A espuma do mar babando de raiva. A bandeira vermelha. A bandeira vermelha dançava no vento forte. O homem não acreditou na bandeira. O homem deu uma braçada, deu outra, furou uma onda, furou outra, no fundo, não tem pé, no fundo, não tem chão, não tem cadeira, nem ponte, o homem não era carro, mas capotou. Com os braços para cima, abriu as mãos, tentou segurar. Segurar no cabelo do mar. O mar não tem cabelo. Sem cabelo, sem fios. O homem não estava num skate, mas deslizou para baixo em uma careca escorregadia. Afundou. Alguém o resgatou. Quem? eu quis saber. O vendedor não sabia. Foi salva-vidas? Achava que não. Sabia detalhes. O homem saiu do mar com uma barriga enorme. Uma barriga enorme de água. Como se tivesse engolido um balão. Uma cabeça despencada com o pescoço para o lado acoplada a um balão. Dá para imaginar? me perguntou. Não sei. Chupei o picolé. Picolé de milho verde. Picolé de milho verde amarelo. O homem com uma barriga enorme como um balão tossiu e cuspiu um pouco d’água. Então, ele não morreu? eu perguntei. Foi levado de maca, o vendedor respondeu.

Imagino o homem com a barriga de balão sendo levado numa maca de metal enferrujado por causa da maresia. O homem foi nadar. o homem foi levado. Eu estou sentado no banco de cimento cinza do dia cinza. Hoje.

Ontem.

O vendedor estava em pé. Usava um chapéu verde neon. Chupei outro picolé. Tapioca. Três por dez. Precisei chupar três picolés por dez ou pagaria quatro reais por um único picolé. Para economizar dois reais, chupei três picolés ensopados de corante. Eu estava colorido de corante de picolé. De mar azul. De sol amarelo.

Uma vez, o vendedor disse, fui numa praia que descia pra baixo. Sabe como é? ele perguntou. Não sei, mas imagino. Uma praia que descia pra baixo. Uma praia num morro pra baixo. Sei, eu disse. Fui na praia pra baixo com uma menina e ela entrou no mar com o celular e caiu e perdeu o celular e tive que comprar um celular novo pra ela. Um prejuízo. Tudo porque a praia descia pra baixo. Aqui o mar é reto. O homem foi culpado, foi pro mar, achou que o mar tinha cabelo, não tinha onde segurar. Será que ele morreu? me perguntou. Não sei, eu respondi.

Olho para o mar lá embaixo. O sol desce. O cinza sobe. Não vejo ninguém vendendo picolé. Ninguém. Cadeiras sobem em cima de braços gordos de mulheres com cara de cansadas. Elas não sorriem. Seus cabelos presos em gominhas pretas de elástico. Elas carregam as cadeiras. De quatro em quatro. De cinco. De quatro. Alternam as mulheres. As cadeiras só mudam a cor de esmalte da marcação escrita atrás. As cadeiras eram brancas. As cadeiras são cinzas. Como a areia. Como o banco. Como o mar. Como o dia. Como eu. Hoje.

Ontem.

Vou sair daqui e vou trabalhar, o vendedor disse. Sou vigia na escola. Amanhã, vou receber um material na obra. Se o material não chegar, vou procurar uns canos que sumiram. Vou cavar até encontrar. Desembrulhei o terceiro picolé. Escolhi um picolé azul. Azul da cor do mar. O mar estava azul. Claro. Com algas. A bandeira vermelha e o homem foi pro fundo. Não respeitou. Pensou que o mar tinha cabelo. Paguei os dez reais. O vendedor foi embora. Levou o homem, a praia, o cabelo do mar, o picolé, a conversa.

Ontem, o homem, que não era carro, capotou e morreu (?) no mar. Estou sentado no banco. Vou descer. Vou nadar. Vou no fundo. Pode ser eu a tentar agarrar o cabelo transparente do mar. Hoje.

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