O incendiário das bitucas

Tempos Crônicos
5 min readJul 13, 2024

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por Silvia Argenta

Imagem: Adam Wilson

A novidade estava na cara, ou melhor, na boca. O Marlboro de melancia enchia os pulmões de Leôncio, que mentalizava seu corpo tomado pela essência da fruta, disfarçando a culpa por voltar a fumar depois de tanto tempo. A fumaça presa demorava para ser jogada para fora. Sentado na tampa traseira aberta da camionete, se orgulhou por ainda conseguir assoprar os aros dos mais variados tamanhos, uma habilidade que não se perdeu. Avaliava cada baforada e melhorava a performance. O contrário ocorreu com o manejo do isqueiro, já que demorou para acender o cigarro, talvez pelo polegar grosso que não conseguia deslizar pela roda dentada. Curtia sozinho seu momento de distração até que se deu conta de que não fez uma boa escolha quando decidiu comprar algo para aliviar a tensão. Se deixou seduzir pelo display com o lançamento aromatizado de uma fruta que nem gosta em vez de comprar uma cerveja. Ao pensar nisso, engasgou-se e imaginou que poderia morrer entalado com bafo de melancia e a garganta cheia de sementes.

Jogou a bituca no mato, entrou no carro, colocou a carteira de cigarros no porta-luvas e ligou o rádio. Queria saber das últimas notícias para ver se poderia voltar para casa. A estrada até a sede da fazenda estava interditada. Os cones fosforescentes posicionados antes do trevo o impediam até de pegar um caminho alternativo. Ficou ouvindo as músicas aleatórias interrompidas por vinhetas esperando o locutor passar alguma informação. Abriu a janela do carona, onde apoiou os pés cruzados vestidos com botas imundas, e se deitou no banco. Por conta do dia cansativo, pegou rápido no sono.

Era a segunda noite sem dormir em casa. No dia anterior, tinha ido à cidade para comprar adubo para ver se conseguia fazer vingar a plantação de milho, boicotada nos últimos meses pelos cachorros do vizinho, que cavavam a terra todinha. Como o fazendeiro era influente politicamente, Leôncio, que havia se mudado há pouco tempo, não queria se indispor e não reclamou os prejuízos, apesar de os demais agricultores que moravam ali por perto saberem da história. As sacas grandes e pesadas de adubo foram colocadas na caçamba da Pampa. Na estrada pouco movimentada a caminho de casa, o carro arriou por causa do peso. Os dois pneus traseiros murcharam. Para se certificar, ele bateu com a bota na borracha e notou que era impossível andar mais, pois correria o risco de detonar a suspensão. Sozinho e com o celular sem bateria, tirou as oito sacas de cinquenta quilos e as acomodou no acostamento na esperança de que algum carro passasse por ali e lhe desse carona até o posto, já que precisava de dois estepes e o único que tinha estava careca. Não se lembrou de repor por um pneu bom desde a última vez que precisou trocar na estrada, o que era comum dada a sua avareza e displicência com as próprias coisas, que estavam sempre precisando de manutenção.

No início da noite, passou um caminhão a milhão com apenas um farol aceso. A caçamba vazia e leve pulava de uma faixa para a outra por conta dos buracos no asfalto, fazendo um barulho tão alto que parecia um trovão. Leôncio não teve nem chance de chamar a atenção do motorista, que provavelmente não o viu. Foi o único veículo que apareceu na estrada durante todo o tempo que ficou ali. Sentiu o cheiro das flores de girassol plantadas ali perto e logo depois veio o aroma de melancia sem entender o motivo. Suado e exausto com a noite quente, estendeu uma lona preta do lado da camionete e dormiu no chão mesmo com uma das sacas se fazendo de travesseiro, preocupado caso fosse assaltado.

Acordou com um estrondo e logo ficou de pé imaginando que mais um caminhão se aproximava, mas dessa vez era trovão mesmo. Em poucos segundos, a água começou a cair com o dia amanhecendo e a chuva foi ficando cada vez mais forte. Leôncio cobriu as sacas com a lona e entrou na cabine da Pampa para fechar rápido as janelas. Foi quando percebeu que uma delas estava emperrada e teve de bater na porta para soltar o vidro e conseguir levantá-lo com as duas mãos apoiadas uma em cada lado. Já dentro do carro, viu, pelo retrovisor, o temporal tão forte que a lona não foi suficiente para proteger o adubo, que escorreu do acostamento para o mato amarronzado da beira da estrada. O pequeno monte foi reduzindo de tamanho e teria se desintegrado totalmente caso não estiasse depois de duas horas de chuva.

Sem o adubo para tomar conta, trancou a camionete e decidiu encarar os quarenta quilômetros a pé até o posto mais próximo, aonde chegou com o suor escorrendo pelos sulcos da testa vermelha e os pés doloridos por causa das meias velhas e ressecadas, que ficaram roçando no tendão de Aquiles e formaram bolhas. No caminho, não encontrou uma alma viva. Somente no posto que ficou sabendo que a região estava toda interditada por causa de um incêndio de grandes proporções em uma propriedade e, por isso, não conseguiria chamar um guincho para socorrer o carro.

Como não havia movimento, o borracheiro viu a oportunidade de ganhar um troco e se prontificou a buscar a Pampa desde que Leôncio pagasse pela gasolina e pelo trabalho de engatar a camionete com uma corda. Ele aceitou a proposta, mas logo avisou que não tinha dinheiro e depois o procuraria para acertar as contas. Acordo feito, os dois foram buscar o carro, que, em pouco mais de duas horas, já estava com os pneus traseiros novos.

Já era noite quando foi verificar o que tinha na carteira. O dinheiro só dava para comprar dois PF. No restaurante vazio do posto, pediu para a moça requentar uma marmita que sobrou do almoço, já que não apareceram clientes naquele dia. Com o que sobrou comprou o isqueiro e o cigarro de melancia, atiçado pelo cheiro que sentiu a noite toda, e ainda tinha alguns trocados caso precisasse comer mais alguma coisa. Deitado no banco do carro estacionado no pátio do posto, acordou de madrugada com fome e decidido a comprar um salgado para tirar o gosto de melancia da boca. Também queria saber se alguém do posto já tinha a informação de que pela manhã a estrada estaria liberada, já que não ouviu mais a voz do locutor.

Assim que saiu da Pampa, percebeu o posto fechado e enxergou três viaturas com os policiais posicionados atrás das portas e apontando as armas para ele. Leôncio, ainda zonzo de sono, tentou correr, mas acabou ajoelhado por causa das bolhas nos pés que o impediram que fosse longe. Sem muito esforço, um policial conseguiu se aproximar para algemá-lo sem resistência e gritou: teje preso! Na vistoria da camionete, os policiais encontraram a carteira de cigarros no porta-luvas e, por isso, foi preso em flagrante.

Na delegacia, soube que o incêndio destruiu a maior plantação de melancia da região, cujo fazendeiro é o dono dos cachorros que invadiam a propriedade de Leôncio, e foi causado propositalmente a partir de cigarros acesos jogados nas frutas. Os bombeiros chegaram a essa conclusão depois de encontrar, próximo ao foco, uma pochete recheada de pontas de Marlboro melancia já fumadas e de caixas de fósforo. Logo começou a correr a fama do incendiário das bitucas. Leôncio imaginou a plantação rasteira queimada e voltou a ter a sensação de sementes entaladas na garganta. Passou a se defender dizendo que melancia era sua fruta preferida.

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