Sem chupeta

Tempos Crônicos
5 min readOct 10, 2023

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por Silvia Argenta

Imagem: arte de Jon Tyson

Boquinha de peixinho. Foi assim que me chamaram na primeira vez que me viram. Momentos antes, no parto, nem abri o berreiro tão aguardado e permaneci fechada, contraindo em pequenos movimentos, que, logo depois, entendi que me ajudavam a me alimentar fora da placenta. No banho, uma enfermeira me tocou com seu indicador e disse: boquinha de coração. Acho que foi aí que comecei a ter alguma crise de identidade.

Nesse meu início de vida, pensava que tudo girava ao meu redor até que ouvi alguém falando que eu não conseguia acertar o bico da teta da mãe porque os olhos estavam fechados. Buguei. O que são “olhos”? De vez em quando sentia umas gotas e algo me pressionando. Foi então que encontrei a razão da minha existência. Quando me abri sem medo de ser feliz, alcancei minha mãe e experimentei o leite mais delicioso da vida.

Depois disso eu só queria saber de leite e foi triste saber que ele não estava disponível para mim a qualquer hora. Assim, aprendi o poder do berro. Aos poucos, fui ficando cada vez mais flexível e entendi que quanto mais me abrisse, mais alto saía meu grito. Era o sinal de que a mãe tinha de fazer alguma coisa e eu só sossegava quando voltava pros seus seios quentes. O esquerdo era meu preferido. Em alguns momentos, era alertado que várias outras partes do corpo queriam dormir, mesmo assim eu continuava mamando e nunca me importei com o leite que escorria pelos meus cantos.

Fui crescendo e comecei a sentir alguns desconfortos com os dentes nascendo. Agora gritava porque queria leite, mas também por causa da dor. Minha mãe demorou para entender a diferença dos meus sons, o que me gerou uma certa decepção porque até então achava que ela me entendia perfeitamente. O médico a ensinou a passar o dedo na gengiva para ajudar a passar um pouco da dor. Por um tempo funcionou, mas parece que todos os dentes resolveram nascer juntos e, sem saber controlar direito aqueles seres estranhos, comecei a morder a teta da mãe, que gritava e me empurrava justo no momento mais sublime do dia.

Para resolver isso, ela então me deu uma chupeta. Eu simplesmente amei. Era uma enganação para simular a mamada, mas só fui entender isso muito tempo depois quando me dei conta de que não tinha leite. Pensava que podiam inventar uma chupeta com leite, né? Tolice minha achar, de novo, que o mundo girava ao meu redor. Foi aí que conheci a mamadeira. Odiei para desespero de minha mãe. Não conseguia conceber ficar longe das tetas mais amorosas do mundo e colocar no lugar um tubo plástico sem vida e com um leite encorpado demais. Não satisfez meu paladar.

Sempre que possível, eu negava a mamadeira. Para tentar compensar a minha distância do seio, usava tanto a chupeta que meus dentes começaram a entortar e daí percebi que definitivamente minha mãe não me entendia nadinha. Como é que tira da criança a teta e depois a chupeta? Não tem como. Foram anos de tentativas fracassadas. Devo registrar aqui a ajuda imprescindível da goela.

Mesmo sem teta, me sentia poderosa porque não fazia nada que eu não queria. O problema de tudo começou com Belinha, a cadela de casa. A vira-lata pequena branca com manchas pretas era a minha segunda alegria, depois da chupeta (a teta, claro, era hors concours). Foi com a cachorrinha fofa que dei meus primeiros sorrisos. Mas foi com ela também que dei meu primeiro choro sentido de verdade, quando, numa brincadeira, ela abocanhou minha chupeta e saiu faceira chupando meu naná. Me senti… nua! Goela me auxiliou, mas minha mãe viu essa ocasião como uma oportunidade para arrumar meus dentes e me disse que não tinha mais chupeta. Meu mundo acabou — sem teta nem chupeta.

Não queria mamadeira e não aceitava cenoura, maçã nem alface. O resto do corpo foi enfraquecendo e então vieram os primeiros sintomas. Numa noite, estava repousando entreaberta quando, do nada, a língua me empurrou e tive de me abrir para vomitar o pouco de arroz e feijão que tinha comido antes de dormir. Eu juro: só queria sentir o gosto do leite materno de novo. Em vez disso, estava sendo forçada pela minha mãe a engolir o que não queria e pelos outros órgãos do corpo a vomitar o que eles não queriam.

Comecei a ser chamada de boca mole, boca maldita, boca sei lá o quê. E não era da boca para fora não. De um lado, a colher com banana amassada se esfregava nos lábios fechados, que às vezes não suportavam a pressão e se abriam, ingerindo aquela gosma. Do outro, laringe, esôfago e estômago reclamando da maçaroca de banana e devolvendo tudo em jatos cada mais fortes. A essa altura, já nem me lembrava mais da última vez que sorri.

Com o tempo, os ácidos estomacais começaram a corroer os dentes de leite, que, mesmo impermanentes, já tinham se habituado com toda a flora bucal. Como também mal conseguia falar, apenas balbuciava “mãe” e “eti”, passei a frequentar vários médicos, que sempre me abordavam com aquelas luvas horripilantes de plástico e me enfiavam uns palitos de madeira que me davam muito enjoo. Cheguei até a vomitar em um dos consultórios. Até que um dia veio o diagnóstico improvável para um menino de quatro anos do interior, que nem tinha televisão em casa: anorexia.

Fui internado às pressas. Quando vi a enfermeira manipulando tubos, acreditei por um segundo que retomaria minha essência e que ela me alimentaria com leite materno, mas ela os conectou com o nariz, por onde passava soro. Não tive nem palavras para expressar minhas condolências ao meu vizinho. Algumas feridas começaram a aparecer nos lábios e dentro de mim também. Doíam muito e nem os gritos e choros resolviam, já que minha mãe não estava por perto.

Acredito que depois de um tempo o soro começou a dar algum resultado e foi autorizada nossa entrada na aula de artes, dentro do hospital. A professora explicou sobre os grandes pintores, citando nomes estrangeiros e imagens desconhecidas. A atividade do dia era escolher uma das pinturas e desenhar no papel. Meu amigo cérebro e minha estimada amiga mão direita passaram horas elaborando o que fariam. Quando o trabalho ficou pronto, me vi no desenho que imitava o autorretrato de Van Gogh. O rosto redondo tinha como destaque a sonda que ligava o nariz ao soro e abaixo eu estava curvada para cima. Boquinha de canoa, pensei. Nesse dia, eu voltei a sorrir.

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