Maya Deren: Arte, contestação e independência no cinema

Thaís Vieira
9 min readJul 1, 2020

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“Eu faço filmes com o que, em Hollywood, se gasta só em batons.”

Esta frase de Deren reflete bastante a imagem que a diretora, fotógrafa, poeta, coreógrafa e teórica cinematográfica deixou através de sua obra, em meados do século XX.

Nascida em plena revolução Russa como Eleanora Dêrenkovskaya na Ucrânia, que fazia parte da União Soviética, Deren era de família judia e aos 5 anos migrou para Nova York devido à crise econômica do país, o programa anti-semita de Stalin e a desaprovação do mesmo por sua família trotskista.

Estudante de ciência política e jornalismo em Nova York, fez parte da Liga da Juventude Socialista e iniciou o mestrado em literatura inglesa e poesia simbolista. Esta última, bastante presente em sua obra cinematográfica.

Maya Deren na marcha antifascista de 1939, Nova York

Parcerias com Katherine Dunham e Alexander Hammid

No início da década de 40, já então fotógrafa publicitária, Deren começou a ser assistente de Katherine Dunham, coreógrafa, antropóloga, pioneira da dança afro e pesquisadora sobre a dança no Caribe, especialmente o voodoo do Haiti. Este encontro mudou radicalmente sua vida pessoal e profissional, já que a expressão corporal em seus filmes faz parte da essência de todo o trabalho.

Neste meio conheceu seu segundo marido, o diretor experimental Alexander Hammid e por ele foi apelidada de Maya. O nome tem diversos significados místicos, como homenagens a Maya, mãe de Buda ou Maya, a deusa hinduísta da ilusão e dos sonhos.

Juntos, o casal filmou Meshes of the Afternoon (1943), clássico do cinema experimental e é a estreia da poeta simbolista Maya Deren no cinema. Esta parceria se repetiu em The Private Life of a Cat (1946) durante duas décadas ativas de filmagens de Deren como diretora solo.

Movimentos: Corporal, de câmera e de montagem

A maioria dos filmes, originalmente silenciosos, juntam uma detalhada montagem com a expressão corporal dos atores, que, intuitivamente, deixa o espectador imaginar a música.

A Study In Choreography For Camera (1945)

Cinco filmes de Deren contêm conteúdo de dança explícito. Estão presentes detalhes que as articulações do corpo dançam em movimentos naturais e contínuos além do uso de movimentos e gestos performáticos complementados por uma câmera fixa intercalada com movimentos minuciosos da direção cinematográfica.

“Os movimentos corporais são uma espécie de meditação, onde os círculos contornam a ideia em termos de tempo.” (Maya Deren)

A Study In Choreography For Camera (1945), com Talley Beatty, considerado um dos maiores coreógrafos e dançarinos afro-americanos, e Meditation on Violence (1948), com o dançarino Chao-Li Chi, são filmes que mais expõem a paixão de Deren pela dança. Fazem parte de um cinema coreografado, uma videodança, uma observação dos movimentos humanos.

Alguns já faziam este trabalho no cinema, como Loie Fuller no início do século XX. A importância de Deren para este seguimento é a união dos movimentos do corpo humano intercalados com os movimentos de câmera. Ela saiu da simples captura de coreografias instigando o espectador a dançar junto aos atores através da direção e montagem de seus filmes.

Loie Fuller (1862–1928)

Maya Deren reinventou com planos detalhados, calculados com contas aritméticas em storyboards. Cada slow motion, inversão e repetição tinha um motivo, ao contrário de críticas que recebeu na época dizendo que aquilo que fazia não era cinema.

Também recebeu críticas com o cenário de The Very Eye Of Night”(1958), por fazer um céu com pano preto e estrelas de lantejoulas que se moviam de forma trêmula. A crítica descreveu o filme como infantil e amador.

O que esse grupo de pessoas não entendia é que tudo isso tinha o propósito de criticar as super produções de Hollywood. Em plena era de ouro dos anos 50, era preciso sair de todo fake glamour. Para ela, Hollywood estava seguindo sentindo contrário das belas artes.

Meshes of the Afternoon (1943)

Bem parecido com The Very Eye Of Night (1958) é Ensemble for Somnambulists (1951). Ambos sairam de uma fase de experimentações, são seus últimos filmes.

Em Ensemble for Somnambulists (1951) a dança com filmada com um roteiro sem espaço e tempo, dançarinos flutuando sem chão nem planos. Tudo em fotografia negativa ao meio de um imenso vazio. Cada movimento tem um corte preciso, causando a impressão de continuidade.

The Very Eye Of Night (1958) também apresenta pessoas como estrelas bailando na imensidade do universo. Esse, já com trilha musical composta por instrumentos de sopro de madeira e percussão, feita por Teiji Ito, seu último marido. A música foi influenciada pelo batuque do voodoo, elemento de estudo de Deren no início dos anos 50 após ganhar o prêmio Guggenheim, que usou para viajar e pesquisar voodoo no Haiti.

Teiji Ito também acrescentou, anos após o lançamento, as trilhas musicais em Meshes of the Afternoon (1943) e Meditation on Violence (1949).

Neste período no Haiti, Deren foi pesquisadora, publicou os livros Anagramas de ideia sobre arte, forma e cinema e Cinema: Uso criativo da realidade, além de dar aula sobre teoria cinematográfica.

Seu olhar cinematográfico mesclou a etnografia com o fascínio pela dança das pessoas enquanto recebiam as entidades do voodoo.

Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti (1985)

Maya viajou 4 vezes ao Haiti, passou 21 meses entre 1947 e 1955. Captou horas de material conhecido como Haitian Film Footage para um filme que nunca completou. Porém, escreveu o livro Divine Horsemen, publicado em 1952.

Em 1985, Teiji Ito que viveu com Deren até sua morte, lançou um documentário póstumo com sua atual esposa, Cherel Ito, o “Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti” (1985), com esse material captado.

Mas os filmes de Deren mais conhecidos foram justamente os primeiros. O mais famoso foi Meshes of the Afternoon (1943).

Meshes of the Afternoon (1943)

Os roteiros dos filmes que Maya Deren fez em vida são experimentais relacionados ao onírico, com exceção apenas de The Private Life of a Cat (1946).

Meshes of the Afternoon, é sobre uma mulher que enquanto dorme, tem sonhos intrigantes com ações repetitivas, deixando o espectador sem saber o que pode ser real e irreal, dentro de um universo de pesadelo, vigilância, psicose e paranoia. Tecnicamente, trabalha com o contraste de sombras e muitos detalhes, imagens cíclicas, a mesma situação de diversos ângulos. Foi um marco do cinema e grande influenciador para o cinema experimental.

No mesmo segmento simbolista, místico, onírico, At Land foi rodado em 1946. Um filme surrealista e intrigante que transita por cenários e personalidades feito um sonho, com passagens sem ligações entre tempo e espaço. É interessante a cena de um jogo de xadrez na praia entre duas mulheres, feita onze anos antes do Bergman filmar O Sétimo Selo (1957).

At Land (1946)

A presença do mar é muito simbólica, ela era apaixonada pela cor azul e acreditava que veio do oceano. Seu quarto era todo decorado com conchas, corais e uma pintura no teto com criaturas subaquáticas.

Em At Land, de novo Deren critica o fake glamour, a passividade das pessoas que não querem saber o que está acontecendo no além de Hollywood.

O músico e compositor John Cage participou da produção e atuou, junto ao Alexander Hammid, o poeta surrealista Philip Lamantia e o antropólogo Gregory Bateson.

Parcerias com Anaïs Nin e Marcel Duchamp

Deren, com sua mente inquieta e os problemas de ser uma diretora independente, deixou alguns filmes incompletos, como o Medusa e Season of Strangers.

“É terrível ser cineasta porque a gente não tem só problemas criativos, temos problemas financeiros que os outros artistas não tem.”

Esta frase é sobre os problemas que tinha com produtores e distribuidores. The Very Eye Of Night demorou pra ser exibido nos EUA, depois de rodar inúmeros países, por causa de um impedimento após uma briga com o produtor. Por isso, também, a defesa pela liberdade da arte independente e a procura por parcerias com outros artistas.

O curta Witch’s Cradle (1944), foi uma colaboração com Marcel Duchamp. Filmado em uma galeria de arte em Nova York, uma garota aparentemente ingênua, nova, descalça e com um vestido branco andando pela galeria buscando algo com movimentos psicodélicos. O interesse de Deren pelos estados alterados de consciência são elementos fundamentais para o filme.

Com tempo não linear, barbantes rastejam feito cobra pelo corpo das pessoas, coordenados por um velho, Duchamp. Mais um filme repleto do uso de sombras, repetições de ações, planos não convencionais, câmeras bêbadas, simbologias e um grande coração humano batendo fora do corpo.

Anaïs Nin em Ritual in Transfigured Time (1946)

Já em Ritual in Transfigured Time (1946) teve a escritora Anaïs Nin atuando.

É um rito de passagem de uma viúva, interpretada pela coreógrafa Rita Christiani, para a noite que ela vai conhecer seu futuro marido. No filme, percebemos a viúva entrando na sala, passando pela “caminhada do sono” e a bola de lã na mão de Deren é o metrônomo para o início do ritual e a mulher em pé, interpretada por Anaïs Nin, é a responsável pela iniciação da viúva.

As cenas são vistas sobre diferentes ângulos e tem uma sequência que o tempo e espaço congelam entre estátuas e dançarinos. Novamente, a presença do poder da dança, montagem e movimento de câmera na obra de Deren, além de, como em At Land, ter a passagem de espaço e tempo de uma cena pra outra.

Foi em Ritual in Transfigured Time que Maya usou pela primeira vez o filme em negativo. O curta tem sua última sequência com essa estética.

A obra de Maya Deren pode ter diversos significados, mas todos com a unidade e intensidade de um cinema de autor em plena era star system.

Filmes como At Land e Meshes of the Afternoon, os quais Deren atua, aparecem diversas versões de si, Mayas que se olham, se espantam, interagem. Há um conflito sobre manter uma identidade, parece que a própria Deren está a procura de si mesma, o tempo inteiro ela vê e rever suas ações como uma reflexão da própria vida.

Maya Deren faleceu aos 44 anos, em 1961, consequência de um derrame cerebral e até hoje sua morte é polêmica. Durante as viagens ao Haiti, acabou adotando o voodoo e sendo iniciada como sacerdotisa. Amigos como o cineasta Stan Brakhage acreditavam, por preconceito ou não, que sua morte foi interferência das entidades do voodoo.

Maya era apaixonada por gatos e tinha vários. Um deles foi batizado com o nome de Ghede, Deus da morte no voodoo. Isso, na época, foi desrespeitoso para quem seguia a religião.

Além de ficar anos filmando a prática no Haiti, Deren também nunca colocou seus ensinamentos em filmes enquanto viva, conforme prometido. O filme não finalizado “Haitian Film Footage” tinha registros de reuniões onde se praticava voodoo, mas Maya não conseguiu lançar por falta de verba e patrocínios.

“Uma vez fui a um ritual com Maya e soube que um Deus gostou mim, ganhei uma proteção. Tempos depois, em uma briga nossa, ela me rogou uma praga e fiquei muito doente, só não morri porque tive o livramento do tal Deus que me guardava, uma vez me disse um haitiano.”

(Stan Brakhage)

No documentário In the mirror of Maya Deren, de 2001, Brakhage cita que realmente acreditava no poder místico de Maya e que foi isso que a fez morrer. Já seu ex marido, Teiji Ito, acha bobagem essa culpa em cima do voodoo. Deren se dedicou a religião e escreveu um livro sobre os ensinamentos. Ele acredita que a causa da morte teve ligações com os problemas judiciais sobre sua herança que estavam a tona na época. Maya levava seus sentimentos com intensidade, sejam eles quais fossem.

Sem definição espacial e temporal. Múltiplas exposições, saltos, slow motions, sequências negativas de filme, sobreposição, congelamento de imagem e câmeras anguladas são apenas alguns dos efeitos cinematográficos utilizados por Maya Deren, que fez tudo isso de forma independente e sendo uma diretora mulher nas décadas de 40 e 50.

Em seu set, não existia uma determinada função, ela fazia tudo que fosse necessário. Assim dirigiu, atuou, produziu, escreveu, distribuiu e fez o que era necessário para ter seus filmes prontos e divulgados. Seus curtas metragens, realizados ao longo de quinze anos, foram suficientes para sacudir a forma de pensar e fazer cinema no mundo até hoje.

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Thaís Vieira

Cineclubista, pesquisadora, educadora e realizadora audiovisual.