puta

Thais Martinho
8 min readJan 17, 2019

Ela abre os olhos. É domingo de manhã, percebe. Com cuidado, vira-se para inspecionar o marido, que ainda dormia. Decide se levantar em um movimento rápido e silencioso, para não despertá-lo. Sabe que se ele acordar vai querer aquele sexo matinal preguiçoso e egoísta que ela tanto despreza. Seu estômago se embrulha só de pensar. Hoje não. Hoje ela não suportaria. Ainda lembra do domingo passado, do hálito forte em seu pescoço e da sensação de asco e impotência que sentira enquanto ele respirava pesadamente em cima dela, ofegante depois de gozar. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, um misto de raiva e tristeza. Sentia pena dele. Sentia pena de si mesma.

Como a situação chegara a este ponto?

O barulho da torradeira a despertou de seus devaneios. Terminou de preparar seu café da manhã e levou para sala. Estava ansiosa para a sua maratona de reality shows de relacionamentos nos quais estava viciada. Eram histórias de casais de países diferentes, que muitas vezes nem falavam o idioma um do outro, se conheciam pela internet e se apaixonavam. A partir daí, o programa mostrava o primeiro encontro dos casais e a evolução do relacionamento fora do mundo virtual. No episódio de hoje, os participantes estavam arrumando as malas e embarcando nos vôos para finalmente encontrarem seus “namorados”. Apesar de seu lado prático achar tudo aquilo ridículo, beirando o absurdo, ela sentiu inveja ao ver a empolgação, as expectativas e o frio na barriga daqueles idiotas apaixonados. Tentava se lembrar da última vez em que sentira essas emoções.

Ela já fora muito apaixonada pelo marido. Eles se conheceram no trabalho e ela teve que tomar a iniciativa, pois ele era muito tímido. Passaram meses se encontrando às escondidas. Ainda tinha a lembrança de como seu coração batia forte na primeira vez que dissera “eu te amo” e da decepção que sentira quando ele, sempre reservado e cauteloso, não retribuíra a declaração. Mas não era necessário. Ela sabia que ele a amava. Chegava a ser sufocante o quanto. E por isso, ela se sentia responsável por ele. Ela era sua única família, já que seus pais não estavam mais aqui e sua única irmã vivia na Espanha. Ela era tudo que ele tinha. Como poderia deixá-lo?

Voltou ao reality show, que agora mostrava um momento “tenso”: uma participante prendeu o salto fino de seu Louboutin na escada rolante do aeroporto enquanto ia de encontro ao seu amado. Nessa mesma hora, recebeu uma notificação do Facebook:

Julio Menezes te enviou uma solicitação de amizade

Julio?!? — clicou ansiosa no perfil para ver se era mesmo quem estava pensando. Ele só tinha uma foto, mas era inconfundível. Era ele. Seu namorado do colegial, que havia se mudado para a Inglaterra logo após a formatura. Sempre o procurara nas redes sociais, mas o máximo que encontrara fora seu perfil profissional no LinkedIn, que aliás, utilizava essa mesma foto. Com o coração batendo mais forte e sentindo um misto de nostalgia e empolgação, clicou em aceitar para ver se conseguia fuçar mais no perfil dele e descobrir se estava casado, ver mais fotos, essas coisas. Ficou frustrada ao ver que não tinha quase nenhuma dessas informações, ele devia ser novo no Facebook. Fechou a página correndo, assim que ouviu o barulho da descarga no banheiro, sinal de que seu marido já estava acordado.

Após o almoço no restaurante italiano que sempre iam aos domingos, voltou imediatamente ao seu reality show, que já mostrava a primeira briga de um dos casais. O marido ria do vício dela, enquanto se arrumava para ir ao jogo de futebol com os colegas do escritório. Ela ansiava por esse momento, já que teria o resto do dia sozinha e poderia fingir que era solteira, uma de suas fantasias, além de fuçar no perfil do Julio, claro. Essa aliás, foi a primeira coisa que fez assim que seu marido trancou a porta ao sair. Logo notou que ele estava online e na mesma hora ele lhe enviou uma mensagem:

— Pra alguma coisa esse Facebook tinha que servir… Aninha! Quanto tempo! Como você está?

— Nossa! Eu acabei de entrar para falar com você! Não acredito que você me adicionou — respondeu ela na mesma hora, sorrindo e com o coração batendo forte de empolgação.

Julio continuava em Londres, trabalhava em uma consultoria e nunca havia se casado, o que ela achava estranho, pois ele era um homem muito interessante. Ela lhe contara que trabalhava em um banco, mas que era apenas um trabalho, que não havia se encontrado na profissão, que estava casada, mas que “não, credo, sem filhos!”. Os dois riram disso. A conversa terminou por conta do fuso horário, mas ficaram de continuar no dia seguinte. Ela já sentia um nó de ansiedade se formando em sua barriga e pensou que não sentia isso desde que começara a sair com seu marido. De repente, sentiu-se como um dos integrantes do reality show que ela tanto ridicularizava. Mas dane-se. Era inofensivo. E além disso, ela precisava mesmo de um motivo para acordar na segunda-feira. E em todos os outros dias.

Pelo jeito Julio também, pois suas conversas viraram rotina. Falavam-se por horas, todos os dias, enquanto ela estava no trabalho e aos fins de semana, quando seu marido não estava por perto. Ele acabou se tornando seu maior confidente. Contou para ele coisas que não tinha coragem de compartilhar nem mesmo com sua terapeuta. Ele sabia de seus problemas no casamento. Da falta de atração pelo marido. Da falta de coragem para deixá-lo. De como se sentia sozinha e infeliz. Era um alívio conversar com ele. Ele não a julgava, não oferecia conselhos, não a cobrava. Apenas a “ouvia”, ou melhor, lia. E parecia compreendê-la. Sentia-se acolhida.

Com o tempo, seu envolvimento crescia. Fantasiava que Julio a salvaria. Que viria buscá-la e eles fugiriam juntos. Rapidamente a fantasia foi adquirindo contornos sexuais. Um dia, bêbada em um happy hour do trabalho, enviou-lhe uma mensagem confessando isso. Ele riu e disse que também andava pensando nela desta forma. A partir daí, as conversas foram se tornando mais íntimas e, aos poucos, saindo completamente de seu controle.

Julio era seu novo vício.

Alguns meses intensos de conversa se passaram, antes que ele anunciasse sua ida a São Paulo:

— Chego em uma semana. E preciso te ver.

Ela ficou sem reação. Suas fantasias se tornaram reais. Reais demais para ela.

Desde que Julio anunciara a sua vinda e a cada nova mensagem que trocavam, seu coração afundava mais um pouco. Só agora compreendia a dimensão que tudo isso havia tomado e não sabia se teria coragem de levar adiante. Sentia que como se tivesse dado um passo maior que suas pernas e agora já não sabia mais como voltar atrás.

A gota d’água foi quando seu marido voltou do trabalho, com um pacote de suas balinhas de gelatina preferidas e propondo assistir um filme. Lembrou de como sempre concordavam sobre os filmes que viam e passavam horas discutindo, de como ele era atencioso e sempre se preocupava com o que ela queria ou precisava. Não poderia fazer isso com ele. Ele não merecia.

Ela passou a observar seu marido dormindo todas as noites, em paz, e se sentia um lixo. Buscou seus álbuns de fotos antigas e seu álbum de casamento e revisitou tempos mais felizes, pensando se haveria alguma forma de voltar ao passado. Não estava pronta para abrir mão dele.

O tempo passava mais rápido que de costume. Julio chegaria em dois dias. Haviam combinado de se encontrar em um café que ela gostava, perto da Av. Paulista, onde sabia que não encontraria ninguém conhecido.

No dia seguinte acordou decidida.

— Desculpe, Julio. Não posso fazer isso com meu marido. Espero que entenda. Se quiser me encontrar apenas como amigo, estou disposta, mas além disso não posso ir. Desculpe mesmo.

Viu que Julio leu sua mensagem na mesma hora. Não respondeu nada. Começou a digitar e parou varias vezes. Depois de um tempo, chegou finalmente a mensagem:

— PUTA

Incrédula, sentiu seu coração disparar como uma metralhadora e respondeu:

— O quê??? Julio???

Mais um tempo digitando.

— É ISSO MESMO. PUTA. VADIA. QUEM VOCÊ PENSA QUE É? VOCÊ TEM NOÇÃO QUE COMPREI UMA PASSAGEM PRA TE VER??????? TEM???? SUA PUTA DESGRAÇADA. DESCULPA O CARALHO!

— SÓ TE DIGO UMA COISA, SUA PUTA: AGORA VOCÊ VAI ME ENCONTRAR, POR BEM OU POR MAL…

Lágrimas rolavam de seu rosto e ela tremia enquanto lia. Foi interrompida por sua colega de trabalho, Carol:

— Ana, o que é isso?!?

Ela desabou a chorar, consolada pela colega, que não entendia nada. Carol apenas fechou a tela do laptop.

— Vai pra casa, Ana. Amanhã você me conta direito. Eu cubro pra você hoje aqui, falo que passou mal, o que aliás não seria totalmente mentira, né? — disse Carol, com olhar de pena.

Ela decidiu acatar a sugestão. No caminho para casa, abriu o aplicativo do Facebook, mas não teve coragem de ler as mensagens de Julio, ou melhor, do monstro no qual ele havia se transformado. “Por bem ou por mal”? Na mesma hora, sentiu um medo enorme invadir seu corpo. Ele vai publicar algo em seu Facebook. Imediatamente entrou e o bloqueou. Aproveitou e também deletou sua própria conta. Pelo menos o marido não estava no Faceboook. Isso a deixava mais tranquila.

Chegou em casa sentindo-se exausta e se jogou na cama. Não sabe por quanto tempo dormiu, só acordou com o barulho das chaves do marido na porta. Imediatamente pulou da cama e correu ao seu encontro, o abraçando forte. Ele, preocupado e confuso, perguntava o que tinha acontecido, mas ela só chorava. Por fim disse que tivera um dia ruim no trabalho.

Não dormiu naquela noite. Revirou-se na cama, relembrando todas as conversas, sentindo a vergonha e a culpa invadirem o seu corpo. Foi para sala e colocou alguns episódios do tal reality show para se distrair. Deparou-se justo com uma história de um cara que foi para Paris conhecer uma menina e chegando lá, ela decide avisá-lo que eles não poderiam ser nada além de amigos, já que ela tinha um namorado que até então, não havia sido mencionado.

“PUTA” — ela já previa a reação, sentindo um arrepio, revivendo as mensagens do Julio, que ainda ecoavam em sua mente como se fossem gritos. No final das contas, o participante não teve nenhuma reação extrema e aceitou a proposta de ser amigo dela para conhecer a cidade, com um plano secreto de conquistá-la — o que aliás não deu certo. Essa seria a reação “normal”, não?, pensava enquanto seus olhos fechavam e ela caía num sono leve e agitado, no sofá da sala.

Acordou confusa, com uma mensagem em seu celular:

Nosso encontro é hoje as 19h. Nem ouse me dar cano. Já estou de pau duro só de pensar.

QUÊ?!? Como ele conseguira esse número? Ela nunca passara seu número de celular a Julio.

Olhou em volta em desespero. Seu marido, que já havia saído para trabalhar, deixara um bilhete:

“Vi que você teve insônia ontem. Fiquei com pena de te acordar. Espero que seu dia não seja tão ruim.”

Ela morreu um pouco por dentro. Precisava de ajuda.

Estava com medo de verdade.

*Essa é a primeira parte de uma história em duas partes.

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