A redatora

Thaíse Nardim
4 min readApr 16, 2020

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Redigir? Escrever?

Há diversas coisas que desejei realizar que, hoje avalio, quis fazê-lo porque dominá-las me garantiria algum tipo especial de status. Sócio-cultural, ou intelectual, a natureza de status que me seria garantido pela boa execução daquelas coisas me afastaria da ideia — assustadora — de um destino pouco memorável. Apegar-se a objetivos de vida que nos afastem da morte, ou da consciência de nossa mortalidade: prática demasiado e assustadoramente humana.

A leitura foi uma dessas coisas, hábito-fuga que — conforme me garantiam as professoras e meus pais e os livros didáticos e as apresentadoras dos programas infantis — poderia me salvar de minha mortalidade, me alçando aos píncaros da admiração pública. Imortais, os caras da ABL. Inegável que os livros me eram, de fato e desde sempre, um interesse genuíno. Mas a busca pela consolidação de um hábito de leitura apareceria apenas quando eu passasse a compreendê-los como uma rota de fuga certeira para um lugar diferente daquele que eu, então, ocupava: o de mais uma garota — meio simplona, nada popular, com poucos amigos, sem uma beleza particular - de uma cidade pequena do interior de São Paulo.

A escrita, por outro lado, sempre esteve num lugar orgânico deste corpo-ato, então constituinte.Tenho absoluta certeza de que nunca me neguei a escrever uma só linha que me tenha sido solicitada; o material das aulas de redação era minha mais absoluta paixão; e eu sequer me lembro de um dia não ter sido alguém que “escreve bem”. Para toda e qualquer professora, de toda e qualquer mateŕia, eu escrevia bem. Com o apoio dos recorrentes elogios, “escrever bem” é uma das poucas qualidades que que nunca duvidei possuir — o que, por sorte ou prudência (certamente não por vício), não me impediu de seguir buscando escrever ainda melhor.

A primeira consagração pública dessa certeza deu-se na (então) segunda série do Ensino Fundamental. Tudo começaria numa aula como tantas outras, ministrada pela professora Rita, que nos passara uma tarefa de escrita da qual, infelizmente, não me recordo a consigna. Desconfio, inclusive, de que a tarefa teria sido uma invenção da professora para ocupar o tempo daqueles que, mais apressadinhos, já teriam terminado o dever de matemática. Acontece que um ou dois minutos após termos recebido a tal tarefa (cálculo exclusivamente baseado na memória da minha percepção infantil), soou o sinal, nos convidando ao recreio. Surpreendida pela estridente buzina (quão deselegante!), a pequena Thaíse encarou a página metade completa, ainda sentindo o golpe no fluxo criativo interrompido, e saltaram aos seus olhos dois grampos de metal, precisamente aterrados entre um lado e outro da folha. Eu alcançara o meio do caderno e, sem hesitar dava-me conta do desafio que o destino me impunha: eu deveria escrever, escrever sem parar, escrever até preencher um lado e o outro dos grampos, escrever até preencher as duas páginas inteiras! Duas páginas completas de redação, uma estória nunca antes tão longa, nunca tão esforçada, dedicada menina que escreve bem, um enorme empreendimento para seus sete anos, uma corrida descomunal contra o próximo sinal rumo à maior estória do mundo!

Longa jornada, caderno, lápis e eu. E sucesso: a história do Pai Abacaxi e da Mãe Mamão, contada em honrosas duas páginas inteirinhas de caderninho encapado com plástico vermelho, rendeu-me o título de Melhor Redatora de Textos do ano de 1992 na Escola Estadual Coronel Joaquim José (em São João da Boa Vista). Ao final do ano, evento no pátio, pai e mãe na plateia, subida ao palco, medalha e certificado — relíquia em impressão matricial sobre papel, que hoje habita um álbum cuidadosamente armazenado no guarda-roupa dos meus pais.

Melhor Redatora. Redatora. Curiosa palavra, que eu até então não conhecia. Mas por que a escola não me premiara como “Melhor Escritora”? Qual o sentido de usar um termo tão pouco popular? Teriam oferecido o prêmio de “Melhor Escritora” para outra estudante (uma mais popular, risos), restando a mim uma espécie de segunda colocação disfarçada, “Melhor Redatora”? Nunca soube. Não saberei.

Curiosa ou compelidamente, exercendo hoje a escrita como parte de minhas funções profissionais, sinto mais identificação com a imagem que faço de uma redatora, do que com aquela de uma escritora. Sou alguém que tem foco quase obsessivo — embora particularmente lúdico — na escolha das palavras certas, não!, quero dizer, das melhores palavras para cada contexto e ocasião. Porém, não faço muita questão de compartilhar as minhas próprias ideias, ou de expô-las como minhas, ou de receber crédito por elas. Às vezes, penso que minha profissão ideal seria Preparadora de Textos, ou mesmo Revisora. Não que eu domine plenamente ortografia e gramática, quero dizer. E também não se trata de não ter ideias — de fato, elas me pululam a cabeça todo o tempo, como os macaquinhos mentais que devemos observar quando sentados em meditação. E, claro, elas também se/nos inventam sobre o papel enquanto escrevo. Talvez o que direi te soe falso, mas é que sinto pela prática do escrever uma paixão muito humilde e quero apenas, despretensiosamente, praticá-la - jogar com as palavras esse jogo em que me exercito em mim, jogo gerúndio, um sendo. Assim, e quase sem perceber, acabo por abdicar de qualquer status — sócio-cultural, intelectual — que o papel de criadora, de escritora, poderia me atribuir. Assim, escrever ainda me conduz ao distanciamento do medo da morte, mas não por fuga, e sim pelo insistência num presentificar-me integral e lúcido, pois desinteressado.

Esse texto foi escrito a partir de uma experiência que relato aqui. A segunda parte da reflexão pode ser lida aqui.

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