Tradução de “Pedagogia Digital Crítica”, de Jesse Stommel

Thaíse Nardim
10 min readApr 21, 2020

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Texto traduzido para uso didático no curso “Planejamento e Didática de Cursos via Whatsapp para o Ensino Superior” — curso gratuito e aberto.

Esse texto está disponível aqui, na revista digital editada por seus autores.

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Foto de Andrea Piacquadio no Pexels

Pedagogia digital crítica: uma definição

Por JESSE STOMMEL — 17 DE NOVEMBRO DE 2014

“Não existe processo educacional neutro” — Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido

“A pedagogia não é ideologicamente neutra.” Essa frase tem sido para mim quase um mantra nos últimos anos. Eu disse variações disso no Twitter, na página “About us” da “Hybrid Pedagogy”, no site da organização sem fins lucrativos “Hybrid Pedagogy Inc.” e em nosso recente chamado para publicação focado na Pedagogia Digital Crítica. Tenho girado em torno dessa frase porque tenho cada vez mais certeza de que a palavra “pedagogia” tem sido mal interpretada — que o projeto educacional vem sendo mal direcionado -, que educadores, assim como estudantes, veem-se cada vez mais atarantados por um sistema que valoriza a avaliação mais que o engajamento, o gerenciamento de aprendizado mais que a descoberta, o conteúdo mais que a comunidade, os resultados mais que as epifanias. A educação (e, ainda mais, a educação mediada por tecnologias) deturpou-se, e aparece agora como objetiva, quantificável, apolítica.

A docência no Ensino Superior é particularmente acrítica e sub teorizada. A maioria dos educadores universitários (em instituições tradicionais e não tradicionais) faz pouco trabalho pedagógico direto para se preparar como professores. O compromisso com o ensino geralmente não é recompensado, e a escrita pedagógica (na maioria dos campos) não é considerada como “pesquisa”.

Todo o empreendimento educacional é frequentemente envolvido com um ensino que não é pedagógico. Há várias outras palavras que eu usaria para descrever este trabalho: instrução, gerenciamento de sala de aula, treinamento, entrega de conteúdo orientada a resultados, baseada em padrões. A pedagogia, por outro lado, começa com a aprendizagem como seu centro, não alunos ou professores, e o trabalho dos pedagogos é necessariamente político, subjetivo e humano.

O que é Pedagogia Crítica?

A Pedagogia Crítica é uma abordagem ao ensino e à aprendizagem baseada na promoção da agência e no empoderamento dos alunos (implícita e explicitamente crítica às estruturas de poder opressivas). A palavra “crítica” na Pedagogia Crítica funciona em vários registros:

  • Crítica, como em missão-crítica, imprescindível, essencial;
  • Crítica, como na crítica literária, que fornece definições e interpretação;
  • Crítica, como no pensamento reflexivo e matizado sobre um assunto;
  • Crítica, criticando impedimentos institucionais, corporativos ou sociais à aprendizagem;
  • Pedagogia crítica, como uma abordagem disciplinar, que flexiona (e é flexionada por) cada um desses outros significados.

Cada um desses registros distingue a Pedagogia Crítica da pedagogia; No entanto, o clima educacional atual tornou os termos, para mim, cada vez mais contíguos (ou seja, uma pedagogia ética deve ser crítica). A pedagogia é uma práxis, insistentemente pousada na interseção entre a filosofia e a prática do ensino. Quando os professores falam sobre o ensino, não estamos necessariamente fazendo um trabalho pedagógico, e nem todo método de ensino constitui uma pedagogia. Em vez disso, a pedagogia envolve necessariamente um trabalho recursivo, de segunda ordem e em nível meta-reflexivo. Professores ensinam; os pedagogos ensinam enquanto também investigam ativamente o ensino e a aprendizagem. A pedagogia crítica sugere um tipo específico de práxis libertadora, anticapitalista. Trata-se de um trabalho profundamente pessoal e político, através do qual os pedagogos não podem e não permanecem objetivos. Pelo contrário, a pedagogia, e particularmente a pedagogia crítica, é um trabalho para o qual devemos trazer todo o nosso ser, e um trabalho para o qual todo aluno deve vir com toda sua agência.

Na pedagogia do oprimido, Paulo Freire argumenta contra o modelo bancário, em que a educação “se torna um ato de depósito, em que os alunos são os depositários e o professor é o depositante”. Esse modelo enfatiza um relacionamento transacional unilateral, no qual os professores são vistos como especialistas em conteúdo e os alunos são posicionados como receptáculos sub-humanos. O uso de “sub-humano” aqui é intencional e não exagero, pois, de acordo com os princípios estabelecidos no trabalho de Freire (e no trabalho de outros pedagogos críticos, incluindo bell hooks e Henry Giroux), o modelo bancário de educação é parte integrante dos esforços mais claramente consubstanciais em termos de desumanização. O modelo bancário de educação é eficiente na medida em que mantém a ordem e é burocraticamente limpo e arrumado. Mas a eficiência, quando se trata de ensino e aprendizagem, não deve ser valorizada. As escolas não são fábricas, nem aprendizado ou aprendizes são produtos industriais.

Eu me torno, de imediato, profundamente cético quando ouço a palavra “conteúdo” em uma discussão sobre educação, principalmente quando é acompanhada de uma expressão como “pacote”. Não que a educação seja totalmente desprovida de conteúdo, mas seu conteúdo é co-construído como parte de — e não antes do — aprendizado.

Nota da tradutora: Pacote (package) é um termo muito utilizado campo da educação mediada por tecnologias, especialmente em contextos em que a mercantilização da educação está bem estabelecida. Refere-se a conjuntos de ferramentas e materiais prontos, que são comercializados a instituições de ensino para serem trabalhados de forma combinada. Os pacotes são uma espécie de versão tecnologicamente expandida das apostilas.

A Pedagogia Crítica preocupa-se menos com o conhecimento e mais com um não-conhecimento voraz. É um processo contínuo e recursivo de descoberta. Para Freire, “o conhecimento surge apenas através da invenção e da reinvenção, através da investigação inquieta, impaciente, contínua e esperançosa que os seres humanos buscam no mundo, com o mundo e um com o outro”. Aqui, a linguagem ecoa o tipo de aprendizado que Freire descreve. Com uma enxurrada de adjetivos e orações separadas por vírgulas, sua frase circula em torno do assunto, vagando, empurrando inquietamente as bordas de como as palavras fazem sentido — não diretamente através da tradução literal em conceitos, mas da maneira como as palavras se esfregam curiosamente umas nas outras fazendo sentido através de uma espécie de atrito. O conhecimento surge na interação entre várias pessoas em conversação — roçando umas nas outras em uma troca ou diálogo mútuo e pleno. Freire escreve: “A educação autêntica não é levada adiante por ‘A’ para ‘B’ ou por ‘A’ sobre ‘B’ ‘, mas sim por ‘A’ com ‘B ‘“. É por meio desse diálogo inquieto e da colaboração implícita nele que a Pedagogia Crítica encontra seu impulso em direção à mudança.

Em lugar do modelo bancário, Freire defende a “educação pela pergunta”, por meio da qual uma sala de aula ou ambiente de aprendizado se torna um espaço para apresentar questões — um espaço de cognição e não de informação. As relações verticais (ou hierárquicas) dão lugar a outras, mais divertidas, nas quais alunos e professores são co-autores dos parâmetros de sua aprendizagem — individual e coletiva. A educação pela pergunta oferece um espaço de criação mútua, não de consumo. Em “Ensinar a Transgredir”, bell hooks escreve: “Como uma comunidade-da-sala-de-aula, nossa capacidade de gerar excitação é profundamente afetada por nosso interesse mútuo, em ouvir as vozes uns dos outros, em reconhecer a presença um do outro”. Este é um espaço vivo e íntimo de criatividade e investigação — um espaço de ouvir tanto quanto de falar.

O que é Pedagogia Digital Crítica?

Meu trabalho questionou até que ponto a Pedagogia Crítica se traduz no espaço digital. O diálogo reflexivo necessário pode florescer em ferramentas baseadas na Web, em plataformas de mídia social, em sistemas de gerenciamento de aprendizagem, em MOOCs? O que é agência digital? Até que ponto as mídias sociais podem funcionar como um espaço de participação democrática? Como podemos construir plataformas que apóiam o aprendizado em diferentes idades, raças, culturas, gêneros, habilidades, geografias? Quais são as possibilidades e limitações específicas da tecnologia para esses fins? Se, de fato, todo aprendizado é necessariamente híbrido, como argumentei, até que ponto a Pedagogia Crítica e a Pedagogia Digital estão se tornando também contíguas?

Nota da tradutora: MOOCs são os Massive Online Open Courses, Cursos Online Abertos Massivos. São cursos ofertados em plataformas virtuais, abertos à participação, sem exigência de pré-requisitos, que têm como principal característica oportunizar o acesso de um grande número de pessoas aos conhecimentos ali veiculados. No geral, são compostos por vídeos gravados, indicações de leituras e atividades sem tutoria.É usual que estejam sempre disponíveis, sem prazo de inscrição ou período determinado para cumprimento de tarefas — o que é diferente nos raros cursos que têm atividades práticas “revisadas por pares”.

O questionamento dessas perguntas não é, de fato, particularmente novo. Richard Shaull escreve, em seu prefácio à Pedagogia do Oprimido, de Freire: “Nossa sociedade tecnológica avançada está rapidamente tornando maioria de nós objetos, e sutilmente nos programando em conformidade com a lógica de seu sistema […] O paradoxo é que a mesma tecnologia que faz isso conosco também cria uma nova sensibilidade para o que está acontecendo”. E John Dewey escreve em Schools of To-Morrow, publicado décadas antes: “A menos que a massa de trabalhadores sejam engrenagens e eixos cegos aos aparelhos que empregam, eles devem ter alguma compreensão dos fatos físicos e sociais que estão por trás e à frente do material e dos aparelhos com os quais estão lidando”. Se quisermos impedir que todos os empreendimentos educativos se transformem em fábricas — se tornem apenas um reflexo das práticas opressivas de trabalho e relações de poder desiguais -, devemos nos envolver profundamente com sua realidade.

Cada vez mais, a web é um espaço de política, um espaço social, um espaço profissional, um espaço de comunidade. E, para o bem ou para o mal, cada vez mais o nosso aprendizado está acontecendo lá. Para muitos de nós, está se tornando cada vez mais difícil distinguir entre o nosso eu real e o nosso eu virtual, e, de fato, essas distinções estão se tornando totalmente instáveis. Em The New Learning is Ancient, Kathi Inman Berens escreve: “Não me importa se minha sala de aula é um pequeno retângulo em um prédio ou um pequeno retângulo acima do teclado. Portas são retângulos; retângulos são portais. Nós atravessamos”. Quando aprendemos online, nossos pés quase sempre estão literalmente no chão, parados. Quando interagimos com um grupo de estudantes por meio de streaming de vídeo, a interação é, no entanto, cara a cara. A web está nos pedindo para reimaginar como pensamos sobre o espaço, como e onde nos envolvemos e em quais plataformas a maior parte do nosso aprendizado acontece.

Em Small pieces loosely joined: a unified theory of the web, David Weinberger escreve: “Nós somos as verdadeiros ‘pequenas peças’ da Web e estamos unindo-nos livremente de maneiras que ainda estamos inventando”. Dez anos atrás, após a publicação do livro de Weinberger, eu não imaginaria as redes de aprendizado que construí agora com colegas trabalhando juntos (às vezes simultaneamente em tempo real) em lugares aparentemente remotos como Portland, Madison, Manchester, Prince Edward Island , Sydney, Cairo e Hong Kong.

Isso não quer dizer, no entanto, que não haja desafios para esse tipo de trabalho. Em “On Critical Pedagogy”, Henry Giroux argumenta:

Os intelectuais têm a responsabilidade de analisar como a linguagem, a informação e o significado funcionam para organizar, legitimar e circular valores, estruturar a realidade e oferecer noções particulares de agência e identidade. Para os intelectuais públicos, tal desafio exige um novo tipo de alfabetização e entendimento crítico em relação ao surgimento de novas mídias e tecnologias eletrônicas, e o novo e poderoso papel que desempenham como instrumentos de pedagogia pública

A maioria das tecnologias digitais, como mídias sociais ou plataformas de escrita colaborativa ou MOOCs, não tem seus valores previamente codificados. Essas são apenas ferramentas, boas apenas na medida em que são usadas. E plataformas que ditam muito fortemente como podemos usá-las, ou aquelas que destroem nossa agência, reduzindo-nos — a nós e ao nosso trabalho -, muito secretamente, a dados que se pode vender e comprar, devem ser erradicadas por uma Pedagogia Digital Crítica. Muito do trabalho em tecnologia educacional parte das ferramentas, quando o que precisamos é partir dos humanos.

Nós somos melhores usuários de tecnologia quando pensamos criticamente sobre a natureza e os efeitos dessa tecnologia. O que devemos fazer é trabalhar para incentivar os alunos e a nós mesmos a pensar criticamente sobre novas ferramentas (e, mais importante, sobre as ferramentas que já usamos). E, quando procuramos soluções, o que mais precisamos mudar é o nosso pensamento, não nossas ferramentas.

Em suma, a Pedagogia Digital Crítica:

  • Centra sua prática em comunidade e colaboração;
  • Deve permanecer aberta a diversas vozes internacionais e, portanto, requer invenção para reimaginar as maneiras pelas quais a comunicação e a colaboração acontecem através das fronteiras culturais e políticas;
  • Não será, não pode ser, definida por uma única voz, mas deve reunir uma cacofonia de vozes;
  • Deve ter uso e aplicação fora das instituições tradicionais de educação.

Uma Pedagogia Digital Crítica demanda que ambientes educacionais abertos e em rede não devam ser meramente repositórios de conteúdo. Eles devem ser plataformas para envolver alunos e professores como agentes completos de seu próprio aprendizado.

Pete Rorabaugh escreve, em Occupy the Digital: Critical Pedagogy and New Media:

A Pedagogia Crítica, não importa como a definimos, tem um lugar central na discussão de como o aprendizado está mudando no século XXI, porque a Pedagogia Crítica se preocupa principalmente com uma distribuição eqüitativa de poder. Se os alunos vivem em uma cultura que os digitaliza e os educa por meio de uma tela, eles exigem uma educação que os capacite nessa esfera, que ensine a eles essa linguagem e ofereça novas oportunidades de conectividade humana.

A pedagogia crítica é tanto uma abordagem política quanto educativa. Como Sean Michael Morris escreve, é “um movimento de justiça social primeiro e um movimento educacional em segundo”.

Portanto, a Pedagogia Digital Crítica também deve ser um método de resistência e humanização. Não é simplesmente um trabalho realizado na mente, no papel ou na tela. É um trabalho que deve ser feito no terreno. Não se envergonha de seu grito de guerra ou dos seus discursos, do caixote que faz de palanque. A Pedagogia Digital Crítica come aforismos — como este bem aqui — no café da manhã. Mas não tem medo de incitar, postar seus manifestos, acender suas tochas.

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