Notas sobre Gosto de Cereja (1997)

Thalita Sales
7 min readAug 16, 2018

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O sr. Badii, como milhões de personagens na velha história do cinema, também tem a sua jornada. Dentro de seu carro, ele busca alguém que aceite fazer um serviço especial por 200.000 tomans e após os 10 minutos iniciais do filme, o espectador ainda não sabe que tipo de trabalho está em jogo, nem exatamente quem é aquele homem no volante.

Apesar de uma premissa aparentemente comum: alguém quer algo e vai atrás disso, Kiarostami continua com a sua marca que o distingue do cinema mainstream ao escolher omitir informações importantes para provocar no espectador uma participação na história. E nessa ciranda não existe certo e nem errado, apenas opiniões e modos de ver o mundo completamente distintos que completarão os vazios narrativos a partir das relações de cada um com aquilo que é visto.

As pessoas têm ideias diferentes e meu desejo é que os espectadores não devem completar o filme nas suas mentes do mesmo jeito, como palavras-cruzadas que sempre terminam do mesmo jeito, não importa quem solucionou. Mesmo que “completado” de forma errada, meu tipo de cinema ainda é “correto” e verdadeiro em seu valor original. Eu não deixo espaços em branco apenas para as pessoas terem algo para terminar. Eu os deixo em branco para que as pessoas preencham de acordo com o que pensam e com oque desejam. (KIAROSTAMI, 2001)

Os filmes de Kiarostami nunca serão aquilo que vemos na tela. Na verdade eles são a soma de todas as nossas experiências e dos sentimentos que afloram em nós quando experimentamos a sua obra. O que o sr. Badii busca é terminar com a sua vida tendo a certeza de que existirá alguém para enterrar seu corpo caso esteja realmente morto e Kiarostami o coloca cara a cara com três opiniões de três homens com idades, profissões e nacionalidades diferentes. Os buracos na narrativa que o espectador preenche de acordo com a sua visão remetem aos momentos em que o sr. Badii conversa com cada homem, como uma espécie de dispositivo que possibilita que o espectador também seja um passageiro naquela viagem.

Abordando a morte, Kiarostami fala sobre a vida. As estradas tortuosas por onde o SUV do sr. Badii passa representam nossos caminhos, nossas escolhas. Estar num país onde o suicídio é proibido e ouvir a opinião de três pessoas que não concordam com tal ato não impede que o homem abra mão de ser o dono de suas próprias decisões, de sua vida e, porque não, de sua morte.

Uma frase de um filósofo romano me ajudou muito: “sem a possibilidade do suicídio, eu já teria me matado há muito tempo”. O filme é sobre a possibilidade de viver e como estar vivo é uma escolha. A vida não é imposta a nós. Esse é o tema principal do filme. (KIAROSTAMI, 2000)

Viver é um tema universal e apesar de grande parte da obra do diretor se passar no Irã e mostrar a realidade e a forma de pensar daquele lugar, seus filmes não são restritos aos que nasceram ali. Na verdade, eles tem o poder de se comunicar com qualquer um que se permita abrir para os filmes. Com o pano de fundo um Irã sempre em reconstrução, Kiarostami traz à tona algo que vai muito além da geografia. A sua obra se comunica porque é capaz de falar sobre dor e alegria em um idioma em que todos nós somos fluentes: nosso interior.

Em “Gosto de Cereja” o sr. Badii procura alguém para enterrá-lo, em “Através das Oliveiras”, o ator busca a reciprocidade de seus sentimentos pela jovem atriz, em “E A Vida Continua” o diretor busca reencontrar os atores de “Onde Fica a Casa Do Meu Amigo?” após um terremoto e este último, por sua vez, mostra a busca de um garoto por seu amigo da escola. Na vida real, estamos sempre buscando algo. Seja um emprego, seja uma casa, seja alguém. A nossa busca é o que nos move pelos dias e na obra de Kiarostami muitas vezes é o gatilho para o filme acontecer.

A princípio servindo de escudo, o carro do sr. Badii não só se torna também um personagem do filme (como o hotel em O Iluminado), como é uma importante metáfora para o diretor discutir as esferas do público e do privado. Do lado de fora está uma sociedade conservadora cujas tradições não permitem o suicídio. É só dentro do carro que o sr. Badii e seus convidados podem debater sobre o tema.

E o espaço de reflexão está também no vidro do veículo, que alegoricamente, se divide ora se apresentando como barreira física, ora se apresentando como transposição e reflexão. O vidro do automóvel, sempre semi-aberto (dividindo o espaço público e privado) permite ao mesmo tempo observar o que se passa “lá fora” sem deixar de refletir “cá dentro”. (MESQUITA, 1997)

E são nos momentos em que o sr. Badii sai do seu carro que a realidade do lado de fora o invade, a paisagem se tornando os olhos da sociedade que o julgam pelo seu desejo de morrer. Para isso, Kiarostami parece estacionar a narrativa, permitindo uma série de momentos de reflexão, nos quais não só o personagem contempla o estar no mundo, mas também os próprios espectadores. Em muitos desses instantes, a paisagem parece incidir sobre o protagonista, revelando o seu maior medo: ser enterrado vivo. Por isso estamos tomados por terra e constantemente sob uma camada de fumaça.

É curioso que nunca vemos como se deu o encontro do sr. Badii com o último personagem que entra em seu carro, um taxidermista cujo filho está muito doente. Diferente dos outros dois personagens anteriores, a montagem já nos mostra o taxidermista dentro do carro. Ele parece ser o que mais se identifica com a situação do protagonista, visto que também passou por um episódio em que tentou se matar. É ele quem dá o nome ao filme, questionando se o sr. Badii não quer mais sentir o gosto das cerejas, ou seja, das pequenas coisas que dão sentido à vida, como um assistir o pôr do sol, sorrir ou sentir o sabor de fruta.

O taxidermista também não concorda com o que o sr. Badii pretende fazer, mas aceita o trabalho porque precisa de dinheiro para tratar seu filho. Apesar da escolha ter como base um desejo financeiro, ele é quem mais tem empatia pela situação que o protagonista passa. Ele parece ser o elemento que faltava na concretização dos planos do sr. Badii e talvez seja por isso que ao deixar tudo acertado, vemos o personagem voltar às pressas para onde deixou o taxidermista para avisá-lo de ter certeza que ele está morto antes de começar a enterrá-lo. Kiarostami brinca com o espectador nesse momento, pois o ritmo que a montagem constrói nesta cena indica que o protagonista está voltando para dizer que mudou de ideia.

O taxidermista também não concorda com o que o sr. Badii pretende fazer, mas aceita o trabalho porque precisa de dinheiro para tratar seu filho. Apesar da escolha ter como base um desejo financeiro, ele é quem mais tem empatia pela situação que o protagonista passa. Ele parece ser o elemento que faltava na concretização dos planos do sr. Badii e talvez seja por isso que ao deixar tudo acertado, vemos o personagem voltar às pressas para onde deixou

Acontece que ele ainda está seguro da sua decisão e volta para casa para se preparar. Aqui o espectador não é permitido entrar. Apesar de ter um lugar numa parte íntima do personagem, o seu carro, e poder testemunhar algo muito privado, que é o seu desejo de morte, a sua casa parece estar numa esfera ainda mais particular, na qual o espectador não tem acesso. Da janela do cinema observamos outra janela, nela o sr. Badii faz o seu último ritual do cotidiano, apaga as luzes e sai de encontro ao seu destino final.

Quando o sr. Badii chega no local onde quer morrer, a imagem começa a se esvair. Ele se deita, fecha os outros e um escuro invade. Só o som continua presente e ouvimos o barulho da chuva, quase como um avesso do artíficio usado no final de Close-Up (1990), quando o diretor decide falhar deliberadamente o som na última cena e não podemos ouvir direito o último diálogo do filme.

Kiarostami trás a imagem de volta e já não estamos mais na história do sr. Badii, filmado em formato de vídeo, diferente de todo o resto do filme, vemos o próprio diretor com parte da equipe e do elenco num campo durante as gravações de uma cena de Gosto de Cereja enquanto ouvimos o instrumental de uma canção chamada de “St. James Infirmary”. Essa sequência causou opiniões contrárias entre críticos e público. Apesar de fugir completamente do que havia sido proposto durante o filme, não me parece que Kiarostami fugiu do seu cinema. Em suas obras podemos perceber uma presença constante da metalinguagem, o cinema sempre se auto-referencia e nesse caso, também se renova.

Como a vida, o cinema está em constante transformação. Sempre existirão cineastas entusiasmados por explorar linguagem e aparato e Kiarostami foi um desses. O final de Gosto de Cereja não é apenas uma metáfora sobre a vida do sr. Badii, como proposto por alguns críticos como Jonathan Rosenbaum, que percebeu que naquela sequência estavam presentes elementos que fizeram parte da vida do protagonista, mas também é sobre o início de uma nova etapa da sétima arte com a possibilidade do vídeo.

Além de tudo isso, não podemos esquecer que Kiarostami contava com seu espectador para preencher as lacunas deixadas por ele, portanto aquele final também vai ter um significado particular para cada espectador. Kiarostami pode não estar mais entre nós, mas com certeza ele deixou um legado de filmes que nunca se esgotarão.

Eu acredito em um cinema que dá mais possibilidades e tempo para o seu espectador — um cinema não-acabado, um cinema pela metade que é completado pelo espírito criativo de cada um, de repente nós temos centenas de filmes. (KIAROSTAMI, 1995)

REFERÊNCIAS

ROSENBAUM, J. Fill the blanks . 1998. Disponível em: <jonathanrosenbaum.net/1998/05/fill-in-the-blanks >

MESQUITA, R. Gosto de cereja . Disponível em: <contracampo.com.br/83/gostodecereja.htm >

STERRIT, D. With borrowed eyes : an interview with Abbas Kiarostami. 2000. Disponível em: < filmcomment.com/article/with-borrowed-eyes-an-interview-with-abbas-kiarostami/

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