“Enteadas” e “lésbicas”: a relação entre pornografia e violência e por que achamos isso normal

Thamires Motta
8 min readJan 23, 2017

Aviso de conteúdo: Esse texto fala de hipersexualização, lesbofobia, pedofilia e estupro. Pode ser um conteúdo gatilho para pessoas que já sofreram alguma violência.

Na última semana, alguns posts viralizaram depois de sugerir que as pessoas buscassem a palavra “enteadas” no Google. O resultado é bem chocante: as três primeiras páginas revelam a quantidade de conteúdos pornográficos relacionados à pesquisa. Na terceira página, mesclam-se a pornografia e… notícias sobre estupro.

E a nossa conversa começa aqui.

O objetivo do Google é mostrar para as pessoas que pesquisam o resultado mais relevante para elas. Somado a isso, existem dezenas de técnicas de otimização que os sites usam para se manter sempre “no topo”, como o uso de palavras-chave e o número de visualizações. Quanto mais visitado, mais ele tende a aparecer nas primeiras páginas. Ou seja, quanto mais as pessoas procuram um certo termo e clicam em uma certa página, mais essa página tende a aparecer no início.

Confesso que a primeira vez que joguei a palavra no Google fiquei estarrecida. Mas a surpresa não durou muito, já que faz um tempão que a militância lésbica vem chamando atenção para um fenômeno parecido: a diferença entre quando você joga a palavra “lésbicas” e a palavra “gays” no Google. Adivinha o que acontece quando você digita “lésbicas”? Se você respondeu “pornografia”, acertou em cheio. São QUATRO páginas recheadas de pornô. É só na metade da página quatro que aparece a definição de “lésbicas” no Wikipédia e um site direcionado à cultura LGBT, o Sou Betina.

Enquanto digitar “gays” é bem diferente. Aparece a definição do termo no Wiki, bate-papo, vídeos e assuntos sobre comportamento, vida de famosos, etc. Nem vou me estender sobre o quanto isso é prejudicial na forma como é construída a visão do que é “ser lésbica”. Só imagine a cena: uma adolescente quer entender mais sobre sexualidade (ou sei lá, fazer um trabalho de escola) e digita “lésbicas” no Google. O que ela vê é isso:

Voltando…

É por aqui que a gente começa a falar sobre qual a relação entre pornografia e violência.

Antes de tudo, vamos fazer uma rápida análise sobre o percentual de vítimas de estupro no Brasil.
(Se você acha que a maioria das vítimas de estupro é a adulta desacompanhada abordada no beco escuro, tá na hora de abandonar esse senso comum.)

Os dados levantados pelo Ipea em 2011 mostram uma realidade que muita gente não quer ver. 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, 88,5% são meninas, mais da metade tinha menos de 13 anos de idade, e 51% eram de cor preta ou parda.

Ou seja, o “perfil” das pessoas que mais sofrem abuso sexual no país é uma menina, de até 13 anos e cor preta ou parda.

Foto: Dreaming in the deep south

Os mesmos números mostram que 24,1% dos abusadores são pais ou padrastos das vítimas, e 32,2% são amigos ou conhecidos.

De acordo com o Ipea, 70% dos estupradores são parentes, namorados, amigos ou conhecidos das vítimas.

Dá pra adivinhar qual é o local onde as vítimas mais sofrem esses abusos?

Sim, dentro da própria casa.

Lembrou da pesquisa “enteadas”? Pois é.

E qual a relação disso com a pornografia?

Olhando cruamente os dados sobre violência sexual no Brasil, é impossível não fazer uma ligação entre as palavras “enteadas” e “pai e filha” e o índice absurdo que coloca pais e padrastos como os maiores abusadores.

Antes de julgar algo ou alguém, vamos analisar rapidamente os dois maiores sites de pornografia do Brasil, o “PornHube” e o “RedTube”.

  • No PornHub, os vídeos mais vistos pelos brasileiros, entre 1 e 8 milhões de visualizações cada um, são esses:
    “Fiquei nua para o meu meio-irmão e ele não conseguiu resistir”
    “Novinha dorminhoca acordada por uma p* dura” (é literalmente uma menina jovem DORMINDO que é abusada por um homem mais velho)
    “Me divertindo com a adolescente Verônica”
    “Mãe e filha” (duas mulheres de idades diferentes se pegando)
  • A palavra “lésbicas” foi a segunda mais buscada por brasileiros em 2016, segundo estatística do PornHub.
  • A tag “adolescentes” é a 7ª mais procurada no site.
  • Em 2014, a tag mais procurada por brasileiros foi “novinha”.
  • No RedTube, os vídeos mais vistos e mais votados são coisas como:
    “Padrasto f* a filha e enteada”
    “Mulheres se pegando”
    “Novinhas”
  • A tag “sexo a três” é a segunda mais popular do Redtube. (A imensa maioria dos vídeos, como já era de se esperar, é entre um homem e duas mulheres.)
  • A tag “escola” é a 8ª mais popular do Redtube.
Infográfico do “Economist” mostra quais foram as palavras-chave mais procuradas no PornHub em 2014, em cada país

Calma. Eu não estou dizendo que homens que consomem pornografia se transformam em estupradores ou são estupradores em potencial. Mas é preciso que a gente faça uma ligação entre o conteúdo dos sites de pornografia mais acessados no país e a forma como a violência se perpetua no caso de abusos sexuais. Nem é preciso dizer que o Brasil é um dos países campeões em acesso à pornografia.

O que a pornografia faz hoje é naturalizar a violência.

E é aí que mora o grande perigo.

“ Concordamos que a indústria de alimentos molda a maneira que comemos, que a indústria da moda molda a maneira que nos vestimos, então como é possível que a indústria do sexo é única que não molda o comportamento humano?”
— Gail Dines

Nossa sexualidade também é influenciada pela cultura. Isso quer dizer que os meninos de 12 anos ou menos, que tem o acesso à internet cada vez mais facilitado, e logo o acesso à pornografia, estão moldando a sexualidade deles de acordo com o que tem assistido nos filmes pornôs.

E o que eles acham quando procuram?

Mulheres que fazem todas as suas vontades, mulheres lésbicas se pegando para que ELE fique excitado, penetração, penetração anal, gozo na cara. O sexo na pornografia não está nem um pouco preocupado com o prazer da mulher. Para um adolescente que ainda está construindo sua masculinidade, a pornografia é um ponto essencial para saber “o que fazer para ficar excitado” e “como fazer”. Navegar rapidamente pelos sites pornográficos nos faz ver o seguinte:

A gente faz elas engasgarem até a maquiagem borrar e deixamos todos os outros buracos ardendo — vaginal, anal, dupla penetração e qualquer ato envolvendo um pinto e um orifício. E depois damos um banho grudento nelas.”
— texto do site “Gag me and then fuck me”, indicado por Gail Dines

A pornografia é uma das forças sociais que moldam a masculinidade.

Pensa bem: em uma sociedade extremamente conservadora, patriarcal e misógina como a nossa, em que as meninas são ensinadas a serem “belas, recatadas e do lar” e os meninos a serem “pegadores”, quais são os lugares e os exemplos em que eles vão buscar a forma para moldar sua masculinidade?

Sim, a internet.
E sim, conversando com seus pais e amigos.
E sim, em todos esses lugares
A pornografia já foi largamente vista e consumida.

Foto: Carlotta Roma

Os jovens ficam viciados em pornografia cada vez mais e cada vez mais cedo. E isso faz com que eles comecem a procurar conteúdos pornográficos cada vez mais “hardcore”. Eu precisei navegar só 4 minutos no RedTube para achar um vídeo de um rapaz penetrando uma mulher com o pênis E o punho.

A pornografia também influencia a cultura a tornar nossas meninas as maiores vítimas desses problemas.

Partindo do pressuposto de que estamos caminhando para a terceira geração de homens que tem acesso ilimitado à pornografia, já que nossos pais, as pessoas da nossa idade e agora nossos filhos estão acessando, qual conexão podemos fazer com a quantidade de pessoas que buscam por “novinha” no RedTube e a quantidade de crianças e adolescentes que são estupradas no Brasil?

A resposta: naturalização da violência.

O que a pornografia faz não é necessariamente criar abusadores. Mas sim naturalizar a sexualização precoce das meninas, naturalizar o sexo violento, naturalizar a vontade masculina acima de tudo, transformar a existência lésbica em algo voltado para o prazer masculino, naturalizar a busca de “enteadas”, “pai e filha” e “lésbicas” no Google como conteúdo pornográfico. Isso está destruindo a forma como os homens tratam as mulheres, a forma como se relacionam, a forma como fazem sexo consensual com elas.

Quantas vezes não ouvi de amigas que o namorado ficou insistindo em alguma prática que ela não se sentia confortável, mas que acabou cedendo para não perdê-lo?

Quantas vezes não escutei de homens que “aquela menina nem parece que tem 12 anos, já tem corpo”.

Quantas vezes vi minhas primas pequenas receberem olhares indecentes de homens com o quádruplo da idade delas?

Quantas vezes eu mesma não escutei “que delícia” ou “se beijem pra mim” quando estava acompanhada da minha namorada?

Desde muito cedo os homens estão aprendendo que o sexo com a mulher é aquilo que ele vê na pornografia. E ele vê “novinhas”. Vê mulheres se beijando para excitá-lo. Vê a enteada o “provocando”. No fundo, a pornografia vai tornando a violência uma coisa totalmente normal.

A pornografia que estamos acessando hoje está naturalizando a violência de toda uma sociedade.

Foto: Sinthonia

Ok, então o que faremos? Destruir a pornografia?

É claro que a “destruição da pornografia” é um objetivo utópico e não necessariamente vai acabar com a violência machista no mundo. E é claro que a pornografia não é o único problema do mundo machista. E é claro que o mundo não é machista só por causa da pornografia. Mas uma das soluções para melhorar a vida das mulheres seria mudar a forma como a pornografia é consumida. Isso é como lutar contra o patriarcado: é um sistema imenso, internacional e poderoso demais. Precisamos investir em pornografia feminista? Talvez. Não vou ignorar a importância de termos mais conhecimento e acesso sobre o nosso corpo, e que às vezes isso acontece pelo pornô. Mesmo assim, precisamos transformá-lo. Precisamos parar de assistir pornografia? Eu diria que sim. Para todos os meus amigos homens, principalmente os que se interessam por feminismo, o que eu mais digo é isso: “se você tem o mínimo de empatia pelas mulheres e concorda com o feminismo, o que você pode fazer nesse instante para ajudar é parar de consumir pornografia”.

A naturalização da violência está destruindo a humanização das mulheres. Nessa batalha árdua contra a pedofilia, o abuso sexual e todo tipo de assédio e violência, é preciso mudar nossas atitudes e nosso comportamento. Pode acreditar. Parar de consumir a pornografia que existe hoje é esse grande e necessário passo.

[ + ] Como a pornografia cria o cliente: Pornografia, tráfico de mulheres e a construção social da masculinidade: http://archive.is/6LgUU
[ + ] O mundo por trás das câmeras do pornô: http://www.siteladom.com.br/o-mundo-por-tras-das-cameras-do-porno/
[ + ] Pornografia: A rica indústria que promove pedofilia, estupro e exploração sexual: http://grupovioles.blogspot.com.br/2015/07/artigo-pornografia-rica-industria-que.html

--

--

Thamires Motta

Jornalista. Feminista. Lésbica. Fotógrafa. Escritora. Não necessariamente nessa ordem.