Sobre leis trabalhistas, desigualdade doméstica e meritocracia na questão da desigualdade salarial da mulher

Thamy Almeida
5 min readOct 15, 2015

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É assim que Narloch imagina a igualdade de gênero profissional: mulheres poderem cuidar dos filhos enquanto trabalham Fonte: RG-Cell

Leandro Narloch leu meu artigo anterior e um milagre ocorreu: se antes as mulheres precisavam ser menos livres para alcançar a igualdade salarial, agora precisamos de mais flexibilidade no trabalho.

Ignorando todo o fundamento socioeconômico exposto no texto anterior, o colunista da Veja se defende pela via das habilidades naturais de cada gênero. Nesse contexto, a mulher teria capacidades que a colocam em vantagem, em relação ao homem, e portanto seria naturalmente mais apta a ser mais produtiva.

O fato é que habilidades — ou características — naturais têm valor apenas circunstancial no meio produtivo, constituindo ora vantagem, ora desvantagem. Além disso, jamais justificarão desigualdades historicamente desenvolvidas, pois a capacidade de assumir o controle da própria história e, portanto, revertê-las, é uma das coisas que diferencia o ser humano dos animais.

E, por falar nisso, não, produtividade não é o quanto alguém é capaz de produzir em um determinado período de tempo. Produtividade da mão de obra é a razão entre seu custo e a quantidade de trabalho realizado. Uma pessoa cuja mão de obra custe R$ 1000,00 e produza 20 sapatos por dia é mais produtiva do que aquela que produz 22 sapatos ao dia por R$ 1200,00, em condições similares de trabalho.

A análise séria e objetiva do assunto deveria levar em consideração outros pontos que fazem parte desta equação, ao lado da socialização: as leis trabalhistas — em uma sociedade dominada pela lógica da oferta e demanda — em conjunto com o formato atual da família.

O efeito colateral dos direitos trabalhistas

A mera possibilidade da mulher engravidar compromete sua colocação no mercado de trabalho e sua remuneração pela maior parte de sua vida. Mesmo que um homem e uma mulher tenham habilidades iguais, quem compra força de trabalho achará mais vantajoso contratar o homem. Ele não precisará ser afastado por licença-maternidade, que dura até 6 meses, contra 5 dias de licença-paternidade, se tanto.

Outro ângulo importante, é que, como o dia de trabalho da mulher é mais barato que o do homem, é ela quem “perde o dia” quando seus filhos ficam doentes, ou quando algum familiar precisa de cuidados ou acompanhamento hospitalar, sem mencionar o afastamento do trabalho por longos períodos, em caso de problemas familiares mais sérios.

Como já discutido no texto anterior, as leis trabalhistas diferenciam homens de mulheres e geram pressão para baixo no valor pago à mulher no mercado. O motivo para isto é muito simples: custamos mais caro, pois os proprietários das empresas precisam arcar com direitos que não existem para os homens.

Esta se torna uma questão matemática que explica, em parte, a desigualdade salarial. E ninguém aqui está dizendo que isso é justo. Apenas mostramos que, importantes quanto sejam as leis trabalhistas, seu caráter de solução paliativa não nos livra da tarefa histórica de superar a lógica do capital.

A desigualdade no núcleo familiar

Por ter a capacidade de amamentar, temos o que podemos chamar de incentivo natural para assumir o papel de cuidadoras. Esse incentivo, em conexão com a maior força muscular dos homens, pode ter sido uma das razões para a mulher ficar no lar, desde as sociedades anteriores.

Hoje, no entanto, essa estrutura segue vigente sob um falso determinismo de que somos mais aptas a exercê-las do que os homens, quando, na verdade, trata-se apenas de quem tem o menor valor de mão de obra, como já exposto.

Nos tornamos candidatas naturais a abandonar o trabalho. Mais uma vez, temos a relação dialética perpetuando uma questão histórica. Acreditar e propagar esse tipo de ideia é um erro, uma vez que isto só serve para manter a estrutura social e seus problemas de hoje.

Essa ausência do homem na vida doméstica não ocorre simplesmente por má vontade deles, mas principalmente porque também lhes é exigido algo nessa divisão familiar: que se dediquem a prover, ganhar o pão, para manter a família. Estar presente ao longo do desenvolvimento dos filhos, na sociedade atual, é um privilégio de quem pode bancá-lo.

A consequência mais clara disso é a terceirização da educação de nossas crianças, em nome de estarmos presentes no mercado, ou, no outro extremo, o conhecido “abandono de incapaz”, por uma necessidade imperativa de sustentar a própria casa e não ter condições financeiras de contratar uma babá, por exemplo. A mulher provedora pobre, ao tentar manter sua família, corre inclusive o risco de perder a guarda de seus filhos. No mínimo contraditório.

Nesse jogo, a mulher sempre perde pois não consegue cumprir suas funções de mãe como gostaria nem consegue ser uma profissional eficiente e, em meio a tudo isso, manter sua sanidade.

Neste aspecto, temos o desafio educacional de fazer com que esta situação, que é decisiva nas classes mais baixas, seja percebida por todos como real, urgente e carente de mudança, enquanto para a classe dominante este tema continua sendo apenas um debate de rede social.

Mito: meritocratas discursando por igualdade

O colunista da Veja e todos os que endossam discursos meritocratas querem que nós trabalhemos fora, sejamos produtivas tanto quanto um homem, compensemos a defasagem criada pela socialização inferior nos esforçando mais e ainda tomemos conta de criar os filhos que tivermos. Para ele, basta que nos dêem cargas mais flexíveis de trabalho e tudo será resolvido, todos seremos felizes.

Acontece que nenhuma combinação de leis trabalhistas e programas sociais dariam cabo da desigualdade em uma sociedade baseada no mérito, ou seja, na qual aquele que mais produz é o mais recompensado. Isto por que os membros desta sociedade nunca concordariam em garantir direitos que fossem independentes da produção de cada indivíduo. Na meritocracia, se queremos igualdade, que trabalhemos mais, sejamos mais eficientes, tanto quanto um homem, e então teremos salário igual!

Mas, e tudo que ouvimos falar da Europa e dos EUA?

No atual sistema econômico mundial — que produz desigualdade, por definição — seria necessário explorar países economicamente menos estáveis para equilibrar a situação da mulher trabalhadora — e também do homem trabalhador — brasileiros.

Explorando a mão de obra barata de uma nação considerada inferior, nossa classe dominante permitiria que nossos trabalhadores tivessem mais direitos. Em troca, os filhos destes trabalhadores deveriam se alistar, como em um sacrifício, em nossas invasões militares civilizatórias, que na verdade serviriam como mecanismo de controle dos Estados Soberanos que dominaríamos.

Pronto, estado do bem-estar social! Poderíamos até cantar nosso hino com mais orgulho antes de nossas partidas de futebol.

No entanto, solucionar o problema dos nossos trabalhadores às custas dos trabalhadores de outros países, como fizeram diversas nações europeias com a África e Índia e os Estados Unidos com o Oriente Médio e a América Latina não faz nenhum sentido. Não é assaltando a autodeterminação de outra nação que vamos orgulhosamente resolver a desigualdade no Brasil. Exceções cujas populações equivalem ao tamanho de uma cidade brasileira não invalidam os casos de EUA, França, Alemanha, Inglaterra, Japão…

Precisamos pensar de maneira ativa sobre que tipo de sociedade queremos construir, pois, até aqui, nunca estivemos no controle de nossa história. O sistema econômico vigente já deu inúmeras provas de sua capacidade destrutiva e da exaustão de seu papel no desenvolvimento da humanidade.

Enquanto isso, discursos como os de Narloch têm a função de falar de mudança, quando, na verdade, servem a classe dominante garantindo que nada realmente mude, mantendo as mulheres e outras classes oprimidas em seu devido lugar.

Em colaboração com Thiago Almeida.

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Thamy Almeida

UX Researcher, sempre à esquerda . Gosto de analisar as coisas e acredito em um mundo melhor "by design".