Antecedentes históricos da Reforma na Hungria

Breve resumo da história húngara até o período da reforma: do lendário reinado de Estevão I à trágica Batalha de Mohács.

The Lightkeeper
6 min readMay 20, 2022

Situada na Bacia dos Cárpatos, uma grande planície cercada por todos os lados por cadeias montanhosas (os Cárpatos, envolvendo-a pelo leste; os Alpes e os Alpes Dináricos pelo oeste e sul) e cortada de norte a sul pelo rio Danúbio, a Hungria possui uma complexa e interessante história, na qual a Reforma Protestante representa um importantíssimo “capítulo”.

Em um primeiro momento, antes de mergulhar na história da reforma protestante na Hungria, é de grande importância entender a origem e formação do povo e cultura húngaros, para, então, munidos dessa base, melhor compreender os antecedentes e os desdobramentos do protestantismo no citado país.

1 — Da Panônia Romana a Estevão I, o rei guerreiro dos magiares:

Podemos começar a partir da conquista romana de tal extensa planície, nomeando-a como “Panônia”. Com a queda do Império Romano, o território foi ocupado e disputado por várias tribos: os hunos passaram por ali, depois deles foi a vez dos ostrogodos habitarem às margens do Danúbio, e então vieram os ávaros e assim por diante. Essa ciranda durou até que, por volta do século IX, sete tribos de magiares, um povo oriundo dos Montes Urais (atual Rússia), atravessaram a Cordilheira dos Cárpatos sob a liderança de um líder tribal chamado Árpad e conquistaram as vastas e férteis planícies da antiga Panônia.

Pagãos e beligerantes, as tribos magiares inicialmente fizeram incursões militares contra o Sacro Império Romano-Germânico, mas após a derrota contundente dos líderes tribais para o exército de Otto I na Batalha de Lechfeld, os magiares gradualmente adotaram uma postura mais pacífica e aberta ao ocidente cristão. À época eles eram liderados por um “grão-príncipe”, eleito dentre os chefes das setes tribos, e, no governo de Géza, da casa de Árpad, houve uma abertura ainda maior para a entrada do Cristianismo entre os magiares, visto que ele se casou com uma cristã chamada Sarolt e, influenciado por ela, veio a se converter à fé cristã e se batizar.

Contudo, caberia ao filho deles, Estevão, dar o passo definitivo para a integração dos magiares e fundação da própria Hungria. Educado desde pequeno na doutrina cristã, Estevão assumiu o poder após a morte de Géza, seu pai, mas sua ascensão ao posto de grão-príncipe foi contestada por seu tio, Koppány, que juntou forças com outros chefes tribais para tomar o poder para si, dando início a uma guerra civil. Em combate, Estevão derrotou seus inimigos e, como rei-guerreiro, reuniu em si todo o poder, outrora repartido entre chefes tribais, e foi coroado como rei da Hungria por volta do ano 1000.

“Coroação de Santo Estevão” — Ignác_Roskovic

Em seu governo a Hungria entrou num processo de incorporação à cristandade medieval, tendo especial importância para isso o casamento de Estevão com Gisela, filha do Duque da Baviera e irmã de Henrique II, Imperador Romano-Germânico. Sob seu reinado a agricultura foi incentivada e preocupou-se em estabelecer medidas de proteção da propriedade privada, além do estabelecimento de um exército permanente e maior abertura à entrada de influências culturais externas, mormente de seus vizinhos germânicos.

Na administração do rei Estevão o cristianismo foi ativamente promovido. Missionários foram despachados para todos os cantos do reino; bispados, abadias e igrejas foram construídos e o paganismo foi desvanecendo diante do raiar da fé cristã entre os magiares.

A casa de Árpad permaneceu no trono da Hungria durante muito tempo sob a sombra da memória de Estevão, que veio a ser chamado de “Santo Estevão da Hungria” após sua canonização no ano de 1083.

2 — Da ascensão no medievo à tragédia em Muhács:

Durante muito tempo o Reino da Hungria viu-se como um posto avançado do cristianismo, estabelecido na fronteira entre o Ocidente cristão e povos pagãos do Oriente e dotado da responsabilidade de ser a primeira linha de defesa de seus irmãos dos reinos mais à oeste.

Em 1301 a dinastia arpadita veio ao fim, sendo coroado rei da Hungria Carlos I, um nobre da dinastia angevina (francesa) natural Nápoles (Itália). A partir daí a coroa húngara passou, de geração em geração, a reis estrangeiros, não oriundos da etnia magiar, o que colocou o reino da Hungria de vez na intricada teia de casamentos e querelas dinásticas europeias, mas também gerou problemas e instabilidades políticas.

No primeiro quarto do século XVI, época em que o protestantismo recém despontara na Alemanha por meio de Martinho Lutero, uma ameaça externa se avizinhava: o afã expansionista do Império Turco-Otomano mirava o continente europeu.

Algumas décadas antes os otomanos haviam destruído o Império Bizantino, tomando para si a milenar Constantinopla, que foi renomeada “Instambul”. Nesse contexto, em 1514, quando reinava sobre a Hungria o rei Vadislau II, o cardeal Tamás Bakócz chegou à Hungria com ordens do Papa Leão X para lançar uma cruzada contra os otomanos (muçulmanos) e logo escolheram György Dósza para liderá-la, posto ser esse um guerreiro de origem nobre com larga experiência marcial, inclusive em batalhas contra os turcos.

Milhares de camponeses reuniram-se sob o comando de Dósza, mas a nobreza exigiu que os trabalhadores retornassem, já que em breve viria o período da colheita; porém, ao invés de obedecerem aos nobres, os camponeses, liderados por Dósza, abandonaram a ideia original de marchar contra os turcos e empreenderam guerra contra os próprios antigos senhores, pleiteando por reformas sociais. Tal rebelião foi debelada à força e com muito custo; os camponeses terminaram derrotados e massacrados, e os seus líderes (inclusive Dósza), cruelmente torturados e executados.

Passado pouco tempo, quando Luís II (filho de Vadislau II) assumiu o governo de uma Hungria enfraquecida por anos de instabilidade política e uma sangrenta rebelião camponesa, o sultão Suleiman, o Magnífico, com suas tropas já nas franjas da Europa Central, enviou um emissário à Hungria para exigir tributos. Insultado, o rei Luís II devolveu apenas a cabeça do emissário ao Sultão, ato que — como se deve imaginar — equivaleu a declarar guerra aos otomanos.

Em 1526 o jovem rei Luís II reuniu suas tropas sob o comando do Arcebispo Pál Tomori e, junto a muitos cavaleiros da alta nobreza húngara, marchou em direção a Mohács, onde haveria de pelejar contra os turcos. Ali as tropas húngaras foram aniquiladas pelas hostes do Sultão: o arcebispo Pál Tomori, sete bispos, vinte e oito príncipes, quinhentos nobres e cerca de vinte mil guerreiros pereceram naquele dia. O rei Luís II até tentou fugir, mas em sua desabalada correria, caiu do cavalo enquanto tentava cruzar um curso d’água e acabou morrendo afogado.

“Battle of Mohács” — Bertalan Székely

Dali Suleiman, o Magnífico, avançou com seus homens pela Bacia dos Cárpatos quase sem resistência, tamanha a devastação que provocara na Batalha de Mohács, conquistando tudo até tomar a capital Budapest, pondo fim a uma era da história da Hungria.

Mas como está no próprio atual Hino da Hungria, composto muito depois (em 1844), Deus haveria de “plantar um pendão no baluarte do turco” e as sementes do evangelho viriam a florescer e dar abençoada colheita na planície húngara: em breve a Reforma Protestante daria novo vigor aos magiares (e esse assunto fica para a PARTE 2).

Autor: Pedro Américo Melo Santos

(O uso e a distribuição deste material é livre, desde que seja feita menção à fonte)

Fontes consultadas:

  • BAUHOFER, János György. History of the Protestant church in Hungary, from the beginning of the reformation to 1850. Trad: James Craig. Londres: James Nisbet and Co., 1854.
  • VARDY, Nicholas A. , Barany, George, Várdy, Steven Béla , Berend, Ivan T. and Macartney, Carlile Aylmer. “Hungary”. Encyclopedia Britannica, 2022.
  • BRITANNICA, The Editors of Encyclopaedia. “Stephen I”. Encyclopedia Britannica, 2021.

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