Que a Vitória do Cristianismo Foi Responsável pela Queda da Antiga Ciência (2009)

Uma tradução das páginas 8–18 do Livro de Ronald L. Numbers, Galileo Goes to Jail and Other Myths about Science and Religion, Capítulo That the Rise of Christianity Was Responsible for the Demise of Ancient Science

Em Defesa da Cristandade
15 min readApr 6, 2024

David C. Lindberg

Encontra-se uma combinação de fatores por trás do “fechamento da mente do Ocidente”: o ataque à filosofia Grega por parte do [apóstolo] Paulo, a adoção do Platonismo por teólogos Cristãos e a aplicação da ortodoxia por imperadores desesperados para manter a ordem. A imposição da ortodoxia andou de mãos dadas com a sufocação de qualquer forma de raciocínio independente. No século V, não só o pensamento racional foi suprimido, mas também houve uma substituição para ele por “mistério, magia e autoridade”.

—Charles Freeman, The Closing of the Western Mind:
The Rise of Faith and the Fall of Reason
(2003)

Em um dia de primavera de 415, como a história é contada, uma multidão enfurecida de fanáticos Cristãos em Alexandria, no Egito, incitada à ação pelo recém-empossado bispo Cirilo, assassinou brutalmente a bela e jovem filósofa e matemática pagã Hipácia. Inicialmente instruída por seu pai, um matemático e astrônomo talentoso, Hipácia passou a escrever seus próprios comentários eruditos sobre textos matemáticos e filosóficos. A sua popularidade e influência — e especialmente a sua defesa da ciência contra o Cristianismo — irritaram tanto o bispo que ele ordenou a sua morte. Versões dessa história têm sido um elemento central da polêmica anti-Cristã desde o início do Iluminismo, quando o livre-pensador Irlandês John Toland escreveu um panfleto exagerado, cujo título diz tudo: Hypatia; or, The History of a Most Beautiful, Most Virtuous, Most Learned and in Every Way Accomplished Lady; Who Was Torn to Pieces by the Clergy of Alexandria, to Gratify the Pride, Emulation, and Cruelty of the Archbishop, Commonly but Undeservedly Titled St. Cyril (1720). De acordo com Edward Gibbon, autor de A História do Declínio e Queda do Império Romano (1776–88), “Hípatia foi arrancada de sua carruagem, despida, arrastada para a igreja e desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o leitor, e de uma tropa de fanáticos selvagens e impiedosos: sua carne foi arrancada de seus ossos com conchas de ostras afiadas, e seus membros trêmulos foram entregues às chamas.” Em alguns relatos, o assassinato de Hipátia marcou o “golpe mortal” na ciência e na filosofia antigas. O ilustre historiador da ciência antiga B. L. Van der Waerden afirma que “depois de Hipácia, a matemática alexandrina chegou ao fim”; em seu estudo da ciência antiga, Martin Bernal usa a morte de Hipátia para marcar “o início da Idade das Trevas Cristã” [1].

A história do assassinato de Hipátia é uma das mais emocionantes de toda a história da ciência e da religião. No entanto, a interpretação tradicional disso é pura mitologia. Como documenta a historiadora tcheca Maria Dzielska numa biografia recente, Hipátia viu-se envolvida numa luta política entre Cirilo, um religioso ambicioso e implacável, ansioso por alargar a sua autoridade, e Orestes, amigo de Hipátia, o prefeito imperial que representava o Império Romano. Apesar de Orestes ser Cristão, Cirilo usou contra ele sua amizade com a pagã Hipátia e acusou-a de praticar magia e bruxaria. Embora tenha sido morta em grande parte da maneira horrível descrita acima — como uma mulher madura de cerca de sessenta anos — a sua morte teve tudo a ver com a política local e praticamente nada a ver com a ciência. A cruzada de Cirilo contra os pagãos veio mais tarde. A ciência e a matemática alexandrinas prosperaram nas décadas seguintes [2].

Os relatos mentirosos sobre a morte de Hipátia e Closing of the Western Mind, de Freeman, citados acima, são tentativas de manter vivo um velho mito: a representação do Cristianismo primitivo como um refúgio de anti-intelectualismo, uma fonte de sentimento anticientífico e um dos principais agentes responsáveis pela queda da Europa para o que é popularmente referido como a “Idade das Trevas”. Evidências de apoio estão disponíveis, embora não sejam abundantes. O apóstolo Paulo (cuja influência na formação das atitudes Cristãs foi, naturalmente, enorme) advertiu os Colossenses: “Estai de sobreaviso, para que ninguém vos engane com filosofias e vãos sofismas baseados nas tradições humanas, nos rudimentos do mundo, em vez de se apoiar em Cristo”. E em sua primeira carta aos Coríntios, ele advertiu: “Ninguém se engane a si mesmo. Se alguém dentre vós se julga sábio […] faça-se louco para tornar-se sábio, porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” [3].

Sentimentos semelhantes foram expressos por vários pais da igreja primitiva, preocupados em combater a heresia e proteger a doutrina Cristã da influência da filosofia pagã. O cartaginês norte-africano Tertuliano (ca. 160–ca. 240), um defensor soberbamente educado e altamente influente da doutrina Cristã ortodoxa, foi sem dúvida o mais franco desses defensores da ortodoxia Cristã. Em sua declaração mais famosa, ele perguntou:

O que de fato Atenas [que pretendia representar a erudição pagã] tem a ver com Jerusalém [representando a religião Cristã]? Que concordância existe entre a Academia [presumivelmente de Platão] e a Igreja? E entre hereges e Cristãos? ... Fora com todas as tentativas de produzir um Cristianismo manchado de composição Estoica, Platônica e Dialética! Não queremos nenhuma disputa curiosa depois de possuirmos Cristo Jesus, nenhuma inquisição depois de desfrutarmos do evangelho! Com a nossa fé, não desejamos mais nenhuma crença. Pois uma vez que acreditamos nisso, não há mais nada em que devamos acreditar. [4]

O contemporâneo de Tertuliano, Taciano (fl. ca. 172), um mesopotâmico falante doo Grego que se dirigiu a Roma, perguntou aos filósofos:

Que coisa nobre você produziu com sua busca pela filosofia? Qual dos seus homens mais eminentes esteve livre de vanglória? [...] Eu poderia rir de todos aqueles que hoje aderem aos princípios [de Aristóteles] — pessoas que dizem que as coisas sublunares não estão sob os cuidados da Providência […] Portanto, não se deixe levar pelas assembleias solenes de filósofos que não são filósofos, que dogmatizam as fantasias grosseiras do momento. [5]

Queixas semelhantes foram expressas por outros críticos do ensino pagão (isto é, não-Cristão).

Mas parar aqui seria apresentar um quadro seriamente incompleto e altamente enganoso. Os próprios escritores que denunciaram a filosofia Grega também empregaram a sua metodologia e incorporaram grandes porções do seu conteúdo nos seus próprios sistemas de pensamento. De Justino Mártir (falecido por volta de 165) a Santo Agostinho (354–430) e além, os estudiosos Cristãos aliaram-se às tradições filosóficas gregas consideradas compatíveis com o pensamento Cristão. A principal dessas filosofias era o Platonismo (ou Neoplatonismo), mas o empréstimo da filosofia Estoica, Aristotélica e Neopitagórica também era comum. Mesmo as denúncias emitidas por canetas Cristãs, quer de posições filosóficas específicas, quer de filosofia em geral, refletiam muitas vezes um domínio impressionante das tradições filosóficas Gregas e Romanas.

Mas o que essas tradições religiosas e filosóficas têm a ver com a ciência? Havia alguma atividade ou corpo de conhecimento na época que pudesse ser identificado como “ciência”? Caso contrário, então o mito, como foi afirmado, é obviamente falso. Mas não nos permitamos escapar tão facilmente. No período que estamos discutindo, haviam crenças herdadas sobre a natureza — sobre as origens e a estrutura do cosmos, os movimentos dos corpos celestes, a natureza dos elementos, a doença e a saúde, a explicação de fenômenos naturais dramáticos (trovões, relâmpagos , eclipses, o arco-íris e assim por diante) — e sua relação com os deuses. Estes são os ingredientes daquilo que séculos mais tarde se desenvolveria na ciência moderna (alguns já eram idênticos aos seus homólogos modernos); e se estamos interessados ​​nas origens da ciência Ocidental, são elas que devemos investigar. Para nomear esses empreendimentos, os historiadores da ciência escolheram uma variedade de expressões — “filosofia natural” e “ciência matemática” sendo as mais comuns. Por uma questão de clareza, escolho referir-me a elas simplesmente como as “ciências clássicas” — isto é, as ciências que descendem da tradição clássica grega e romana — e aos seus praticantes como “cientistas” ou “filósofos/cientistas”.

Como já visto, os escritores Cristãos por vezes expressaram profunda hostilidade para com as ciências clássicas. Tertuliano, que já conhecemos, atacou os filósofos pagãos pela sua atribuição de divindade aos elementos e ao Sol, à Lua, aos planetas e às estrelas. No decorrer de seu argumento, ele desabafou sua ira sobre a vaidade dos antigos cientistas/filósofos gregos:

Agora, por favor, diga-me, que sabedoria há nesse anseio por especulações conjecturais? Que prova nos oferece […] a afetação inútil de uma curiosidade escrupulosa, que é enfeitada com uma engenhosa exibição de linguagem? Serviu, portanto, a Tales de Mileto [filósofo do século VI. AC] com toda a razão, quando, olhando as estrelas enquanto caminhava […], teve a mortificação de cair num poço […] Sua queda, portanto, é um quadro figurativo dos filósofos; daqueles, quero dizer, que persistem em aplicar seus estudos a um propósito vão, já que se entregam a uma curiosidade estúpida pelos objetos naturais. [6]

Mas foi um argumento apresentado por Tertuliano e, num grau muito significativo, ele construiu-o a partir de materiais e através da utilização de métodos extraídos da tradição filosófica greco-romana. Ele argumentou, por exemplo, que a regularidade precisa dos movimentos orbitais dos corpos celestes (uma referência clara às descobertas dos astrônomos Gregos) indica um “poder governante” que os governa; e se forem governados, certamente não podem ser deuses. Ele também introduziu a “visão esclarecida de Platão” em apoio à afirmação de que o universo deve ter tido um começo e, portanto, não pode ele próprio participar da divindade; e nesta e em outras obras ele “exibe triunfantemente” seu aprendizado (como diz um de seus biógrafos) ao nomear uma longa lista de outras autoridades antigas [7].

Basílio de Cesaréia (ca. 330–379), representando um século diferente e uma região diferente do mundo Cristão, revelou atitudes semelhantes em relação às ciências clássicas. Ele atacou duramente filósofos e astrônomos que “deliberadamente e voluntariamente se cegaram para o conhecimento da verdade”. Esses homens, contina ele, “descobriram tudo, exceto uma coisa: eles não descobriram o fato de que Deus é o criador do universo” [8]. Em outro lugar ele perguntou por que deveríamos “nos atormentar refutando os erros, ou melhor, as mentiras dos filósofos Gregos, quando é suficiente produzir e comparar seus livros mutuamente contraditórios” [9].

Ao mesmo tempo, entretanto, que atacava os erros da ciência e da filosofia Gregas — e o que não considerava errôneo, geralmente julgava inútil — Basílio também revelava um sólido domínio do seu conteúdo. Ele argumentava contra o quinto elemento de Aristóteles, a quintessência; ele relatou a teoria Estoica da conflagração e regeneração cosmológica cíclica; ele aplaudiu aqueles que empregam as leis da geometria para refutar a possibilidade de mundos múltiplos (um claro endosso do argumento de Aristóteles a favor da singularidade do cosmos); ele ridicularizou a noção Pitagórica de música das esferas planetárias; e ele proclamou a vaidade da astronomia matemática.

Tertuliano, Taciano e Basílio foram até agora retratados como estranhos à tradição clássica, tentando desacreditar e destruir o que consideravam uma ameaça ao Cristianismo ortodoxo. Certamente alguma de suas retóricas apoia tal interpretação, como quando apelaram à fé simples como alternativa ao raciocínio filosófico. Mas precisamos de olhar para além da retórica e olhar para a prática real; uma coisa é ridicularizar as ciências clássicas e os sistemas filosóficos que as sustentaram, ou declará-los inúteis, outra é abandoná-los. Apesar de seu escárnio, Tertuliano, Basílio e outros como eles estavam continuamente envolvidos em argumentações filosóficas sérias, tomando emprestado a própria tradição que desprezavam. Não é nenhuma distorção da evidência vê-los como membros desta tradição, tentando formular uma filosofia alternativa baseada em princípios Cristãos — oposta não ao empreendimento da filosofia, mas a princípios filosóficos específicos que consideravam erróneos e perigosos.

O mais influente dos pais da igreja e aquele que moldou de forma mais poderosa a codificação das atitudes cristãs em relação à natureza foi Agostinho de Hipona (354–430). Tal como os seus antecessores, Agostinho tinha sérias reservas quanto ao valor da filosofia e da ciência clássicas e à legitimidade da sua prossecução. Mas a sua crítica foi silenciada e qualificada por um reconhecimento, tanto em palavras como em atos, dos usos legítimos que o conhecimento do cosmos poderia ter, incluindo a utilidade religiosa. Então embora Agostinho não se dedicasse à promoção das ciências, também não as temia nas suas versões pagãs, tanto quanto muitos dos seus antecessores o fizeram.

Espalhadas pelos volumosos escritos de Agostinho estão preocupações sobre a filosofia pagã e seu parceiro científico, e advertências aos Cristãos para não supervalorizá-los. Em seu Enchiridion, ele assegurou ao leitor que não há necessidade de

ficar consternado se os Cristãos ignoram as propriedades e o número dos elementos básicos da natureza, ou sobre o movimento, a ordem e os desvios das estrelas, o mapa do céus, os tipos e a natureza dos animais, plantas, pedras, nascentes, rios e montanhas […] Para o Cristão, basta acreditar que a causa de todas as coisas criadas […] é [… ] a bondade do Criador. [10]

Em sua A Doutrina Cristã, Agostinho comentou sobre a inutilidade e vaidade do conhecimento astronômico:

Por certo, muitas pessoas conhecem o curso da lua […] Poucas pessoas conhecem, exatamente e sem erro, o despontar ou o declinar deles, ou qualquer outro movimento de seu ciclo. Ora, por si próprio, esse conhecimento, se bem que não implique nenhuma superstição, é de ajuda pequena ou quase nula para o estudo das Divinas Escrituras, e antes perturbam pela inútil tensão do espírito. E porque ela entretém estreito relacionamento com o erro muito pernicioso dos astrólogos que proclamam alto os destinos ilusórios (fátua futa), é mais recomendável e honesto tê-la como menos apreciável. [11]

E, finalmente, nas suas Confissões, ele argumentou que “por causa desta doença da curiosidade […] os homens passam a investigar os fenómenos da natureza, […] embora este conhecimento não tenha valor para eles: pois desejam saber simplesmente por uma questão de saber” [12]. O conhecimento pelo conhecimento não tem valor e, portanto, deve ser repudiado.

Mas, mais uma vez, esta não é toda a história. Os filósofos cristãos do período patrístico podem não ter valorizado a filosofia ou as ciências pelo seu valor intrínseco, mas disto não podemos concluir que eles negaram às ciências todo o valor extrínseco. Para Agostinho, o conhecimento dos fenômenos naturais adquiria valor e legitimidade na medida em que servia a outros propósitos mais elevados. O propósito mais importante é a exegese bíblica, uma vez que a ignorância da matemática e da história natural (zoologia e botânica) nos torna incapazes de compreender o sentido literal das Escrituras. Por exemplo, somente se estivermos familiarizados com as serpentes é que compreenderemos o significado da admoestação bíblica de “Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas.” (Mateus 10:16). Agostinho também admitiu que partes do conhecimento pagão, como história, dialética, matemática, artes mecânicas e “ensinamentos que dizem respeito aos sentidos corporais”, contribuem para as necessidades da vida [13].

Em seu De Genesi Ad Litteram, onde ele fez bom uso de seu excelente conhecimento da cosmologia grega e da filosofia natural, Agostinho expressou consternação com a ignorância de alguns cristãos:

Mesmo um não-Cristão sabe alguma coisa sobre a terra, os céus e os outros elementos deste mundo, sobre o movimento e a órbita das estrelas e até mesmo sobre o seu tamanho e posições relativas, sobre os previsíveis eclipses do sol e da lua, os ciclos dos anos e das estações, sobre os tipos de animais, arbustos, pedras, e assim por diante, e esse conhecimento ele mantém, como sendo certo pela razão e pela experiência. Agora, é algo vergonhoso e perigoso para um infiel [um não-cristão] ouvir um Cristão […] falando bobagens sobre esses assuntos; e devemos tomar todos os meios para evitar uma situação tão embaraçosa, na qual as pessoas revelam uma vasta ignorância num cristão e riem disso com desprezo. [14]

À medida em que demandamos conhecimento filosófico ou científico dos fenômenos naturais — e Agostinho está certo de que o fazemos — devemos tirá-los das pessoas que o possuem: “Se aqueles que são chamados de filósofos, especialmente os Platônicos, disseram coisas que são de fato verdadeiros e estão bem adaptados à nossa fé, não devem ser temidos; antes, o que eles disseram deve ser tirado deles como se fosse de possuidores injustos e convertido para nosso uso” [15]. Toda verdade é, em última análise, a verdade de Deus, mesmo que seja encontrada nos livros de autores pagãos; e devemos aproveitá-lo e usá-lo sem hesitação.

Na opinião influente de Agostinho, então, o conhecimento das coisas deste mundo não é um fim legítimo em si mesmo, mas como meio para outros fins é indispensável. As ciências clássicas devem aceitar uma posição subordinada como servas da teologia e da religião — o temporal servindo o eterno. O conhecimento contido nas ciências clássicas não deve ser amado, mas pode ser legitimamente utilizado. Esta atitude em relação ao conhecimento científico prevaleceu durante toda a Idade Média e sobreviveu até ao período moderno. A ciência serva de Agostinho foi defendida explicitamente e extensamente, por exemplo, por Roger Bacon no século XIII, cuja defesa do conhecimento útil contribuiu para a sua notoriedade como um dos fundadores da ciência experimental [16].

Dotar o conhecimento científico do estatuto de serva constitui um sério golpe contra o progresso científico? Estarão os críticos da igreja primitiva certos ao vê-la como oponente da ciência genuína? Gostaria de responder a três questões:
(1) É certamente verdade que os pais da igreja cristã primitiva não viam o apoio às ciências clássicas como uma obrigação importante. Estas ciências tinham baixa prioridade para os pais da igreja, para quem as principais preocupações eram (muito apropriadamente) o estabelecimento da doutrina cristã, a defesa da fé e a edificação dos crentes.
Mas (2), a prioridade baixa ou média estava longe de ser prioridade zero. Durante toda a Idade Média e até o período Moderno, a fórmula da serva foi empregada inúmeras vezes para justificar a investigação da natureza. Na verdade, algumas das conquistas mais célebres da tradição científica Ocidental foram realizadas por estudiosos religiosos que justificaram o seu trabalho (pelo menos em parte) apelando à fórmula da serva.
(3) Nenhuma instituição ou força cultural do período patrístico ofereceu mais incentivo à investigação da natureza do que a igreja Cristã. A cultura pagã contemporânea não era mais favorável à especulação desinteressada sobre o cosmos do que a cultura Cristã. Segue-se que a presença da igreja Cristã melhorou, em vez de prejudicar, o desenvolvimento das ciências naturais.

No entanto, não devemos esquecer Tertuliano e a sua feroz oposição às ciências clássicas. Ele não representava um grupo substancial de oponentes declarados das ciências clássicas? Não tanto quanto o registro histórico diz. É preciso trabalhar duro para encontrar passagens adequadas nos escritos de Taciano, Basílio e outros que denigrem a filosofia clássica. E mesmo então a retórica deles estava muitos decibéis abaixo da de Tertuliano; além disso, a sua oposição era a aspectos da tradição clássica que pouco tinham a ver com as ciências clássicas. Dezenas de pais da igreja e seus homólogos nos séculos posteriores lutaram com aspectos da filosofia clássica, tentando reconciliá-la com os ensinamentos bíblicos e a teologia Cristã ortodoxa; mas quando se tratava das ciências clássicas, a grande maioria aderiu a Agostinho: aborde as ciências clássicas com cautela; tema-os se for necessário, mas coloque-os para trabalhar como servos da filosofia e da teologia Cristã, se puder. Assim, para ser franco, os estudiosos que desejavam demonstrar a hostilidade Cristã para com as ciências clássicas basearam a sua argumentação em Tertuliano porque ele era a sua única exposição relevante e suficientemente hostil. Foi a voz simpática de Agostinho que prevaleceu na prática das ciências desde o período patrístico, passando pela Idade Média e além.

Agostinho praticou o que pregou? O que ele fez é melhor ilustrado no seu De Genesi Ad Litteram, onde produziu uma interpretação versículo por versículo do relato bíblico da criação tal como aparece nos três primeiros capítulos de Gênesis. No decorrer deste trabalho de sua maturidade, Agostinho fez uso abundante das ciências naturais contidas na tradição clássica para explicar a história da criação. Aqui encontramos ideias greco-romanas sobre relâmpagos, trovões, nuvens, vento, chuva, orvalho, neve, geada, tempestades, marés, plantas e animais, matéria e forma, os quatro elementos, a doutrina do lugar natural, estações, tempo, o calendário, os planetas, o movimento planetário, as fases da lua, a influência astrológica, a alma, a sensação, o som, a luz e a sombra e a teoria dos números. Apesar de toda a sua preocupação em supervalorizar a tradição científica/filosófica Grega, Agostinho e outros como ele aplicaram a ciência natural Greco-Romana com força total à interpretação bíblica. As ciências não devem ser amadas, mas utilizadas. Esta atitude em relação ao conhecimento científico floresceria ao longo da Idade Média e até ao período Moderno. Se não fosse esta perspectiva, os europeus medievais teriam certamente menos conhecimento científico, e não mais.

Notas

Epígrafo: Charles Freeman, The Closing of the Western Mind: The Rise of Faith and the Fall of Reason (Knopf, 2003), xviii–xix.

[1] Maria Dzielska, Hypatia of Alexandria, trans. F. Lyra (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1995), 2 (Toland), 11 (deathblow), 19 (Gibbon), 25 (Van der Waerden), 26 (Bernal). Sou grato a Ron Numbers por sua ajuda com o material sobre Hipátia.

[2] Dzielska, Hypatia, passim.

[3] Colossensses 2:8, [O autor usou a New English Bible, o tradutor usou a Bíblia Católica]; 1 Coríntios 3:18–19 [O autor, novamente, usou a New English Bible, o tradutor usou a Bíblia Católica].

[4] Tertuliano [“Tertullian”], em The Ante-Nicene Fathers, ed. Alexander Roberts & James Donaldson; rev. A. Cleveland Coxe (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1986), 246b.

[5] Ibid., 133a.

[6] Timothy David Barnes, Tertullian: A Historical and Literary Study, rev. ed. (Oxford: Clarendon Press, 1985), 196.

[7] Emmanuel Amand de Mendieta, “The Official Attitude of Basil of Caesarea as a Christian Bishop towards Greek Philosophy and Science,” em The Orthodox Churches and the West, ed. Derek Baker (Oxford: Blackwell, 1976), 38, 31, e 37.

[8] Basílio [“Basil”], Homilies on the Hexameron, em A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, ser. 2, ed. Philip Schaff & Henry Wace, 14 vols. (New York: Christian Literature Co., 1890–1900), 8:54.

[9] Ibid., 8:70.

[10]. Agostinho [“Augustine”], Confessions and Enchiridion, trans. Albert C. Outler (Philadelphia: Westminster, 1955), 341–42.

[11]. Agostinho, On Christian Doctrine, trans. D. W. Robertson, Jr. (Indianapolis: Bobbs- Merrill, 1958), 65–66 (o tradutor usou de base A Doutrina Cristã da Editora Paulus).

[12] Agostinho, Confessions, trans. F. J. Sheed (New York: Sheed and Ward, 1942), 201, ligeiramente editado.

[13] Agostinho, On Christian Doctrine, 74.

[14] Agostinho, Literal Meaning of Genesis, trans. John Hammond Taylor, S.J., em Ancient Christian Writers: The Works of the Fathers in Translation, ed. Johannes Quasten, W. J. Burghardt, and T. C. Lawler, vols. 41–42 (New York: Newman, 1982), 42–43.

[15] Agostinho, On Christian Doctrine, 75.

[16] Sobre Bacon, ver David C. Lindberg, “Science as Handmaiden: Roger Bacon and the Patristic Tradition,” Isis 78 (1987): 518–36.

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Ad Veritas | Traduzo livros e artigos envolvendo a história eclesiástica.