E se a dor for minha sina ... ?

A vida cristã não está isenta de sofrimentos, mas possibilita uma compreensão mais amena sobre ele, a de que há um Senhor sobre todas coisas e de que toda dor é por enquanto.

M. Thiago Carvalho
4 min readNov 20, 2017
M. Van Heemskerck, The torments of Job under a swirling sky dominated by God [1563].Engraving

"[...] Senhor, eu preferiria não sofrer; todavia, se posso te honrar mais por meio do sofrimento e se a perda de todas as minhas coisas terrenas trará glória para Ti, então, que o sofrer seja a minha porção. Recuso a consolação, se esta se coloca à frente de tua honra". [1]

A primeira frase no trecho do reverendo batista C. H. Spurgeon reverbera em nossos corações. "Senhor, eu preferiria não sofrer", dizemos em nossas preces. Alguns cristãos mais afeitos às práticas (neo)pentecostais não hesitam em proferir incisivos "eu não aceito" isso ou "eu não admito" aquilo.

Tais comportamentos (em especial, os neopentecostais) comunicam duas coisas importantes para nossa a reflexão. A primeira é que nossas orações evidenciam a distorção de querermos um deus a nosso serviço, decretando como ele deve agir [2]. A segunda é mais sensível: não gostamos de sofrer, e evitamos a todo custo passar por isso.

Mas, Nosso Senhor adverte: "no mundo tereis aflições" (Jo 16:33). Cedo ou tarde – para alguns, cedo demais até – o sofrimento implacável chega e aflige sem piedade. Matthew Henry, em seu comentário sobre o sofrimento de Jó, vai além, ao perceber que:

"[...] Por mais que tenhamos bebido do cálice da amargura, enquanto estivermos neste mundo não poderemos estar seguros de que já bebemos [toda] a nossa parte e que a aflição se afastará de nós" [3].

As palavras do comentarista puritano me chamam atenção, pois, apesar de livros e filmes vários trazerem um final feliz, há filmes e livros e vidas em que ele nunca chega. Vidas em que a reconfortante metáfora das estações não se aplica, pois a primavera nunca vem, e tudo é um esforço contínuo para sobreviver aos intermináveis e gélidos ventos de inverno. Que fazer diante disso?

Me parece que a "solução" é perceber, urgentemente, que a vida cristã não está isenta de sofrimentos, mas possibilita uma compreensão mais amena sobre ele, a de que há um Senhor sobre todas coisas e de que toda dor é por enquanto.

Saber que há alguém, bondoso e soberano, que controla todas as coisas muda a percepção que temos sobre angústias e aflições.

"Os reformadores não apresentam uma 'resposta' mais adequada ao problema do mal do que os profetas ou apóstolos. Em vez disso, indicam-nos o Deus que subsiste em meio às provações, o Deus que não apenas 'faz alguna coisa', mas que, de fato, 'está ai' em sua compaixão soberana, o Deus que permanece ao nosso lado e segue à nossa frente, que promete nunca nos abandonar, mesmo – especialmente – quando todos os indícios mostram o contrário". [4]

De todos os reformadores, ao meu ver, João Calvino talvez seja o que melhor tenha percebido a dimensão providencial de Deus no sofrimento. Ele escreve:

"Quando o Filho de Deus vestiu nossa carne, também concordou voluntariamente em vestir as emoções humanas. [...] Nisso provou ser nosso irmão, para que pudéssemos saber que temos um Mediador que de boa vontade perdoa e está pronto para socorrer as enfermidades que experimentou em si mesmo". [5]

Não importa o quanto dure ou o quão doloroso seja o sofrimento, podemos ter a certeza de que não padecemos sós. Perseguimos incansavelmente a promessa de que Ele, o Senhor soberano sobre todas as coisas, pessoalmente enxugará de nossos olhos todas as lágrimas (Ap 21:4). Isso nos dá força para adentrar noites escuras com a certeza de que haverá um amanhecer e nossos corações encontrarão o conforto que, desse lado do trovão, não há.

"E se a dor for minha sina,
será que ainda faço rima,
canto alegre a melodia?
E se eu perdesse tudo, será que, contudo, me alegraria em Deus?

Eu quero ser, não quero ter
Eu quero crer, não quero ver

Que minha alegria seja tão somente me lembrar de Ti, meu Deus!
Viver, e só de Ti viver. Morrer ansioso por Te ver
É minha oração, é assim que eu queria ser". [6]

[1] C. H. Spurgeon, Do trono na Glória até a Cruz
[2] Isabelle Ludovico, Uma reforma interior, in: Maurício Zágari, org., Uma Nova Reforma (São Paulo: Mundo Cristão, 2017), p. 82
[3] Matthew Henry, Comentário Bíblico - Antigo Testamento: Jó a Cantares de Salomão, v. 3 (Rio de Janeiro: CPAD, 2015), in loco
[4] Timothy George, Teologia dos Reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1994; 7ª reimpr., 2013), p. 309
[5] David W. Torrance e Thomas F. Torrance, eds., Calvin’s New Testament Commentaries, v. 5 (Grand Rapids: Eerdmans, 1959-70), p. 12
[6] Stênio Marcius, E Se

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M. Thiago Carvalho

Estudante de Direito e Filosofia (Universidad Nacional de La Plata, Buenos Aires). Escreve sobre Filosofia, Teologia Reformada, Política, Artes e temas afins.