Lembra-te do dia de Sábado

O sábado não é uma questão doutrinária, mas existencial. Em tempos velozes, necessitamos, mais do que nunca, repensar o descanso e o cultivo da dimensão relacional da vida.

M. Thiago Carvalho
7 min readNov 26, 2017

“Parar, silenciar e celebrar nos liberta da tirania do Chronos, esse tempo que vai em direção à nossa morte para experimentar um vislumbre da eternidade, o tempo da plenitude”. [1]

Palavras podem ser usadas de maneira convencional e comum, mas também se pode empregá-las de forma imaginativa, quase lúdica, e isso comunica muito acerca de nossas perspectivas sobre a realidade [2]. Assim, o uso (e o não uso proposital) de algumas expressões diz muito sobre percepções de determinadas facetas da vida.

Vide, por exemplo, a relativa reprovação pública do uso da palavra “paróquia” em contextos prórpios do evangelicalismo brasileiro. Em que pese o fato da terminologia "paróquia" ser comumente utilizada no contexto católico-romano, seu significado é mais secular que se imagina. Derivada do grego 'paroikhía,as’, se refere a uma espécie de unidade administrativa, que pode ser eclesiástica ou simplesmente civil – como no estado de Louisiana, no sul dos EUA. Portanto, não se preocupe: ir a uma paróquia não lhe transformará em um romanista.

No entanto, meu ponto é que esses "preconceitos linguísticos" (por assim dizer) demonstram nossa incapacidade ou mero desinteresse em lidar com questões importantes da vida cristã. A busca pela autoafirmação e o consequente medo de nos assemelharmos com aqueles com quem não partilhamos da mesma perspectiva, faz com que deixemos de fora de nossos púlpitos temáticas importantes para nossa vivência social.

Não falamos (tanto quanto deveríamos) de catolicidade da igreja por receio de parecermos ecumênicos demais; não discutimos teologia pública para não dar voz aos adeptos da missão integral; não tratamos devidamente as questões de gênero para não tropeçar em um liberalismo teológico; e não falamos da observância do sábado porque passamos longe do sabatismo. Mas, quero, após essa longa introdução, discorrer sobre esse último tema: o Shabāt (‘שבת’)

Nos Mandamentos dados pelo próprio Deus a Moisés consta o seguinte:

"Lembra-te do dia de sábado para o santificar” (Ex 20:8-11; Dt 5:12-15).

De todos os itens do Decálogo, penso ser esse o mais controverso. Há consenso entre os diversos ramos do Cristianismo acerca da idolatria, do homicídio, da obediência aos pais. Quanto à questão do Sábado, damos com uma miríade de interpretações – algumas criativas demais até, eu diria.

Os chamados "sabatistas", como judeus ortodoxos e adventistas, sustentam que se deve guardar literalmente o sétimo dia. Outros afirmam que o cristão não necessita guardar qualquer dia específico, vez que superamos a antiga aliança e todos os dias são igualmente santos. Ademais, dentre os que acreditam que o Dia do Senhor é o domingo, nem todos assumem este dia como um “santo repouso”. E há, ainda, os que não vêem nenhuma utilidade ou relevância no mandamento bíblico sobre o Sábado.

Entretanto, não pretendo divagar em análises exegéticas. Tenho certa afeição pela filologia e o estudo da hermenêutica, mas aqui não há espaço para tal. Contudo, no Sermão do Monte nos é apresentado um “método” interessante de interpretação da Lei. Vejamos o conteúdo de Mateus 5:

"21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. 22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento [...]. 27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. 28 Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela [...]. 33 Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. 34 Eu, porém, vos digo: de modo algum jureis [...]. 38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. 39 Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso [...]. 43 Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. 44 Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem".

“Ouviste o que foi dito … Eu, porém, vos digo …”. Essa construção repete-se diversas vezes nesse trecho do Sermão do Monte. Após terminar sua exposição sobre as bem-aventuranças, para nos lembrar quem somos (enquanto cristãos), Nosso Senhor Jesus inaugura, no versículo 17, uma nova seção de seu discurso, na qual Ele explica que nosso agir deve manifestar que somos e como se faz isso. Porém, como observa D. M. Lloyd-Jones [3], Jesus inicia com um disclaimer ao dizer que (i) tudo quanto ensinaria dali em diante estava em perfeita harmonia com a Lei e os Profetas (v. 17, 18), e que, exatamente por isso, (ii) Sua doutrina confrontava os ensinos de fariseus e escribas (v. 19, 20).

Essas ressalvas estabelecidas por Jesus anulam, de pronto, duas alternativas em nossa reflexão sobre o Sábado. Primeiramente, não podemos ter uma perspectiva antinomianista e pensar que a Lei, ante a Graça, perde totalmente sua utilidade. Sobre isso, a Confissão de Fé de Westminster nos oferece uma excelente orientação:

"Embora os verdadeiros crentes não estejam debaixo da lei como um pacto de obras, para serem por ela justificados ou condenados, contudo ela lhes serve de grande proveito, como aos demais; informando-lhes, como regra de vida, a vontade de Deus e o dever que eles têm, ela os dirige e os obriga a andar segundo a retidão [...]". [4]

A outra possibilidade anulada é a do legalismo, no qual a relação com Deus deixa de balizar-se na graça divina e se torna troca (Rm 4:4-5) e, ao invés de libertar e trazer descanso, aprisiona a consciência a preceitos humanos (Cl 2:20-22).

Como dito acima, Cristo apresenta o “método” mais adequado para a interpretação da Lei Mosaica. Ele tira fora o aparato procedimental e apresenta uma aplicação principiológica da Lei ao coração humano. Se a Lei dizia que não se pode matar, o Mestre diz que aquele que se irar contra seu semelhante, está sujeito a julgamento; se a Lei dita pena para quem for flagrado em adultério (Dt 22:22–24), o Mestre diz que o que é possível se adulterar no coração. Então, questionamos, qual a principiologia da observância do sábado?

Ora, o Senhor do Sábado (Mt 12:8) ensinou que o sábado é para abençoar o próximo, é ordenança de Deus para benefício do homem (Mt 12:1-14; Mc 2:27). Também o, o sábado é para se aproximar de Deus, pois Jesus ia à sinagoga aos sábados para prestar culto, além de ler e ensinar as Sagradas Escrituras (Mc 1:21; Lc 4:16). Assim, o sábado deixa de ser uma questão eminentemente doutrinária e passa a ser uma questão essencialmente existencial. Em tempos velozes, necessitamos, mais do que nunca, repensar o descanso e o cultivo da dimensão relacional da vida.

Zygmunt Bauman (1925–2017), em uma entrevista ao la Repubblica em novembro de 2012, falou sobre a “tentação da tentação” (um conceito do francês Emmanuel Levinas (1906–95), pertencente a tradição filosófica continental) como um mecanismo atual de escape da rotina. Segundo Bauman, desejamos o estado do “ser tentado” e não o objeto que a tentação promete e entregar, pois, nesse estado, olhamos para além da rotina e sentimo-nos livres. Todavia, se cedermos, a liberdade (ou a sensação dela) desaparece e voltamos (ou passamos) ao marasmo de uma nova rotina.

“Nada há de novo debaixo do sol” (Ec 1:9), disse o Pregador, e por estarmos acostumamos a correr atrás de objetos descartáveis, que são substituídos velozmente, estamos fadados a “correr atrás do vento”. Então, só assim percebemos que, de fato, o descanso é uma questão existencial.

“[…] O mandamento do sábado não é arbitrário ou caprichoso. […] O sábado é um dia santo, especialmente separado para atos de devoção a Deus. É também um sinal que aponta para o futuro, para um tempo de descanso final na consumação de todas as coisas (Hb 4). […] O sábado expressa também a ideia de viver à luz da nossa esperança de um descanso final, celebrando a bondade divina e honrando a Deus na expectativa que ele cumpra sua promessa de descanso. Toda a nossa vida deve ser a encarnação da ampliação desses princípios” [5].

A observância do sábado é um convite a tirar um tempo de celebração, quietude, contemplação e presença, bem como um limite à nossa voracidade e insatisfação que nos leva a querer sempre mais. É a oportunidade de atentar para os lampejos da beleza desse mundo que, cotidianamente, escolhemos ignorar.

Ao fim, seja no sábado, ou no domingo ou em qualquer outro dia da semana que lhe parecer oportuno, descanse. Festeje a vida ao redor da mesa na companhia da família e cultive a comunhão com os irmãos de sua “paróquia”. Contemple a glória anunciada nas obras da Criação e anseie por respirar o ar de um novo Lar. Sobretudo, lembremos que o santo repouso é o prenúncio de uma eternidade com o Autor de toda a beleza, o único que pode nos proporcionar o completo e verdadeiro descanso que na Terra jamais encontraremos.

[1] Isabelle Ludovico, Uma reforma interior, in: Maurício Zágari, org., Uma Nova Reforma (São Paulo: Mundo Cristão, 2017), pp. 81-2

[2] Vern S. Poythress, Teologia Sinfônica (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 67

[3] D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte (4.ed. São José dos Campos, SP: Fiel, 1999), pp. 169–70

[4] Confissão de Fé de Westminster, XIX, VI

[5] Poythress, op. cit., p. 39

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M. Thiago Carvalho

Estudante de Direito e Filosofia (Universidad Nacional de La Plata, Buenos Aires). Escreve sobre Filosofia, Teologia Reformada, Política, Artes e temas afins.