Minhas ovelhas jamais perecerão
Do fim ao cabo, a doutrina da preservação dos santos é o eco de da boa nova de que a salvação pertence ao Senhor
Nós acreditamos na segurança eterna dos santos […] porque eles são de Cristo, e Ele nunca perderá as ovelhas que Ele comprou com o Seu sangue e recebeu de Seu Pai. [1]
Após compartilhar vários textos sobre algumas inquietações que tenho acerca da vida cristã e suas dimensões, inicio hoje uma micro-série de textos. Falo ‘micro’ porque será uma sequência de apenas dois textos. Talvez, uma tentativa de escrever séries maiores sobre temas mais amplos.
Por hora, os textos serão sobre os dois pontos (considerados) mais “polêmicos” do Calvinismo. A escolha do tema é motivada pela sugestão de uma querida amiga e, também, por um intento pessoal meu de dar ênfase à faceta mais devocional do sistema calvinista — que quase sempre se perde em infindáveis debates. Inclusive, antes de adentrar essa controvérsia, achei por bem escrever minha posição sobre o tema no texto O esforço pelo vínculo da paz. Disclaimer feito, podemos passar ao mérito do assunto, digo, à introdução dele.
Uma breve olhada na história da Igreja
A história do Cristianismo está marcada por divergências sobre temas pontuais da Bíblia e, seguramente, o âmbito da soteriologia é o que congrega um dos maiores debates: Calvinismo e Arminianismo. Um evento que tornou-se ícone dessa controvérsia foi o Sínodo de Dort, ocorrido em 1619, na cidade de Dordrecht (usualmente chamada Dort). Sobre a gênese da divergência, o Rev. Alderi Souza de Matos, ministro presbiteriano e doutor em História da Igreja, escreve:
A fé reformada teve grande aceitação nos Países Baixos a partir da década de 1550. Na mesma época em que os holandeses lutavam contra a Espanha por sua independência, surgiu a Igreja Reformada Holandesa (1571), que não tinha uma identidade teológica claramente definida. Foi nesse contexto que, alguns anos mais tarde, surgiu a controvérsia arminiana. A partir de 1588, Jacó Armínio (1560–1609), um pastor que havia estudado com Teodoro Beza em Genebra, começou a questionar a doutrina calvinista da predestinação. Mesmo assim, em 1602 ele se tornou professor de teologia na Universidade de Leyden, onde enfrentou a forte oposição de seu colega Francisco Gomaro [2].
Vítima de tuberculose, o professor Armínio faleceu prematuramente em 1609. No ano seguinte, seus simpatizantes publicaram um documento no qual resumiram em cinco pontos a sua rejeição do calvinismo clássico. Acerca do protesto, segue um trecho abaixo:
Logo após a morte de Arminius, seus simpatizantes apresentaram aos Estados-Gerais um notável documento que veio a ser conhecido como a Remonstrância. […] A Remonstrância criticava doutrinas calvinistas porque elas “não estavam contidas na Palavra de Deus nem no Catecismo de Heidelberg, e não são edificantes — são até mesmo perigosas — e não deviam ser pregadas ao povo cristão”. [3]
Com os tumultos resultantes do protesto, o Parlamento holandês convocou um sínodo para resolver a controvérsia. O Sínodo de Dort, que durou de novembro de 1618 a maio de 1619, teve 180 sessões e contou com a presença de 58 pastores e presbíteros enviados pelos sínodos provinciais holandeses e cinco teólogos de diferentes academias. Também compareceram 28 teólogos de diversas cidades da Inglaterra, Escócia, Alemanha e Suíça (inclusive de Genebra). Os remonstrantes participaram do sínodo por algum tempo, mas depois foram afastados.
Ao fim do Sínodo, as delegações condenaram as ideias arminianas e reafirmaram as convicções reformadas. Foi então que uma Comissão de nove membros redigiu o que ficou conhecido como Cânones de Dort. Esse documento foi responsável por sintetizar a soteriologia calvinista nos famigerados “Cinco Pontos”.
Uma vez salvo, salvo para sempre?
Ao lado da doutrina da Expiação Limitada — que será tratada no próximo texto — o ponto da Perseverança dos Santos é uma perspectiva interpretativa que faz muitos “torcerem o nariz”. De seminaristas aos “leigos” que tomam contato com a ótica calvinista sobre as Doutrinas da Graça, o quase clichê “uma vez salvo, salvo para sempre” soa, no mínimo, estranho. No entanto, o escopo aqui é justamente clarificar essa doutrina.
Para iniciar a apresentação, comecemos com o Catecismo Maior de Westminster, que afirma o seguinte:
Os crentes verdadeiros, em razão do amor imutável de Deus e do seu decreto e pacto de lhes dar a perseverança, da união inseparável entre eles e Cristo, da contínua intercessão de Cristo por eles e do Espírito e semente de Deus permanecendo neles, nunca poderão total e finalmente cair do estado de graça, mas são conservados pelo poder de Deus, mediante a fé para a salvação. [4]
O trecho do Catecismo de Westminster é interessante porque apresenta, de maneira sistemática, os pontos cruciais da doutrina da preservação dos santos, o que desfaz alguns “espantalhos” que são criados — por desconjecimento ou desonestidade. Assim, esclareceremos ponto a ponto essas questões.
O amor imutável de Deus e seu decreto
A princípio, é importante reformular a ideia conceitual de salvação que, segundo a soteriologia calvinista, não se processa mediante a aceitação do homem ou um gesto público perante uma congregação, mas, com base no decreto de Deus. Assim reza o Catecismo de Westminster:
Deus, por um decreto eterno e imutável, unicamente do seu amor e para patentear a sua gloriosa graça, que tinha de ser manifestada em tempo devido, […] em Cristo, escolheu alguns homens para a vida eterna e os meios para consegui-la; e também, segundo o seu soberano poder e o conselho inescrutável da sua própria vontade (pela qual Ele concede, ou não, os seus favores conforme lhe apraz), deixou e predestinou os mais à desonra e à ira, que lhes serão infligidas por causa dos seus pecados, para patentear a glória da sua justiça. [5]
Dentre as várias referências elencadas como base para essa afirmativa, destacamos a afirmação de Paulo de que “[…] somos feitura d’Ele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2:10). Noutra carta, Paulo afirma: “[…] Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts 2:13,14).
É importante compreender essa perspectiva da salvação, pois um equivoco comum é pensar que a preservação dos santos aplica-se indistintamente a todo que diz ter “aceitado a Jesus”. Na verdade, apenas os eleitos de Deus são preservados pelo Espírito. “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho […]. E aos que predestinou […] a estes também glorificou” (Rm 8:29,30).
Crentes verdadeiros
“ — Então, posso viver da maneira que eu quiser e, ainda assim, estarei salvo?” Esse questionamento é sempre lançado por quem se surpreende ou discorda da doutrina da preservação dos santos. Ocorre que o Catecismo de Westminster é claro ao afirmar que “os crentes verdadeiros […] são conservados pelo poder de Deus, mediante a fé para a salvação”. Aqui é interessante inserir um trecho de Tiago 2, quando o autor disserta sobre a “visibilidade” da fé:
Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? […] Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta. Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei a minha fé (Tg 2:14; 17, 18).
Diametralmente oposto a quem advoga a salvação por obras (ou uma associação entre fé e obras), Tiago demonstra que a fé é visível através de boas obras, ou seja, as boas obras não produzem salvação, mas os verdadeiramente salvos praticam boas obras. Assim, aquele que pretende viver uma vida imersa na pratica deliberada do mal, mostra claramente que não é salvo.
Não se pode cair “total e finalmente” da graça
Outro ponto importante a ser clarificado é que a doutrina da preservação dos santos nega a possibilidade de queda “total e final” da graça, ou seja, remanesce ainda a probabilidade de queda “parcial e temporária” da graça. Nesse sentido, os Cânones de Dort esclarecem o seguinte:
O poder de Deus, pelo qual ele confirma e preserva os verdadeiros crentes na graça, é tão grande que isto não pode ser vencido pela carne. Mas os convertidos nem sempre são guiados e movidos por Deus, e assim eles poderiam, em certos casos, por sua própria culpa, desviar‑se da direção da graça e ser seduzidos pelos desejos da carne e segui‑los. Devem, portanto, vigiar constantemente e orar para que não caiam em tentação. Quando não vigiarem e orarem, eles podem ser levados pela carne, pelo mundo e por Satanás para sérios e horríveis pecados. Isto ocorre também muitas vezes pela justa permissão de Deus. A lamentável queda de Davi, Pedro e outros santos, descrita na Sagrada Escritura, demonstra isso. [6]
Noutro trecho, os Cânones explicam, ainda, que não é pelos próprios méritos ou força dos eleitos, mas pela imerecida misericórdia de Deus que eles não caem totalmente da fé e da graça e nem permanecem caídos ou se perdem definitivamente. Afinal, se a preservação dependesse dos eleitos, certamemte falhariam. Mas, da parte de Deus, a quem pertence a salvação, isso jamais pode ocorrer, “pois seu decreto não pode ser mudado, sua promessa não pode ser quebrada, seu chamado em acordo com seu propósito não pode ser revogado. Nem o mérito, a intercessão ou a preservação de Cristo podem ser invalidados, e a selagem do Espírito tampouco pode ser frustada ou destruída” [7].
Por esses artigos dos Cânones, podemos compreender que a doutrina da perseverança dos santos não extingue a possibilidade de que eleitos caiam em pecado, mas assegura que, por obra do Deus Triúno, eles não se perderão “total e finalmente”.
O Bom Pastor não perderá suas ovelhas
Depois de (tentar) esclarecer alguns equivocos sobre a doutrina da perseverança (ou preservação) dos santos, finalmemte, podemos mostrar sua dimensão devocional, que se aplica ao coração humano. E a grande verdade sobre a segurança da salvação é resumida por Cristo, ao dizer o seguinte:
“As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar” (Jo 10: 27–29).
Ao comentar o texto de João 10:28, Calvino escreve:
É o fruto incomparável da fé que Cristo nos ordena estarmos seguros e tranquilos quando somos trazidos pela fé até seu redil. […] Essa é uma passagem marcante, que nos ensina que a salvação de todos os eleitos é tão certa quanto o poder de Deus é invencível. […] Estamos cercados por inimigos poderosos, e tão grande é nossa fraqueza que não estamos longe da morte a todo momento. Mas aquele que guarda o que nos comprometemos com ele é maior e mais poderoso do que todos e, assim, não temos nada a temer [8].
Não temos nada a temer, pois temos por certo de que Ele, “sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou […] e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2:4–6), é poderoso para guardar o nosso depósito até àquele dia (2Tm 1:12). A certeza de que somos preservados por Cristo nos traz paz e segurança, ao nos mostra que não estamos agarrados a Cristo, a depender de nossas forças, mas, sim, seguros em suas poderosas mãos. Não somos reféns de nossas instáveis vontades, mas mantidos a salvos na invencibilidade de Seu Amor duradouro e constante. E se, porventura, tropeçarmos na caminhada e perdermos o caminho de casa, o Bom Pastor busca e salva ao perdido.
Sobretudo, essa certeza “é a verdadeira raiz da humildade, reverência filial, verdadeira piedade, paciência em toda luta, orações fervorosas, firmeza em carregar a cruz e confessar a verdade e alegria sólida em Deus” [9].
[1] Charles H. Spurgeon, The safest place, in loco, tradução livre
[2] Alderi Souza de Matos, História da Igreja: Os Cânones de Dort (1619), in loco.
[3] Centro Apologético Cristão de Pesquisas, O Sínodo de Dort, in loco
[4] Catecismo Maior de Westminster, pergunta nº. 79
[5] CMW, pergunta nº. 13
[6] Cânones de Dort, capítulo 5, artigo 4º
[7] Cânones de Dort, 5, 8º
[8] David W. Torrance & Thomas F. Torrance, eds., Calvin’s New Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1959-1970), v. 4, p. 273, tradução livre
[9] Cânones de Dort, 5, 12