Crítica — Black Mirror: Bandersnatch

Thiago Baptista
12 min readJan 11, 2019

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Netflix, 2018
Dirigido por: David Slade
Escrito por: Charlie Brooker

Gênero: ficção interativa, ficção científica
Plataformas: Netflix
Avaliação: 2 estrelas (de 5)

Essa é a história de um homem chamado Stanl… digo, Stefan

Black Mirror é uma série insuportável. De um luddismo que faria inveja a tecelões ingleses do séc. XIX, todo capitulo dessa série é um libelo contra a tecnologia, repleto de clichês, juízos de valor e tramas mal aproveitadas.

É, no entanto, bastante popular, e a notícia de que seus produtores lançariam uma ficção interativa com o selo Black Mirror — em uma plataforma de massas como o Netflix, ainda por cima! — provocou em nós amantes do gênero a esperança de que ele viria a abrir muitas portas.

E é bem excitante pensar que essa obra possa ser só a primeira de muitas. Imaginem só, uma produção Netflix baseada no Rainy Day, da Thais Weiller! Ou mesmo nos livros-jogos da série Choose Your Own Adventure (publicados aqui no Brasil pelo selo Enrola e Desenrola, da Editora Ática), filmados em uma nostalgia algorítmica no estilo de Stranger Things!

A excitação terá talvez que esperar, já que — como em um autêntico episódio de Black Mirror — uma tecnologia que poderia expandir horizontes e trazer experiências inéditas acaba se reduzindo a uma desculpa boboca para nos aprisionar numa trama rasa que se pretende filosófica.

Escrita pelo showrunner Charlie Brooker, a obra é uma ficção interativa onde, em momentos chave da trama, o espectador/jogador é chamado a tomar uma decisão, geralmente escolhendo entre duas opções. É preciso fazer essa escolha dentro de dez segundos, ou a escolha “padrão” é selecionada. As decisões afetam a história, que vão se acumulando até que ela seja levada a um dos vários desfechos possíveis.

Como num livro-jogo “Escolha Sua Aventura”, a mecânica central gira em torno de tomar decisões dentre as opções apresentadas.

Black Mirror: Bandersnatch conta a história de Stefan Butler (Fionn Whitehead), um jovem desenvolvedor de jogos inglês em 1984, que tem como projeto adaptar o livro-jogo homônimo, escrito pelo controverso Jerome F. Davies (Jeff Minter, um desenvolvedor indie na vida real), em um jogo de computador. Ele vive com seu pai, Peter Butler (Craig Parkinson), um viúvo cuja relação com o filho, apesar de bem intencionada, é problemática. Por insistência do pai, o jovem, ainda, frequenta sessões de terapia com a Dr.a Haynes (Alice Lowe), que o mantém sob medicamentos.

Seus esforços acabam chamando a atenção de Mohan Thakur (Asim Chaudhry), diretor da desenvolvedora de jogos Tuckersoft, que oferece a Stefan a chance de ter seu jogo produzido pela empresa. O burocrata, entretanto, quer o jogo pronto o mais rápido possível, para que ele possa botar em prática sua visão de transformar a empresa numa “fábrica de sucessos”. Ao se dirigir à sede da empresa para apresentar seu projeto, Stefan conhece Colin Ritman (Will Poulter), um desenvolvedor de jogos famoso e com uma visão cínica de seu ofício. Stefan já jogara todos os jogos de Colin, e o desenvolvedor mais experiente acaba se tornando como um mentor para ele.

Stefan, o protagonista, que se vê cada vez mais “sem escolhas”.

É então que, fazendo escolhas como aceitar a proposta de Thakur ou não, seguir o tratamento médico ou não, fugir da terapia com a ajuda de Colin ou não, Stefan acaba se afundando cada vez mais no desespero e na paranoia. Finalizar o jogo de modo que ele obtenha uma avaliação positiva da crítica se torna sua obsessão, enquanto ele se dá conta de que suas escolhas podem não ser dele mesmo. Dependendo do caminho escolhido pelo jogador/espectador, Stefan pode se ver envolto em uma conspiração de controle mental, numa “viagem” regada à drogas e que termina em um suicídio, tendo suas atitudes controladas por uma “tecnologia de entretenimento do séc. XXI”, lidando com realidades paralelas, voltando no tempo ou mesmo se entregando à loucura.

É filme ou é jogo?
A primeira coisa a chamar atenção nesse Black Mirror: Bandersnatch é a insistência por parte seu material publicitário em chamá-lo de “filme”. “Interativo”, porém “filme”, como se a palavra “interativo” fizesse um contrapeso indesejável. Isso soa, num primeiro momento, como uma estratégia para se criar uma ponte entre a obra e o público cinéfilo/televisivo cativo do seriado. Ora, fosse “filme” simplesmente, haveria a necessidade de existir essa ponte em primeiro lugar?

Black Mirror: Bandersnatch não é um filme. É um jogo, filho mais recente de uma linhagem de nomes como Adventure (Colossal Cave), Amazônia (do nosso mestre brasileiro Renato Degiovani), Her Story e Late Shift — esse último inclusive uma obra que também se vendeu enquanto um “filme interativo”.

Late Shift, lançado em várias plataformas tradicionais de jogos, também se vendeu como “o primeiro filme interativo cinemático do mundo”.

Uma grande evidência disso, além da tal ponte de marketing, é o fato de Black Mirror: Bandersnatch girar em torno, tanto mecanicamente quanto tematicamente, das escolhas do público/jogador. Os momentos de escolha não são triviais: há uma ruptura no fluxo da narrativa, um aumento na tensão enquanto o jogador/público é puxado da inércia e chamado à ação.

E, infelizmente, é um jogo muito fraco.

Her Story, uma obra de jogo que sabe transitar brilhantemente entre o fílmico e o lúdico.

Sobrecarga de Buffer
Para mim, esse debate entre ser jogo ou ser filme não é uma mera questão semântica. A “confusão” entre se negar jogo e se tentar como filme é justamente um dos motivos que faz esse Black Mirror: Bandersnatch falhar. Seus erros são, antes de tudo, erros de game design.

O estranho é que Brooker, roteirista da obra, demonstra ter consciência de que há algum nível de game design no que ele está criando. Isso fica evidente, por exemplo, nas escolhas iniciais dadas ao jogador, sem consequência alguma para a história mas que claramente existem para ensinar ao público não acostumado com esse tipo de interatividade o mecanismo básico do filme/jogo. Além disso, o roteirista espalha dicas sutis para guiar o jogador/espectador a certas escolhas, como quando um certo personagem insiste que o protagonista tome uma decisão que irá “fazer ele se conhecer melhor”.

Game Design Fundamental (que os gringos chamam de “one oh one”): o jogo deve ensinar ao jogador como jogá-lo. Geralmente, com desafios iniciais sem consequenciais, como uma “rede de suporte”. Válido pra Super Mário World, válido para Black Mirror: Bandersnatch.

O que é jogo — definições
Mas para compreender isso, é preciso se discutir os conceitos de “jogo” e de “filme”. Essa não é uma questão inédita; como levantei na minha crítica ao Papers, Please, tentar “se encontrar” e “se definir” é um dos maiores obstáculos enfrentados por uma arte nascente.

A definição acadêmica do que é um jogo se trata de um assunto complexo, que foge do escopo dessa crítica. De Johan Huizinga a Jesper Juul, de Cris Crawford a Katie Salem, muita gente melhor que eu já se debruçou sobre isso.

Porém, eu trabalho com uma definição pessoal, fruto de meus estudos pendurado em ombros gigantescos: jogos são atividades humanas caracterizadas por serem interativas, não necessariamente produtivas, definidas e delimitadas por regras, de progressão incerta e cujo “norte” ou “sentido de ser” é o restabelecimento final ou contínuo de um equilíbrio.

Alguns dos livros que me definiram como sou hoje. O Rules of Play, de Katie Salem e Eric Zimmerman, sem exagero algum, mudou a minha vida. Recomendo fortemente que vocês o deixem mudar as suas.

Filmes são atividades humanas, sim, e também sem a necessidade de serem produtivos — aqui logicamente se pode questionar os filmes publicitários e os documentários. Mas não são definidos ou delimitados por regras: mesmo em um roteiro rigidamente escrito sob a tutela aristotélica dos três atos, essas são “guias” mais que leis. O mesmo pode ser dito sobre o seu fazer; se há algo que a evolução do cinema nos mostrou é que regras sobre planos, enquadramentos e montagens foram feitas para serem subvertidas.

Tampouco são interativos, ou têm um desenrolar incerto: é esperado que a sequência de imagens que o roteirista escreveu, que o diretor decupou e que o montador editou seja firmemente a mesma, da primeira sessão no cinema à última. E não é qualquer auteur que gostaria de compartilhar a sua agência na contação da história com o público.

Por fim, há de fato um equilíbrio a ser restaurado: os conflitos centrais em um drama, que precisam levar a narrativa ao clímax. O vilão, derrotado ou triunfante. O elixir, resgatado ou destruído. O amor, conquistado ou perdido. Mas não há agência alguma nesse ato: quem “restaura” o equilíbrio é o projetor, ao fazer avançar automaticamente o arquivo do filme em sua memória.

O cinema e suas evoluções
O cinema também não é estranho à complexidade da questão de se definir. Dos primeiros teóricos dessa arte até hoje, de Münstenberg a Metz, de Einsenstein a Bazin, dos hollywoodianos aos realistas, “o que é o cinema” já teve muitas respostas. É perfeitamente natural que o cinema evolua e se redefina — por exemplo, até mesmo a chegada do som fora vista, por alguns teóricos, como uma descaracterização dessa forma de arte. Não poderia ser, então, o “filme interativo” apenas um passo adiante nessa evolução natural?

Com som ou não, com câmera que se move ou não, a “espinha dorsal” do cinema está em duas técnicas: a decupagem — a arte de se fotografar uma cena de modo que os elementos enquadrados no plano produzam sentido fotográfico; e a montagem — a arte de se colocar os planos em sequência de modo que, como ao se ler um texto indo de uma letra para a próxima, se produza o sentido cinematográfico.

Isso não mudou, de Méliès a Spielberg. Mas a decupagem e a montagem, ainda hoje, servem à sequencialidade de uma narrativa. A própria natureza da agência imprevisível do espectador/jogador vai contra essa sequencialidade. Portanto, ela não é suficiente para dar conta da experiência que se quer alcançar com o almejado “filme interativo”.

O Efeito Kuleshov, pedra angular de toda a teoria da montagem e base fundamental da "linguagem" cinematográfica. Ausente da imagem: o espectador interagindo e escolhendo a ordem dos planos…

O único modo de se fazer isso é lançando mão de outra "linguagem", que fala justamente sobre interação, sob regras — no caso desse Black Mirror: Bandersnatch, fazer escolhas, que são mutuamente exclusivas, e em apenas dez segundos — , com o fim claro de se restaurar um equilíbrio — o lançamento bem sucedido do jogo-dentro-do-jogo Bandersnatch —, e de desenrolar incerto — a experiência fílmica em si, que depende das escolhas feitas pelo espectador/jogador.

Essa linguagem não é órfã, nem alienígena e tampouco inédita. E se essa obra tivesse a abraçado abertamente, poderia ter sido uma experiência muito superior. Direção de fotografia alguma faria milagre ali. Malabarismo de edição nenhum no Adobe Premiere salvaria Black Mirror: Bandersnatch.

Game design sim.

Poucos centímetros de profundidade
O jogo aborda os temas da “ilusão de escolha” e de “realidades paralelas onde as escolhas foram diferentes”. Ao longo da história, o protagonista vai se dando conta cada vez mais que suas atitudes são controladas por uma força externa, e ele se vê, ironicamente, como um personagem em um jogo.

E fica bem claro que a obra se acha bastante inteligente por seguir esse caminho. São inúmeros os “tapinhas nas costas” que o jogo se dá ao longo de sua duração, como quando Colin, chapado, descreve o jogador como “o espírito lá fora que decide o que nós fazemos”, ou quando o jogo dá ao jogador uma única opção de escolha, como se quisesse esfregar na nossa cara: “liberdade é ilusão! olha só, é tão verdade isso que eu literalmente estou te dando uma só escolha! como eu sou arrojado, puxa vida!”.

Mamãe, eu li Nietzsche.

E ainda é mais enfurecedor a negação da obra em se ver como jogo pelo fato de querer tecer um comentário justamente sobre os múltiplos caminhos e experiências alternativas que nossa forma de arte oferece. “Quantas vezes você viu o Pac-Man morrer?”, pergunta Colin em dado momento. Outras obras fizeram isso de forma muito mais competente, como BioShock Infinite, e exploram a premissa bem mais profundamente, como The Stanley Parable.

Tão preocupado em “inovar” e em adotar uma “metalinguagem”, Black Mirror: Bandersnatch acaba por nunca “sair do raso”. A obra perde o ritmo a partir de sua segunda metade, se tornando bastante repetitiva e “arrastada”. Em dado momento Stefan começa a lutar contra as decisões tomadas pelo jogador, e isso o leva a tentar se comunicar com a “força” que controla suas ações — o que nos leva, inclusive, à sequência mais interessante do jogo —, mas para por aí, sem nunca explorar as ideias que aborda a contento.

Fosse encarado abertamente como jogo, o realizador teria um leque maior de opções para sanar isso. Por exemplo, ele poderia se focar em fazer o gameplay retratar o tema abordado, ou poderia dar escolhas mais significativas ao seu público. Ou, ainda, trabalhar melhor a sua premissa.

Com uma abordagem “filosófica” rasa, o jogo nunca explora sua premissa tanto quanto poderia.

Por exemplo: a obra acerta em alguns de seus simbolismos, como o do erro de “buffer overflow” (“sobrecarga/transbordamento de buffer”, um erro de programação em que, grossíssimo modo, o conteúdo de uma parte da memória do programa “vaza” para outras partes) — em dado momento, uma escolha leva a um dos finais; quando o jogador volta ao início para fazer outras escolhas, os personagens subitamente se lembram de coisas que aconteceram na jogada anterior. Porém, após esse momento, isso nunca mais é trabalhado no jogo.

Além disso, refletindo um erro comum em jogos narrativos de escolha mal projetados, algumas decisões levam a consequências completamente ilógicas, como quando o jogo dá a opção de se fugir de uma situação pulando-se uma janela, ou sem consequências, como quando o jogador precisa acertar uma combinação de números.

O filme dentro do jogo
Como obra audiovisual, entretanto, há pouco o que se criticar. A direção de David Slade é bastante competente, e o elenco entrega atuações inspiradas, com destaque para o personagem de Craig Parkinson — é possível notar o desespero no olhar do pai que se vê perdendo o filho para uma doença mental, pouco podendo fazer para impedir isso.

Craig Parkinson faz um excelente trabalho como um pai impotente diante da doença do filho.

O design de produção comandado por Catrin Meredydd é competente em recriar a Londres de 1984, e a direção de fotografia de Aaron Morton e Jake Polonsky consegue dar à cinemática um visual dessaturado e "retrô" que lembra bem os filmes do final do séc. XX. Eficiente também é o uso de cores e da luz, que ajudam a reforçar a história — ressaltando a melancolia do lar dos Butler num pastel em cores frias, o ascetismo burocrático da empresa Tuckersoft num branco neutro, ou destacando a psicodelia da casa de Colin em cores quentes e berrantes.

O roteiro de Brooker é igualmente competente, mas é preciso ressaltar que sua história tece um comentário bastante problemático sobre as doenças mentais. De certa forma, a trama demoniza o tratamento com medicação e a rede de suporte que família e médicos tecem em torno do paciente— coisas que, em última instância, são as que realmente ajudam no processo de cura.

Um design de produção eficiente em recriar a Londres de 1984, e um competente uso das cores e da luz como elemento narrativo.

Um possível final feliz
Ainda assim, com todos os problemas, Black Mirror: Bandersnatch foi bem sucedido em apresentar para um público amplo as ficções interativas. Fora bem interessante ler os comentários nas redes sociais de pessoas que não são o público comum dos jogos comentando sobre decisões tomadas e finais alcançados. Aliás, essa cultura, de se buscar na Internet formas de se chegar a outros finais, remete muito à época em que comprávamos revistas de jogos com dicas de como se passar de determinada fase ou se vencer certo chefão — uma cultura eminentemente lúdica, estranha ao cinema.

Ele certamente não fora a primeira obra a enveredar por esse caminho — o próprio Netflix possui um catálogo com jogos do gênero para crianças —, mas sua popularidade foi um passo adiante significativo. Como o Netflix é uma plataforma que depende cada vez mais de conteúdo exclusivo, é de se supor que eles venham a investir em novas obras do gênero.

Assim, incorporo agora o crítico de jogos que aparece na TV com o veredito derradeiro na maioria dos finais da história. Apesar de todas as portas que possa vir a abrir, Black Mirror: Bandersnatch se perde em meio aos seus possíveis caminhos, não fazendo a “escolha certa” entre filme e jogo, merecendo assim duas estrelas de cinco.

Tente outra vez.

Afinal, é essa a bênção que os jogos, como forma de arte, nos concedem.

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Thiago Baptista

Um fazedor de jogos e um contador de histórias. Diretor de Narrativa — Deathbound. Militante sem quartel pelos jogos como forma de arte.