A César o que é de César: Quando religião e política se encontram

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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9 min readOct 2, 2018
Um denário com a imagem de Tibério. A inscrição no anverso lê-se: Ti[berivs] Caesar DiviAvg[vsti] F[ilivs] Avgvstvs (“César Augusto Tibério, filho do Divino Augusto”), e no verso lê-se: Pontif[ex] Maxim[us] (“Pontífice Máximo”).

Mais tarde enviaram a Jesus alguns dos fariseus e herodianos para o apanharem em alguma coisa que ele dissesse.Estes se aproximaram dele e disseram: “Mestre, sabemos que és íntegro e que não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens, mas ensinas o caminho de Deus conforme a verdade. É certo pagar imposto a César ou não?Devemos pagar ou não? ”Mas Jesus, percebendo a hipocrisia deles, perguntou: “Por que vocês estão me pondo à prova? Tragam-me um denário para que eu o veja”. Eles lhe trouxeram a moeda, e ele lhes perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?”“De César”, responderam eles.Então Jesus lhes disse: “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.E ficaram admirados com ele. Evangelho de Marcos 12.12–17

Em tempos de polarização é importante revermos nosso papel como cristãos acerca de nossa posição politica, ao longo da história vários grupos cristãos flutuaram entre uma radical ausência no cenário politico, como os Anabatistas que pregavam uma separação radical entre igreja e o estado, ou um comprometimento total ao regime no poder, casos do fascismo italiano e o apoio da Igreja católica e da igreja protestante alemã e o nazismo. Diferentemente destes cenários extremos, Jesus parece revelar outro caminho a ser traçado pelos cristãos.

A famosa resposta de Jesus “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, foi interpretada como a máxima de Cristo acerca de sua missão no mundo e de como cristãos também devem se comportar quando indagados sobre seu papel politico. Mas qual era o contexto politico da época de Jesus?

O contexto da época era de opressão pelo estado romano, com altas taxas impostas à Judeia por Roma levando a tumultos. Como comenta Willard Swartley:

O imposto denotado no texto era um imposto específico (…)Era um imposto de senso populacional, um imposto instituído em 6 dC. Um censo realizado naquele tempo (Cf. Lc.2.2) para determinar os recursos dos judeus provocou a ira do país. Judas da Galileia liderou uma revolta (At 5.37), que foi suprimida com alguma dificuldade.[1]

Nesse contexto explosivo, a pergunta feita pelos fariseus é uma dupla armadilha: se Jesus responde que é a favor dos impostos, ele é contra o povo e seria rechaçado e talvez morto ali; se é contra os impostos, ele é contra o império e poderia ser acusado por revolta contra César e também seria morto.

Nessa aporia é que se encontra a genialidade de Jesus e sua ironia, já comparada a Sócrates, entra em jogo. Jesus ao invés de responder de uma forma binaria, sim ou não, faz a seguinte pergunta: “de quem é essa imagem?”, a imagem é de César, o imperador romano, sendo assim, deveria-se devolver somente o que possuía sua imagem — o dinheiro, não a sua adoração, nem sua vida, essas eram divinas. Ao governo deveria ser pago seu tributo, e a Deus entregue sua adoração. Tim Keller comenta sobre essa forma de dar a Cesar o que é de César:

Você não pode dar a César o que ele REALMENTE quer: submissão total e aceitar seu sistema de exclusão e disciplina, mas sim o que ELE MERECE, não de acordo com o que ele diz que merece, mas de acordo com o que Deus diz que merece.[2]

Essa resposta é revolucionaria, mas pode-se acreditar estarmos falando de um mero revolucionário, colocando-o ao lado dos revolucionários tradicionais de sua época, como Barrabás e Judas da Galileia ou mais próximos como Bolivar e Che Guevara ou tantos outros que almejavam o poder terreno, posição defendida por Jacques Ellul:

Eu não quero,ele escreve, Abandonar nem um pouco a mensagem bíblica , desde que parece para mim ( . . .)que o pensamento bíblico leva direto ao anarquismo — anarquismo é a única posição “anti-politica politica” em harmonia com o pensamento cristão[3] “Ambos o novo e o velho testamento tem restrições a todo poder politico.[4]

A posição de Ellul parece jogar Cristo diretamente nos braços de cristãos progressistas e marxistas, como se Cristo e o próprio Deus quisessem derrubar o poder e decretar o reino de Deus pela força na terra, entretanto, Jesus frustra todos aqueles que achavam ser Ele do mesmo tipo desses revolucionários, pois é contra a revolução. Sua atitude é uma “revolução revolucionaria”, pois, toda revolução se dá pela sede de poder, da vontade de derrubar o sistema e tomá-lo. Jesus responde a esses questionamentos de forma diferente:

Os reis dos povos dominam sobre eles, e os que exercem autoridade são chamados benfeitores. Mas convosco näo pode ser assim. Pelo contrário, aquele que for o maior proceda como se fosse o mais pequeno, e o que governar proceda como quem serve os outros. (Lc. 22.25’26)

Jesus com sua mensagem além de frustrar seus discípulos e todos os outros que pensavam tratar de um revolucionário, consegue inverter todo pensamento acerca de si, Ele não é um revolucionário qualquer, ele não se importava com o poder e o entregou, afinal, lhe foi “dado todo o poder nos céus e na terra.(Mt.28.18)” e seu “reino não é daqui”(Jo.18.36).

A verdadeira revolução de Cristo está no fato de ele revoltar-se contra ela mesma. Enquanto seus discípulos e seguidores esperavam uma revolta contra o império, como fez Judas da Galileia e Barrabás, Jesus consegue estabelecer um limite, entre subserviência e indignação. Jesus consegue estar exatamente no meio, encontrando a justa medida aristotélica, não advogando uma aceitação complacente do sistema político nem uma revolta armada ou política contra ele. Jesus consegue a façanha de ser a favor do império, com relação às taxas e ser contra a tirania e adoração requeria por César.

…dê-me um denário…

A autoridade de cristo está em não possuir nada de César, para demonstrar isso, ele pede um denário. Um denário era o valor de um dia de trabalho do mais simples trabalhador, poderíamos equivaler a uma moeda de um centavo. O pedido de Jesus por uma moeda que valia tão pouco, na verdade a mais insignificante de todas, revela que Ele não possuía nada do poder constituído e dele não se importava.

Foucault faz uma relação interessante entre poder e verdade, para ele, onde há uma necessidade de se afirmar a verdade há também desejo pelo poder, nesse processo, verdade e poder confundem-se, logo, quem possui o poder, possui a verdade[5]. Tanto César quanto Cristo afirmavam ser autoridades, entretanto, apenas uma não possuía nenhum poder constituído e não estava interessada no jogo pelo poder. Apenas Jesus revela-se como a verdadeira autoridade, pois destituído de qualquer força política e assim encontra-se livre para falar sobre a verdade e afirmar ser a verdade,ele era isento porque estava fora desse jogo nefasto, diferentemente dos governantes que almejam o poder e fazem de tudo para tomá-lo.

Essa postura influenciou seus discípulos, como por exemplo, Pedro e João, após serem presos e apanharem por proclamarem Cristo diante das autoridades judaicas, fazem a afirmação que marcou as gerações seguintes: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens.(At.5.29)”, essa foi a resposta que milhões de Cristãos geração após geração fizeram e por isso pagaram um alto preço - a perda da própria vida, assim descreve Schaeffer:

“A razão de os cristãos serem mortos foi o fato de serem rebeldes”. Ele prossegue colocando essa rebelião de duas maneiras:

Primeiramente, ”pode-se dizer que eles adoravam a Jesus, quanto Deus, e que adoravam ao Deus infinito-pessoal somente.”

Em segundo lugar, “nenhuma autoridade totalitária ou Estado autoritário pode tolerar os que têm um referencial absoluto, de acordo com o qual avaliam aquele Estado e suas ações.”[6]

A postura de Cristo ante César é perigosa e colocou todos os seus seguidores também em perigo, a morte é o preço a pagar por tal atitude ante os governantes, Cristo e seus seguidores colocaram um “alvo” em suas cabeças, pois com seu referencial exterior aos poderes desse mundo, não poderiam ser comprados pelas benesses dadas pelo estado. Dinheiro e poder estavam muito aquém dos tesouros encontrados em cristo Jesus. Pois Nele ”tinham o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo”. (Ef.3:8), sendo abençoados com todo tipo de bençãos (Ef.3.20), o que é muito maior do que meros bens materiais.

Essa é a linha tênue que o cristão deve caminhar, no papel de sempre desconfiança com os poderosos, mas ao mesmo tempo, sendo um cidadão que cumpre com seus deveres. Não aceitando o que está errado, como a corrupção, a tirania, a desigualdade social e as injustiças, e ao mesmo tempo não se revoltando contra o governo, mas pagando seus impostos para que possa ter voz e falar contra essas injustiças. Uma saída seria o paradoxo de ser politico e não-politico, ou seja: não participar do jogo politico por poder, fama e riqueza, mas ser politico, no contexto original, de ser envolvido nos negócios da cidade, buscando soluções para seus desafios e problemas apresentados.

O argumento supracitado de Ellul , deve ser totalmente abandonado, a bíblia não fala de uma posição bíblica ideal, muito menos a anarquia, aliás, o único momento que uma anarquia foi instaurada no relato bíblico foi à época dos Juízes, onde idolatria, barbárie e violência eram a realidade, a forma como o autor de Juízes encerra seu livro revela essa posição: Naqueles dias não havia rei em Israel; porém cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos. (Jz. 21.25)

A monarquia também não é o modelo ideal, apesar de ter sido instaurada em Israel e parecer ter a marca da aprovação divina, entretanto foi apenas a permissão de Deus ao pedido do povo (1Sm.8), mesmo com os diversos alertas e precauções:

Ouvindo, pois, Samuel todas as palavras do povo, as repetiu aos ouvidos do SENHOR. Então o SENHOR disse a Samuel: “Atende o seu pedido e dá-lhes um rei.” Então Samuel disse-lhes que podiam voltar para a sua terra. (1Sm. 8.21–22)

Também não é possível advogar por um esquerdismo ou direitismo, como pregado por alguns lideres evangélicos que alinhando-se a ideologias terrenas, colocam nelas a pecha de serem “o verdadeiro evangelho”. Para a contradição entre esquerda e direita, C.S Lewis tenta em algumas palavras revelar esse “governo ideal cristão”, que seria uma síntese dos dois lados:

O Novo Testamento, sem entrar em detalhes, nos pinta um quadro bastante claro do que seria uma sociedade plenamente cristã. Talvez exija de nós mais do que estamos dispostos a dar. Informa-nos que, nessa sociedade, não há lugar para parasitas ou passageiros clandestinos: aquele que não trabalhar não deve comer. Cada qual deve trabalhar com suas próprias mãos e, mais ainda, o trabalho de cada qual deve dar frutos bons: não se devem produzir artigos tolos e supérfluos, nem, muito menos, uma publicidade ainda mais tola para nos persuadir a adquiri-los. Não há lugar para a ostentação, para a fanfarronice nem para quem queira empinar o nariz. Nesse sentido, uma sociedade cristã seria o que se chama hoje em dia “de esquerda”. Por ou­tro lado, ela insiste na obediência — na obediência (acom­panhada de sinais exteriores de reverência) de todos nós para com os magistrados legitimamente constituídos, dos filhos para com os pais e (acho que esta parte não será muito popular) das esposas para com os maridos. Em terceiro lugar, essa é uma sociedade alegre: uma so­ciedade repleta de canto e de regozijo, que não dá valor nem à preocupação nem à ansiedade. A cortesia é uma das virtudes cristãs, e o Novo Testamento abomina as pes­soas abelhudas, que vivem fiscalizando os outros. Se existisse uma sociedade assim e nós a visitássemos, creio que sairíamos de lá com uma impressão curiosa. Teríamos a sensação de que sua vida econômica seria bastante socialista e, nesse sentido, “avançada”, mas sua vida familiar e seu código de boas maneiras seriam, ao contrário, bastante antiquados — talvez até cerimoniosos e aristocráticos. Cada um de nós apreciaria um aspec­to dela, mas poucos a apreciariam por inteiro. Isso é o que se deve esperar de um cristianismo como projeto.[7]

A resposta não é simples, e nem objetiva, requer pensamento e boa vontade para ouvir e ser ouvido, fugir das respostas obvias e simples que não observam o todo, como prossegue Lewis:

Meu palpite é que deixei alguns esquerdistas furiosos por não ter ido mais longe na direção em que gostariam que eu fosse, e que também deixei com raiva as pessoas de orientação política oposta por ter ido longe demais. Se isso é verdade, fica posto em evidência o verdadeiro empecilho para a concepção de um projeto de sociedade cristã.[8]

Esse governo ideal não existe, e sempre haverá pessoas querendo inclinar seu cristianismo à direita ou à esquerda, entretanto, o governo perfeito somente será estabelecido quando o Rei sem um denário sequer retornar e estabelecer seu reino e seu reinado que nunca terá fim.

[1] SWARTLEY, Willard M. The Christian and the Payment of Taxes Used For War.1980. In: https://web.archive.org/web/20060421195552/http://peace.mennolink.org/articles/wartaxes.html

[2] KELLER, Timothy.Arguing about politics.2001. In: https://sedm.org/arguing-about-politics-tim-keller-gospel-in-life/

[3] Ellul. Jacques. Jesus and Marx: From Gospel to Ideology, Grand Rapids: Eerdmans, 1988.p.157

[4] Ibid.p.171

[5] FOUCAULT. Michel. A ordem do discurso. Trad. Graciano Barbachan (data da digitalização: 2004). Coletivo Sabotagem. 1970.

[6] SCHAEFFER, Francis. Como viveremos? Cultura cristã: São Paulo,2013.p.12

[7] LEWIS,C.S. Cristianismo Puro e Simples.Martins Fontes: São Paulo,2014.p.110–111

[8] Ibid.p.114–115

Se você quiser saber mais leia esse outro texto:

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2