O sermão da montanha revelou minha hipocrisia

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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8 min readJul 3, 2018

Começar a pregar o sermão da montanha, deve ser a maior experiência que um pregador da palavra possa passar, sua hipocrisia é revelada em cada linha, e é preciso ter coragem pra lidar com isso.

Sermão da Montanha -Carl Heinrich Bloch, 1877

O aprendiz de discípulo começa sua jornada no alto do monte das oliveiras, observando Jesus, que começa proferindo suas palavras: “Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus”(mt.5.3), o mestre abre as portas do seu reino para os excluídos da terra, os pobres, mansos, famintos e os perseguidos. Ele mostra as colinas verdejantes onde seus discípulos, que largaram tudo para segui-lo irão descansar. Mas após a aparente tranquilidade, começa a tormenta, as obrigações, ser sal e luz da terra, fazer diferença, revelar-se como discípulo que tem em todas suas ações glorificar seu pai que está nos céus.(Mt.5.16)

Jesus faz questão de dizer que não veio revogar a lei, veio cumpri-la totalmente (5.17). Nem um til ou uma vírgula seriam esquecidos. Ser pobre, manso e humilde, não torna desculpa para o discípulo de Cristo afastar-se ou passar por cima da lei, ela continua válida e deve ser cumprida. A partir do entendimento do valor da lei, começa a jornada da descida do monte. Ser discípulo é ao mesmo tempo subir o mais alto monte para receber a mensagem divina e descer para as mais densas depressões, e doar-se ao próximo para compartilhar da mensagem recebida, assim explica Miroslav Volf:

…a “ascensão” e o “retorno” são cruciais. A “ascensão” é o ponto no qual, no encontro com o divino, os representantes das religiões proféticas recebem a mensagem e têm sua identidade essencial forjada — por meio da união mística com Deus, por meio da inspiração profética ou por meio de um entendimento mais profundo dos textos sagrados.(…) O “retorno” é o ponto no qual, num intercambio com o mundo, a mensagem é comunicada verbalmente, decretada, transformada…[1]

Moisés e Jesus receberam a mensagem divina e a transmitiram ao povo e é nessa “ascensão” e “retorno” que o discípulo deve viver na terra e promover sua transformação, ele anda pelos pastos verdejantes e pelos vales da sombra da morte. O discípulo deve andar em ambos com a mesma fé em seu mestre, e para isso, é necessário arrancar o olho ou o braço para não pecar, enfrentar o amor não-reciproco, receber violência e devolver amor. O discípulo tem outra visão de suas relações interpessoais. Ele começa a enxergar o adultério que mora no olhar malicioso, que se pode matar com a arma da palavra mal-dita, que, aliás, toda palavra proferida deve ser verdadeira, sim e não, sem margem para nenhum tipo de fuga semântica; O sim do matrimonio dura até a morte, e finalmente, deve-se dar a cara a tapa e caminhar quantas milhas forem necessárias para que o amor vença (5.21–46). Seguir o Cristo significa carregar a morte em cada passo, a cada esquina a morte é vista e o ego abandonado. O que parece ser sobre-humano, como diz Joseph Ratzinger:

Essa mensagem traz consigo uma nova intimidade, um novo amadurecimento e bondade, uma libertação daquilo que é apenas superficial e externo; e, ao mesmo tempo, um novo nível de exigência, uma exigência tão fora de proporções que quase esmaga a pessoa. Quando o Senhor diz: “Já não vos digo apenas: Não podes cometer adultério, mas nem sequer olhar a mulher com desejo”; quando diz: “Não somente não matarás, como nem sequer guardarás rancor ao próximo”; e quando diz: “Não basta o olho por olho e dente por dente, mas, quando alguém te bater numa das faces, oferece-lhe a outra”, somos confrontados com uma exigência que, embora dotada de uma grandeza que provoca admiração, parece desmedida para o ser humano. Ou pelo menos o seria, se Jesus Cristo já não a tivesse experimentado antes e se não fosse uma consequência do encontro pessoal com Deus.[2]

Jesus só pede o que ele mesmo já fez, ele ensina com autoridade(7.29), não como os fariseus, que colocavam pesados fardos e não moviam sequer um dedo para ajudar(Mt.23.4). Em cada linha do sermão, a imagem de Jesus é vista cumprindo toda lei, fazendo isso Ele retira a hipocrisia humana, o esforço inútil pela perfeição, pelo desempenho e pelas interpretações errôneas da lei. Jesus limpa toda a sujeira da falsa obra externa do farisaísmo e expõe à hipocrisia. Isso faz com que o hipócrita que tenta esconder-se em falsas ações piedosas surja sem máscaras, por isso o alerta de Jesus: “Tome cuidado para que você não faça suas boas ações (…) para ser visto”(6.1). Esta frase “para ser visto”(theamoai) está relacionada com a palavra teatro. Um hipócrita era originalmente um ator na Grécia que usava uma máscara, a fim de atuar em um papel. “Tome cuidado” poderia ser traduzido “estar em guarda” e vem de um termo militar para sentinelas. Enfim, todas as nossas ações devem ser feitas com extrema vigilância, pois caímos no perigo de sermos atores em nossa melhor performance teatral, tentando receber aplausos da plateia, mas na realidade, enganando a nós mesmos.

Deve-se tomar cuidado com o mínimo de religiosidade que pode aparecer na esmola, na oração e no jejum. Nessas ações aparentemente boas, pode surgir o orgulho que bate à porta revelando uma falsa sensação de estar no caminho certo, Dietrich Bonhoeffer, fala sobre como fugir desse orgulho da obra aparente,

Quem consegue viver de forma a praticar o extraordinário em secreto? De forma que a mão esquerda não saiba o que a direita faz? Que amor seria este que não tem consciência de si, mas permanece em secreto perante si mesmo, e até o dia derradeiro? É evidente: por ser amor oculto, não poderá ser uma virtude, um habito do ser humano. guardem-se — diz — para não confundirem o amor verdadeiro com alguma virtude amável, com uma “qualidade” humana! Pois amor é o amor que a si mesmo se esquece. Nesse amor que a si mesmo se esquece, o velho ser humano deve morrer com todas suas virtudes e qualidades. no amor que a si mesmo se esquece, comprometido apenas com Cristo, morre o velho Adão. Com a frase “ignore a tua esquerda o que faz a tua direita”. Proclama-se a morte do velho humano.[3]

A única forma de viver o estilo de vida do crucificado é decretando a morte do Eu! Somente entendendo que toda boa obra vem do Nosso Senhor e não da minha justiça própria, é assim possível não ensoberbecer-se com as boas obras que a mão direita faz. Não há descanso para o autoexame constante das ações, por isso, é feito a advertência para tomar cuidado, mesmo que tenha-se boas intenções, pois o ego faz com que “já tenha recebido a recompensa”(6.2;5;16) dada pelos homens e não do pai que vê em secreto e em secreto recompensa.(6.4;6;18).

No sermão da montanha, você é discípulo ou pecador; fariseu ou hipócrita, não há como fugir das lentes do Cristo, não há caminho mais fácil, nem estrada larga. Tudo é difícil, pois a realidade da própria natureza pecaminosa invade o ser brutalmente sem meias palavras. E isso é uma proposta dada pelo Nazareno, um mundo virado de cabeça pra cima, e isso não é para todos. Pois, nem todos tem a coragem e a vontade de segui-Lo nessas condições.

Ter a identidade revelada requer coragem, pois além do hipócrita, o fariseu que habita no religioso também surge, ele lida com as leis, sabe todos os tis e virgulas, coa mosquitos e engole camelos (Mt23:24),manipula e burla leis para parecer santo. Quando Jesus profere o sermão, ele retira toda proteção religiosa do fariseu, despindo toda concepção do que é ser um seguidor de Cristo, fazendo-o enxergar sua natureza verdadeira — um mero pecador sem esperança.

Mas em meio à brutal realidade do ser, o desespero parece sucumbir o discípulo, quando a desesperança parece inundar a alma abatida, ele encontra, como Alice quando cai no buraco do coelho, o pais das maravilhas. Jesus começa a falar desse lugar especial - O reino dos céus, “onde traça e a ferrugem não consomem”(6.19), onde não há preocupação com o que comer, beber e vestir (6.31), nem com o dia de amanhã (6.34) e descobrimos um Pai que já sabe de tudo que precisamos (6.32). e o principal, o futuro não deve ser temido, pois não é possível mudar um fio branco em preto(5.36), nem acrescentar uma hora sequer à vida (6.27). Tudo isso é esforço inútil para controlar a vida, e aqueles que são filhos do Pai do céu, já aceitaram que estão sob seus cuidados e o que resta é aceitar que “cada dia trará seu próprio mal”(6.34).

Mas para que tudo isso seja atingido, as prioridade devem ser mudadas, o messias requer que seu Reino seja buscado, como explica Ratzinger:

Penso que o importante é: primeiro, o reino de Deus. Esta deve ser a preocupação essencial que estruture a partir de dentro, a partir do reino de Deus, as demais preocupações. Como é natural, não é que simplesmente nos nasçam asas. Preocupamo-nos pelo dia seguinte, de que o mundo continue a progredir, etc. Mas essas preocupações tornam-se mais leves quando se subordinam à primeira. E vice-versa.[4]

Prioridades mudadas para que se possa entrar nesse reino fantástico, somente assim é possível viver o cuidado do Pai que retira a ansiedade pela vida diária, não uma alienação pela vida comum, mas sim, cada coisa no seu devido lugar, ordenadas a partir da busca pelo Reino e sua justiça.

O que parece ser um Pais das Maravilhas, ainda não é realidade para o discípulo que luta contra sua natureza pecaminosa e o mundo decaído, a tensão entre a plenitude do reino e seus sofrimentos terrenos, faz com que Cristo insista nas advertências contra certos fariseus e hipócritas que tentarão enganar e roubar Sua identidade, proclamando uma mensagem mentirosa, com muitas facilidades. Eles são falsos profetas e falsos discípulos. Lobos em pele de ovelhas (7.15),que pela aparência de piedade, somente serão identificados por seus frutos. São suas obras que refletirão de quem são filhos, são elas que demonstrarão quem é quem, e não seu ensino ou discurso eloquente (7.22).

Qual a forma segura para descobrir quem é discípulo e quem é somente um falso discípulo?

Jesus responde essa questão com uma parábola, a casa construída na areia e a construída na rocha. Sua parábola se inicia com a constatação: “quem ouve minhas palavras e a pratica é como um homem prudente…”(7.24), prudente é (phronimos),sendo aquele que “age virtuosamente e prescreve ações corretas para os outros. Como tal, a aptidão moral é a sabedoria prática e não a sabedoria teórica”[5]. O prudente é o que põe em prática todos os ensinamentos de Cristo, e não somente se aplica aos pormenores da lei, sem coloca-las em ação. E a prova de quem pratica ou não a palavra de Cristo é quando os dias maus ocorrem. Somente no momento em que as coisas não vão como se esperava que acontecessem é que é possível saber quem é verdadeiramente discípulo ou não. E sendo a vida construída sobre falsos ensinamentos seu resultado e por fim, sua constatação é: “grande foi sua queda” (7.27).

O sermão ensina que para ser um seguidor de Cristo é necessário entregar-se totalmente ao seu Senhor, e dEle obter forças para encarar de frente suas mazelas e saber que ele tem cuidado de nós na difícil jornada de ser um seguidor do Messias. Afastar a hipocrisia que grita para olharmos o cisco dos olhos do nosso irmão e não retirar a trave que está no nosso (7.3). Somente assim é possível viver na tensão de leis que esmagam o ego, e nos fazem quase desistir da jornada e receber o alivio de saber que Ele já cumpriu tudo, e tem cuidado de nós. Sem cair no relativismo barato ou uma fé superficial e hipócrita.

[1] VOLF, Miroslav, Uma fé publica: como o cristão pode contribuir para o bem comum: São Paulo, mundo cristão, 2018, p.16

[2] RATZINGER,Joseph, La fe, de tejas abajo, ABC, 31.III.02, In Selecção de textos, p.27–28

[3] BONHOEFFER,Dietrich. Discipulado: São Leopoldo, Sinodal, 2007,p.98

[4] RAITZINGER,IbId

[5] PHRONIMOS — In :https://link.springer.com/chapter/10.1007%2F1-4020-3820-8_3

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2