Por que o marxismo atrai os cristãos? Part.I Práxis

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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9 min readDec 12, 2018
Trabalhadores do mundo, uni-vos! Propaganda sovietica, 1962 -A.Dobrov

Por que depois da queda do muro de Berlim e da descoberta dos horrores promovidos nas gulags soviéticas, nos campos de concentrações onde homossexuais, intelectuais, judeus, cristãos e qualquer tipo de dissidente era morto, tudo patrocinado pela ideologia marxista, utilizadas por Stalin, Mao, Pol Pot, Castro, Chaves e companhia, que matou cerca de 100 milhões de pessoas,mesmo assim, o marxismo ainda atrai muitos adeptos no ocidente e, por conseguinte no cristianismo? O que o marxismo oferece a cristãos que o torna tão atraente?

É obvio ser uma pergunta difícil de responder, pois cada ser humano tem concepções diferentes e respostas diferentes as mesmas situações, entretanto, caminharemos por uma tese, duas razões principais atrairiam os cristãos, a práxis e a utopia marxista, a primeira pela ação frente aos problemas sociais, a segunda, por revelar um paraíso onde as desigualdades seriam extintas e uma sociedade sem classes seria instaurada. A primeira é conhecida da maioria dos cristãos, a segunda nem tanto, e é a mais preocupante. Começaremos pela práxis.

A práxis marxista, conceito primeiramente utilizado por Cieszkowski, significando “Ação orientada em prol da transformação da sociedade”[1], no qual Marx popularizou em sua obra “Teses sobre Feuerbach”, o conceito ficando explicitado em sua famosa frase “ Os filósofos haviam interpretado o mundo de várias maneiras, cabe agora transformá-lo”. Marx prioriza a prática em detrimento do pensamento filosófico per se, não mais os pensamentos abstratos que não modificavam o modo de ser do mundo. Na teoria de Marx, a práxis, i.e., a transformação, seria posta à frente da teorização da realidade. Suas críticas ao sistema capitalista dando voz aos marginalizados, que eram explorados pelos burgueses, faz com que o senso de justiça e o ódio contra o sistema cresça na mente de jovens profissionais, estudantes, acadêmicos e também cristãos, cansados desse afastamento das causas dos pobres e marginalizados.

Esse pensamento de engajamento social parece ser um dos atrativos aos cristãos, que buscam um maior envolvimento social do evangelho, o abismo teológico entre teoria e prática, faz com que alguns cristãos busquem no pensamento marxista respostas às injustiças sociais e sua proposta de mudá-las. Esse senso de urgência e apelo aos mais pobres faz com que surjam teologias para dar respostas aos problemas sociais, uma delas, foi a teologia da libertação(TL), ela parte,

…especificamente da experiência do pobres e da luta dos marginalizados por libertação. A mola mestra dessa reflexão remete ao reconhecimento de que Deus está presente, nas tentativas daqueles privados dos seus direitos, de se insurgir contra a opressão.(…) “teologia da libertação está arraigada na militância revolucionaria”.[2]

Os cristãos encontram dificuldade em conciliar sua religião com as circunstâncias trágicas e a miserabilidade nos quais muitos deles vivem, por isso, procuram uma alternativa ao sistema capitalista.[3] Pedro Lucas Dulci, corrobora com essa posição, fazendo o contraponto da TL com a teologia da missão integral(TMI), sendo a resposta protestante aos mesmos problemas da falta de integralidade, ou a integração entre ortodoxia e ortopraxia:

Existe um déficit na compreensão teológica da missão cristã, que tem desencadeado uma prática missional que não é consciente de todas as dimensões de impacto da presença cristã no mundo.(…) Nesse sentido, a teologia como missão integral foi um esforço latino-americano, de responder esse déficit.[4]

Valdir Stuernagel define qual a intenção da TMI: “a missão integral é, em ultima análise, um esforço, desejo e intento missionário e comunitário de escutar, receber e viver o evangelho de Jesus Cristo de forma intensa, comunitária e contextual”[5],

Tanto a TMI quanto a TL tentam buscar respostas a essa falha da teologia ortodoxa, por não obterem respostas satisfatórias, alguns lideres católicos e protestantes encontraram na práxis marxista esse instrumento, assim afirma Kirk, “O marxismo parecia falar de maneira mais convincente com os contrastes econômicos condições sociais deploráveis encontradas por jovens padres e leigos no contato com as áreas mais pobres do continente.”[6], por esse contexto, na América latina, Bright declara: “ser cristão e marxista é normal” [7]

Um dos seus mais famosos teóricos da TL foi Gustavo Gutierrez, o padre Peruano utiliza-se da luta de classes marxista, que Marx entende como o motor da historia, a luta entre os oprimidos e opressores, que na época moderna foi a luta entre proletários e burgueses, o que Marx acreditava que inevitavelmente levaria a revolução do proletariado, pois as forças do capitalismo gerariam uma alienação e por conseguinte revolta dos proletários, em suas palavras, tudo isso era certo como “uma lei da natureza”[8], para Gutierrez e os teólogos da libertação, a luta de classes é ressignificada como a luta dos pobres da América Latina contra seus opressores. A práxis marxista, agora é práxis cristã, sendo “engajamento na obra libertadora de Deus no mundo”[9], Gutierrez entende a práxis como ato primeiro, somente depois deve vir a teoria, são as práticas cristãs, que na sua leitura são, a justiça social e o envolvimento na libertação do pobre, que faz com que a reflexão teológica seja feita. Nas palavras de Gutierrez: “Conhecer a Deus é agir a favor da justiça. Não há outro caminho que conduza a Deus”[10]. Essa afirmação categórica revela a escolha da prática em detrimento da teoria. E também como Marx que escolheu os proletários como aqueles que deveriam estar conscientes de sua missão em nome de toda a humanidade, os teólogos da libertação, enxergam o pobre como esse povo especial, no qual Deus fez uma opção preferencial. Em suma a missão dos cristãos seria,

“nossa missão como cristãos nos remete à práxis libertadora.(…)nossa missão consiste em transformar a sociedade para que ela se conforme ao programa do Reino de Deus. Para isso, a igreja deve se converter aos pobres — deve se unir a eles na luta pelo fim da opressão”[11].

Marx e Engels colocam no Manifesto, sua chamada universal ao proletariado: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”, Gutierrez e companhia conclamam a igreja a se unir aos pobres e lutar por sua libertação, para isso, se for necessário, deve-se utilizar a violência, pois somente assim pode-se “combater a violência institucionalizada dos regimes opressivos”[12], casos como o de Camilo Torres, ex-padre, que se envolveu na luta armada e foi morto, foi um exemplo da utilização da violência para uma revolução dos mais pobres.[13]

Um outro teórico da T.L. é o teólogo protestante Miguez Bonino, que afirma, “uma fé cristã significativa, deve, ser mediada através de uma participação histórica e politica.”[14]. Os cristãos deveriam cada vez mais estar atentos aos problemas sociais, iniciando de forma vaga, depois levando a um engajamento ativo nas questões de ação social, vindo a entender que a estrutura politica é o principal e que uma analise sócio-política é necessária para uma reflexão teológica, levando em conta a complexidade socioeconômica e politica.[15] Para Bonino, a utilização da teoria marxista é valida pois não foi Marx que a descobriu,

“Até Calvino”, ele diz, “com forte realismo descreve os domínios econômico e social, sob o domínio do pecado, como um campo de batalha em que a ganância e egoísmo destruíram uma comunidade original de justiça e introduziram a exploração, a injustiça e a desordem.”[16]

Longe da América latina e fora do campo da TL e da TMI, está o teólogo escocês, Allistair Maclntyre, ele foi atraído pelo marxismo devido a ruptura entre teoria e prática, o teólogo encontrou nessa ideologia, juntamente com o cristianismo, explicação para o desenvolvimento prático e teórico das duas maneiras de ser e de pensar[17]. MacIntyre entendia o “deserto moral” como a consequência inevitável de uma época em que a razão teórica e a razão prática eram divididas sem que houvesse qualquer maneira de reuni-las[18], Para Macintyre, foi devido a falha do cristianismo em dar visão e incluir na ordem social, os diversos grupos, que o marxismo surgiu[19], pois no marxismo estão as funções que deveriam estar no cristianismo do ponto de vista da interpretação da existência humana e seu conteúdo, trazendo respostas as insignificâncias da finitude, logo, o marxismo seria o sucessor histórico do cristianismo[20].

A preocupação com a causa do pobre é algo muito repetido nas escrituras, no velho testamento Deus deixa ordens diretas para com os mais necessitados, que naquele contexto, seriam o pobre, o órfão e a viúva. (Dt 15.4; Ex 22.25; Lv 25.35,36; Lv 19.10;Dt.24.19–21…)Promessas são feitas àqueles que honram ao pobre (Sl 41.1;Pv 14.31). Vemos o cuidado com o pobre explicitado nas palavras do profeta isaías:

Por que jejuamos nós, e tu não atentas para isso? Por que afligimos as nossas almas, e tu não o sabes? Eis que no dia em que jejuais achais o vosso próprio contentamento, e requereis todo o vosso trabalho(…)Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo?Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?Então romperá a tua luz como a alva, e a tua cura apressadamente brotará, e a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda.Então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo, e o falar iniquamente;E se abrires a tua alma ao faminto, e fartares a alma aflita; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio-dia.E o Senhor te guiará continuamente, e fartará a tua alma em lugares áridos, e fortificará os teus ossos; e serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca faltam.(Is.58:3;6–11)

Isaías, em suas palavras, mostra que a razão pela qual Deus não estava escutando seu povo porque ignorava o pobre e não se preocupava de libertá-lo de sua opressão.

Mesmo com tantos alertas sobre a causa do pobre, a igreja em geral é alheia a esse fato, são poucas aquelas que tentam de certa maneira estar atenta a essa questão, dessa maneira, ela mesmo produz a abertura para que ideologias espúrias possam atrelar-se ao evangelho e causar esse sincretismo entre marxismo e cristianismo, como a TMI ou a TL.

Logo, as críticas trazidas pela TMI e a TL são válidas para que verifiquemos onde as bases bíblicas foram esquecidas e os alertas sobre o cuidado ao pobre e as causas sociais, infelizmente, uma tensão é posta entre a imanência divina e sua transcendência, nessa tensão, geralmente um dos lados é focado e o outro negligenciado, como constata Dulci:

Quando tal equilíbrio não está presente, problemas teológicos não tardam em surgir. Assim, uma ênfase excessiva na transcendência pode levar a uma teologia que é irrelevante para o contexto cultural que ela deseja alcançar, enquanto uma ênfase exagerada na imanência pode produzir uma teologia presa a uma determinada cultura.[21]

A tentativa do cristão sério deve ser de tentar encurtar essa tensão, caminhar para o equilíbrio entre teoria e prática, o que não é fácil, pois sempre uma das duas pontas requererá maior atenção, mas o exercício é válido para que não se busque teologias ou ideologias que tentam deturpar a verdadeira fé em detrimento de uma visão mais voltada aos pobres e as causas sociais.

Entretanto, um outro problema surge, qual é a meta final marxista?

Continua no próximo texto: A utopia marxista, leia aparte 2.

BIBLIOGRAFIA:

[1] Duncan Mitchell,G. (ed.), A New Dictionary of the Social Sciences, Second Edition, Transaction Publishers, 1979: “praxis.

[2] MILLER,E. e GRENZ,S. Teologias contemporâneas, 2011.p.166

[3] BORMAN,J. A study in christianity, marxist ideology and historical engagement with special reference to the liberation theology of jose miguez bonino, 1982.p23

[4] DULCI,P., Ortodoxia Integral.2015,p.52–53

[5] Idem.p.53

[6] YODER,J.H. ‘’Radical Reformation Ethics in Ecumenical Perspective”, Journal of Ecumenienical Studies, Vol 15, 1978, p647

[7] YODER,J.H., Reinhold Niebuhr and Christian Pacifism (Scottdale: Church Peace Mission, Herald Press 1968),p.21

[8] MARX,K.Capital Vol.1. I. Trans. S. Moore and E. Aveling (London:George Allen and Unwin). P.788–789

[9] MILLER e GRENZ. Teologias contemporâneas.p.174

[10] Ibid.175

[11] Ibid.176

[12] Ibid.177

[13] Ibid.164

[14] J. Miguez Bonino, “Five Theses”, p197–8

[15] J. Miguez Bonino, “Historical Praxis, p261

[16] J, Miguez Bonino, Doing Theology,p.119

[17] Macintyre, Marxismo y cristianismo,2007.p.8

[18]Barceló R. (2011). MacIntyre y el Marxismo: Historia, Compromiso y Razones para la Acción. CRÍTICA, Revista Hispanoamericana de Filosofía. 43(127).p.78

[19] Macintyre,2007.p.34

[20] Ibid.p.35

[21] Dulci, 2015,p.61–62

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Thiago Holanda Dantas
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Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2