Por que a população brasileira não se manifesta como a estadunidense?

Thiago Torres
5 min readJun 5, 2020

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Muitas pessoas vieram perguntar a minha opinião sobre o porquê de aqui no Brasil não acontecerem manifestações antirracistas iguais às que estão acontecendo nos Estados Unidos. E depois de responder essa pergunta algumas vezes, achei que seria interessante transformar essas minhas reflexões num texto e compartilhar com vocês.

Bom, eu acho que existem muitos fatores pra isso, e não só um. Eu vi algumas pessoas acusando a população negra brasileira de ser covarde, de não ter coragem pra se manifestar, e isso é uma das maiores merdas que alguém pode falar. Em primeiro lugar, porque sim, existem manifestações mais radicalizadas quando pessoas nas favelas são assassinadas por policiais. Os moradores fecham avenidas, queimam pneus, e muitas vezes até carros e ônibus! A diferença é que esses protestos são menores, ficam mais restritos ali, à própria comunidade, não tomam grandes proporções. Isso porque a esquerda branca de classe média não quer ir até a favela dar suporte às manifestações dos moradores, eles esperam que os protestos cheguem até o centro. Então revolta não falta, indignação não falta, e muito menos coragem ou vontade de lutar. O que falta, então?

Outras pessoas levantaram a questão da falta de escolaridade. Me perguntaram se não ter ensino superior e conhecimento acadêmico seria o motivo. E gente, essa suposição é tão absurda quanto a primeira. Ninguém precisa fazer faculdade pra entender que a polícia é muito mais violenta com quem é pobre e preto. Eu cresci com total consciência disso, assim como todo mundo ao meu redor. Além disso, vale lembrar que a revolução russa, a maior revolta de trabalhadores da história, foi feita por camponeses e operários pobres e analfabetos. Enfim, eu vivo tanto na periferia quanto na universidade, e eu garanto pra vocês que a galera da quebrada tem muito mais consciência de que esse sistema é uma merda do que os acadêmicos de classe média. Assim como mais revolta e vontade de fazer alguma coisa. Até porque quem é favelado infelizmente cresce aprendendo a resolver as coisas na base da violência mesmo, então não é difícil convencer a galera de que só com uma grande revolta a gente vai conseguir mudanças concretas nesse país.

Ok, mas se o problema não é a coragem e nem o estudo, qual é? Como eu disse, existem vários fatores. O primeiro deles, eu diria que é a diferença entre as culturas de manifestação entre o Brasil e os Estados Unidos. Historicamente, o jeito de se manifestar no Brasil e nos Estados Unidos sempre foi diferente. Porque aqui a população negra é a maioria e foi convencida de que o Brasil a acolhe, que ela tá integrada de fato à sociedade brasileira. Já nos EUA a população negra é a minoria e sempre foi segregada da sociedade, e mais do que isso, perseguida e assassinada abertamente por membros da sociedade civil, ou seja, cidadãos comuns e organizações racistas, e não só por policiais. A população negra estadunidense precisou aprender a ser unida e a se ver como um povo (mais ou menos o que os Racionais tentaram começar a construir aqui com o Sobrevivendo no Inferno). Eles sabem identificar o racismo e foram obrigados a usar todos os meios possíveis pra lutar contra ele e conseguirem sobreviver. Vocês já ouviram falar dos Panteras Negras, né? Eles são um exemplo disso, eles foram um grupo de pessoas negras que, armadas, lutavam contra o racismo e a violência policial. O uso de armas e da "violência" no combate ao racismo não é uma novidade pros estadunidenses.

E ter essas referências, ter em quem se inspirar pra formar uma luta radicalizada, na minha visão, é outro fator que faz com que essas lutas aconteçam lá e aqui não. Além dos Panteras Negras, Malcom X, Angela Davis, e várias outras lideranças negras que vivem ou viveram recentemente servem de inspiração pra galera de lá. Aqui a gente não tem isso. As maiores referências de lideranças negras radicais que a gente tem são do período da escravidão, ficando difícil usar eles como referência pra lutas atuais, em outro contextos.

Mas enfim! Acho que tem mais dois fatores que se destacam nisso tudo. Um deles é a brutalidade da polícia. A polícia brasileira é literalmente a que mais mata no mundo. É uma polícia militarizada extremamente violenta, que reproduz atitudes da ditadura com um armamento de guerra. Muitas favelas brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro, veem tanques de guerra andando nas ruas no dia a dia. Imaginem só como não seria num contexto de rebelião social? Com certeza a repressão seria gigante, muito maior do que nos Estados Unidos.

Mas isso significa que a gente tem que ter medo e ficar sem fazer nada? Não! E isso tem a ver com o último tópico que eu quero abordar, que inclusive eu acho que é o principal, que é a falta de uma organização coletiva radical. Como assim? Bom, o Movimento Negro brasileiro existe, é grande e relativamente forte, já teve muitas conquistas importantes, como as cotas raciais nas universidades, por exemplo. Mas o Movimento Negro brasileiro, assim como quase todos os outros movimentos sociais atualmente, não tem lideranças radicais. Não tem uma visão radical de mudança da sociedade. As maiores referências que nós temos sobre a luta antirracista (e as outras também) não são de pessoas que instigam revoltas sociais, mas de pessoas que acham que todas as mudanças vão acontecer dentro da institucionalidade, através de eleições, petições, e coisas do tipo. E quando eu falo sobre "lideranças" eu me refiro a políticos, a partidos, sindicatos, intelectuais, youtubers, jornalistas… E se vocês pararem pra ver, a maioria deles não estão no dia a dia organizando a revolta que surge nas pessoas e mostrando um caminho revolucionário a elas. Quando fazemos manifestações, essas lideranças, que tem o poder de voz no carro de som, que tem o poder de guiar a manifestação, não fazem falas que agitem os manifestantes, sempre são falas e atos defensivos.

Nós ficamos presos ao "parem de nos matar”, mas eu aprendi que a gente não pede pro opressor parar de nos matar, a gente não pede pra ele parar de nos oprimir, a gente não pede pra ele nos dar direitos, nós é que precisamos lutar e arrancar isso dele! E faz toda diferença se as direções das principais organizações de esquerda instigam diariamente o pacifismo, o reformismo e a conciliação! E enquanto a mentalidade dos membros dos movimentos sociais, sua forma de ver o mundo e de se ver no mundo está sendo organizada por lideranças reformistas, a mentalidade da maior parte da classe trabalhadora está sendo organizada por igrejas, que além de não serem revolucionárias e nem reformistas, são conservadoras.

Então, a conclusão aqui é essa: o problema não está nas pessoas, na falta de coragem ou na falta de força pra lutar, mas simplesmente na falta de amparo, inclusive dos brancos que se dizem aliados. As pessoas querem ir pra luta, mas elas precisam estar amparadas, precisam ter líderes que vão apoiá-las, não criminalizá-las, como muitos fizeram em junho de 2013! Mais uma vez: a polícia brasileira é a mais violenta do mundo. Uma manifestação de grandes proporções exige muita organização, muita união e muito suporte dos partidos políticos, das mídias de esquerda, dos sindicatos, de advogados e juristas de esquerda, e por aí vai..

Então esse é o apelo que eu faço pra vocês: se vocês querem mesmo manifestações fortes no Brasil, divulguem suas ideias pro máximo de pessoas, convide elas pra lutar ao seu lado e, principalmente, pressione todas as organizações e lideranças de esquerda a aderirem a essa causa. A gente tá num momento decisivo da nossa história, onde coisas que sempre foram jogadas pra de baixo do tapete vieram a tona e precisam ser enfrentadas. É hora de ter mais pulso firme!

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Thiago Torres

Cientista Social em formação pela USP; Cria da Zona Norte; Palestrante e Youtuber; Vim pra sabotar seu raciocínio 🎶 Insta: thitorresz; Canal: Chavoso da USP