Nós, os latinos?

Thomaz Amancio
11 min readSep 10, 2019

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Exemplo da pintura de castas, parte de um sistema de classificação racial da Nova Espanha colonial

Semana passada, o escritor Sérgio Rodrigues publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo um texto intitulado “Nós, os latinos”, no qual comenta uma cena do filme Bacurau (não pude ver o filme ainda, então me baseio na descrição de Rodrigues) em que uma dupla de brasileiros sudestinos, acreditando ser brancos como os americanos com os quais conversam, são desmentidos por esses, que debocham da ‘branquitude desejosa (aspiracional)’ da dupla. Rodrigues então busca contextualizar a história e o uso atual do termo “latino”, que segundo ele próprio é para nós brasileiros ao mesmo tempo “familiar e estranho”.

O fato de ser necessário explicar o termo latino, e também explicitar que os “brasileiros” da cena são de uma região específica, mostra como é redutor utilizar um “nós” generalizante que englobe tanto uma população nacional (“os” brasileiros) quanto uma continental-racial (“os” latino[-americano]s). Brasileiro e latino são categorias, de matiz nacionalista e racial, com uma história longa e complicada, criadas e constantemente capturadas por projetos de dominação — o estado colonial, o estado nacional, o estado estrangeiro imperialista. Por outro lado, nos EUA, a etiqueta ‘latino’ também foi assumida mais recentemente pelas populações a quem ela havia sido imposta, num movimento semelhante ao do ‘orgulho negro’ ou do ‘orgulho LGBTQ’.

Se categorias são instrumentos de dominação e opressão, como podem ser ao mesmo tempo armas de vida e resistência? Essa é uma discussão antiga, e não resolvida, tanto no movimento negro, quanto no movimento LGBTQ, quanto no movimento feminista — entre outros, e em cada caso com suas particularidades. Não pretendo me aprofundar nessa discussão, mas gostaria de oferecer um pouco de contexto, no caso da equação “brasileiro = latino”, para ‘problematizar’ esse resultado, quer dizer, tentar encontrar os potenciais e os limites dessa igualdade que, como Rodrigues admite e a cena de Bacurau ilustra, está longe de ser uma conta simples.

Falso latino?

Recentemente, o youtuber americano Tim Cunningham, que viveu no Brasil e faz vídeos sobre o país, postou um vídeo afirmando que “Brasileiros não são latinos”. Seu argumento aponta para diferenças linguísticas e culturais entre o Brasil e os países hispano-americanos, mas também destaca que tampouco as pessoas de outros países da “América Latina” se consideram tão latinas assim. Uma pesquisa da USP de 2015 indica que apenas 4% dos brasileiros se consideram latinos, mas mesmo nos outros países onde a pesquisa foi realizada essa proporção não chega a 50%, no máximo.

Com isso, não quero dizer que então é Cunningham que está certo e brasileiros definitivamente não são latinos, nem que a auto-imagem generalizada da população brasileira não pode ser enganosa. Identidades, afinal, não se constituem pela vontade de um sujeito soberano, mas pela colaboração de diversas forças sociais. Quero dizer que a igualdade “brasileiro = latino” não faz sentido fora de um contexto. À pergunta “é ou não é?”, é preciso responder: Onde? Para quem? Tratar esse problema exige superar a concepção de identidade como algo fixo e exclusivo. Identidades são móveis e contingentes, no sentido de que dependem de um contexto para existir. Não só são construídas, mas também exigem manutenção constante. Entre as funções do estado policial, se encontra justamente a de policiar os limites do que certos corpos marcados podem ou não podem, para evitar que esses corpos designados como “outros” se misturem ao corpo político do “nós mesmos”.

No caso da identidade “latino”, o termo esconde uma multiplicidade de sentidos e usos diferentes. Por um lado, e isso é o que propõe Rodrigues, latino quer dizer latino-americano. Mas até falar em América Latina não é tão simples quanto parece. A ideia de uma “América Latina” — como aliás de uma “Europa”, de uma “África”, etc. — precisou ser criada. O fato de essa criação ter consequências históricas profundas não significa que precisamos tomar esse recorte como dado: devemos, ao invés disso, explorar as minúcias do estabelecimento dessa categoria na realidade, e as consequências desse processo para o presente. Mais sobre isso adiante.

Por outro lado, latino hoje quer dizer sobretudo a categoria racial vigente nos EUA, que distingue os “imigrantes” (mexicanos, cubanos, dominicanos, portorriquenhos…) e seus descendentes (entendidos como hispanohablantes) dos “verdadeiros americanos”, brancos, “anglo-saxões”, etc. Embora uma parte considerável do território dos EUA tenha sido tomada do México, os descendentes de quem vivia ali são considerados latinos, enquanto os descendentes dos imigrantes ingleses puritanos são simplesmente “americanos”. Como canta a banda Los Tigres del Norte, “I didn’t cross the border, the border crossed me” [eu não cruzei a fronteira, ela é que me cruzou]. O taco é o prato nacional dos EUA, embora pressupostos racistas continuem a atribuir-lhe uma condição meramente “étnica”.

Talvez o brasileiro que vai para os EUA seja racializado como latino, mas (a) não necessariamente e (b) não quer dizer que no Brasil ele seja. A categoria racial latino (como aliás a categoria geopolítica América Latina) é profundamente dependente da perspectiva imperial dos EUA — e, dentro dos EUA, dependente da região onde você se encontra. Em Miami, onde a presença cubana é muito forte, existem divisões entre cubanos, “outros” latinos, e a população afro-americana. Em Nova York, onde latinos e afro-americanos viviam nos mesmos espaços e sofriam com as mesmas violências, formaram-se alianças políticas entre esses grupos. Em Chicago, em algumas áreas há tensões político-raciais entre descendentes de mexicanos e de porto-riquenhos. No Texas… (e por aí vai). De qualquer modo, um brasileiro branco em Chicago, falando português, possivelmente vai ser tomado por leste-europeu ou até francês, enquanto o espanhol (ou outra cor de pele) é imediatamente reconhecível e marcado.

Um parêntese sobre a instrumentalização política da racialização: como já mencionei, existe uma tensão entre as categorias identitárias que um indivíduo ou grupo “cultiva” e aquelas que os aparelhos de captura do estado mobilizam. Antes da Segunda Guerra, por exemplo, alguns grupos de judeus europeus negavam ou questionavam a identidade judia generalizante que lhes era atribuída e seria usada para persegui-los. Nessa entrevista famosa (agradeço a referência a Ricardo Domeneck), Hannah Arendt pontua que “se você é atacado como judeu, você precisa se defender como judeu, e não como cidadão do mundo ou membro da humanidade”. É preciso “vestir a carapuça” para poder lutar pela própria existência.

No nosso caso, porém, é preciso enfatizar o “se você é atacado”: a identificação defensiva é uma resposta a uma pergunta (um interrogatório ou formulário). A identidade só se “revela” quando é encurralada (e grupos minoritários, no Brasil, nos EUA, ou alhures, vivem encurralados). Um brasileiro privilegiado (como eu) deve tomar cuidado com o termo latino, sob o risco de não estar atrás de uma opressão para chamar de sua. Às perguntas onde e para quem, podemos adicionar: quais brasileiros? É a esse tipo de questão, por exemplo, que o movimento Afro-latino se dirige. Mesmo para construir alianças, demonstrar solidariedade, e levantar a bandeira da latinidad, é preciso ter consciência de sua própria posição e de suas próprias vivências. Se a “aspirational whiteness” dos sudestinos de Bacurau é ridícula, o abraço impensado da “latinidad” também pode ser.

Lugar Comum

“A América Latina, de suas origens como conceito até hoje, tem sido fundamentalmente a persistência mutável de um único antigo, teimoso e aparentemente insuperável conceito: o de raça.”

O livro Latin America: The Allure and Power of and Idea, do historiador mexicano Mauricio Tenorio-Trillo, faz uma história crítica do conceito de América Latina que, a meu ver, pode ser muito útil nessa discussão. É um livro essencial pra quem quer usar a categoria em qualquer de suas formas, fugindo dos clichês e ideias sem fundamento tomados como verdades essenciais.

Tenorio acompanha duas linhas distintas: a genealogia do termo e os sentidos que ele veio a adquirir e nos quais é usado.

No primeiro caso, há uma inequívoca carga racial no conceito de América Latina, derivada de ideias sobre iberismo e latinidade em voga no séc. XIX, que deságua no termo atual latino. Tenorio situa a noção de uma América “latina” no compasso dos movimentos políticos influenciados pela teoria social racista da Europa do XIX. Movimentos como o “Pan-Germanismo” ou “Pan-Eslavismo”, que pregavam a união política de povos e nações a partir de uma premissa racial, tiveram como contrapartida a latinité, centrada na França, e o iberismo, que emanava da Espanha e de Portugal. Em ambos os casos, tratava-se de um gesto imperialista, que buscava conservar a influência das antigas metrópoles sobre a região, em oposição à emergente influência dos EUA — nação “anglo-saxã”.

A presença dos EUA adicionava um elemento complicador no cenário americano, triangulado entre as jovens nações locais, as antigas metrópoles e o novo império do norte. O recorte racial contribuía para traçar essas fronteiras políticas, desenhando um mapa e distribuindo os possíveis aliados, os inimigos, e os “irmãos consanguíneos.” Nesse contexto, o conceito de América Latina surge e é cultivado por uma classe intelectual, com consequências institucionais e políticas irregulares e, até muito recentemente, pouquíssima penetração na percepção das “massas”.

Acompanhando (a ausência d)o conceito na música popular, Tenorio observa que só a partir dos anos 70, período em que o autoritarismo político e o exílio criaram as condições para uma experiência comum latino-americana, a ideia de América Latina adquire uma presença relevante na cultura de massas — mas isso também acaba sendo uma “tendência” com data de validade. Afinal, era sobretudo à classe artística e aos consumidores dessa arte que o chamado latino-americano se dirigia, esse desejo de pertencimento e de apoio mútuo em uma situação desesperada que só ali a classe média exilada vinha a conhecer.

É importante lembrar que, no Brasil de Vargas, foi necessária uma verdadeira campanha de guerra para convencer a população do país de que éramos todos “brasileiros”. O regime elegeu símbolos “nacionais” e os mobilizou através dos meios de massa para garantir, através da fixação de uma identidade nacional, a coesão territorial sempre tão ameaçada no país (ver, por exemplo, O mistério do samba, livro de Hermano Vianna). No caso da América Latina, nada parecido jamais aconteceu, salvo por um breve período nos anos 70 (e talvez esteja voltando a acontecer, da maneira mais estranha, por meio do feedback loop que generaliza a situação racial dos latinos nos EUA para todo o continente, mas ainda estamos vivendo esse processo).

Além de traçar a origem e a penetração da ideia América Latina, Tenorio também analisa a maneira como ela tem sido utilizada, e conclui, sem muita surpresa, que o conceito está associado a uma série de lugares-comuns e conclusões automáticas simplistas ou falsas (ou racistas) sobre a região, que possuem uma admirável capacidade de se reciclar e mudar de aparência sem perder certos marcadores essenciais. Um dos primeiros proponentes da ideia de América Latina, o chileno Francisco Bilbao, descrevia os latino-americanos como aqueles que “acreditamos, e amamos, tudo o que reúne; preferimos o social ao individual, a beleza à riqueza, a justiça ao poder, a arte ao comércio, a poesia à indústria, a filosofia aos textos, o espírito absoluto aos cálculos, o dever ao interesse”. Tenorio chama de “lei de Bilbao” essa síntese da América Latina como pátria do (mutatis mutandis) selvagem, livre, irracional, retrógrado, autêntico, corporativista, anti-moderno, subdesenvolvido, violento… Em suma, uma série de clichês que assumiram diversas faces, mas mantiveram o mesmo espírito. A América Latina é tudo que os EUA não são, ou que a Europa não é…

Corta para: “Latin America” (em inglês) como recorte institucional na academia americana, que “atualiza” esse ser suposto performativamente, agregando departamentos de espanhol e português e até Latino Studies debaixo desse horizonte geográfico/racial/cultural. As lutas por presença institucional e financiamento, que dialogam com o estabelecimento, nas últimas décadas, de programas e departamentos de African-American Studies, por exemplo, produzem essa máquina estranha, que reúne o estudo da literatura do Siglo de oro espanhol e de performances de artistas peruanos contemporâneos; da poesia indígena da Amazônia e da prosa urbana de Buenos Aires; às vezes de modo fértil e surpreendente, às vezes de modo simplesmente desconcertante.

De modo que, se América Latina outrora surgiu como ideia de oposição aos EUA e à Europa, ou aos Anglo-Saxões e aos Eslavos, hoje ela é atualizada pela racialização de “latinxs” nos/a partir dos EUA, e pelo recorte institucional dos departamentos universitários. Para Tenorio, em princípio, seria mais adequado, intelectual e politicamente, considerar os territórios em suas relações imanentes. A história (e o futuro) do México, por exemplo, está muito mais entranhada na história dos EUA (e vice-versa!!!) do que na de qualquer país do cone sul.

O mesmo pode ser dito do Brasil (e dos brasileiros), cujas relações econômicas, políticas, culturais se distribuem por caminhos que se distanciam muito desse “latinoamericanismo” abstrato… O 3° capítulo do livro se chama “The Question of Brazil”, e tem o delicioso subtítulo “An inevitable note on Brazil’s historical ‘Yes, but no thanks’ to the idea of being Latin American” [uma inevitável nota ao histórico ‘Sim, mas não obrigado’ do Brasil em reação à ideia de ser latino-americano]. Tenorio sugere que o movimento histórico do Brasil foi o de buscar “des-latinoamericanizar-se”, seja cultural, seja politicamente. O mesmo se dá no outro sentido: a “América Latina” tem ignorado ainda mais o Brasil do que o contrário. Para Francisco Bilbao, nem o Brasil nem o Paraguai eram latino-americanos.

Há diversas razões para essa ruptura: a geografia uma das mais importantes. O interior do continente (ou seja, as regiões de fronteira do Brasil com os países vizinhos) até muito recentemente permaneceu isolado com relação aos centros de poder e cultura. Além disso, a história política do Brasil é bastante singular: caso único na história, um rei da metrópole foi coroado na colônia. E o herdeiro do trono conduziu a independência. O Brasil efetivamente atuou como um império (de família real europeia!) desde princípios do XIX. A percepção da Europa e dos EUA com relação ao Brasil tinha por isso também um caráter distinto, em contraste com as “repúblicas” “liberais” “anárquicas” da região.

A língua, obviamente, tem também um papel essencial no processo. Enquanto os diversos países da América hispánica partilham uma certa aparência de comunicabilidade, com o Brasil em cena há uma ruptura. Isso se reflete no movimento de pessoas, de teorias, de literatura, música… Enquanto alguns intelectuais brasileiros recorriam ao espanhol (mas muito mais ao francês) para ler os clássicos traduzidos (mas não tanto a literatura autóctone), os intelectuais argentinos, ou peruanos, ou mexicanos, ignoravam e ignoram o português.

No nível institucional, a diferença linguística também tem consequências. Um exemplo: em 1858, foi fundado em Roma um colégio para padres de elite da América espanhola e portuguesa. Mas em 1927 o clericato brasileiro pediu e recebeu um colégio próprio, onde dominariam “a língua e a cultura” brasileiras. Enquanto os padres de outros países da região conviviam entre si no exterior, os brasileiros ficavam com brasileiros.

Passagens

Tudo isso, obviamente, não quer dizer que não existam relações, trocas e heranças comuns entre o Brasil e outros países da América Latina. Só dificulta atribuir essas partilhas a um conjunto de vetores comuns generalizado que seria possível aplicar a todo o continente, da Patagônia ao deserto de Sonora (excluídas certas partes do Caribe).

A “civilização” canavieira do Nordeste, por exemplo, partilha estruturas e história com Cuba, mas também com a Jamaica e o Haiti, que se encontram fora do escopo da “América Latina”. O sul brasileiro, através dos Pampas, se conecta com o Uruguai e a Argentina — mas também com a Alemanha através de seus imigrantes. Alejo Carpentier, em La música en Cuba, já apontava para a necessidade de pensar as formações culturais a partir de “zonas geográficas” transnacionais. Não devemos parar aí: o “Atlântico Negro” é tão importante para a história e a cultura brasileira quanto a Amazônia. Os países lusófonos prestam muita atenção no Brasil, embora o Brasil os ignore. A China, segundo Gilberto Freyre, contribuiu enormemente para a cultura material do Nordeste colonial.

Se pensar em termos de América Latina abre muitas portas para entender a circulação e os diálogos da história, também pode nos cegar para outros caminhos e passagens possíveis que não atravessam essa região. Por outro lado, se nos apropriamos do conceito para construir um horizonte político, também devemos ter cuidado para não idealizar e ideologizar as relações imanentes que nos constituem.

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