“nunca na história do mundo”

rubini
5 min readNov 21, 2017

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Ontem, 20 de novembro, dia da Consciência Negra, aconteceu a mesa “A judicialização da arte: Queermuseu e a CPI dos maus-tratos”, organizada pela Clínica de Direito e Arte da UFPR. Você pode conferir o registro dela no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=BjxgdjVFw9o .

O que fazer em relação à CPI dos maus-tratos, presidida por um fundamentalista corrupto e cínico? Ou pior: como discutir com um fundamentalista corrupto e cínico sem legitimar suas concepções desonestas de família, ideologia e orientação política?

José Carlos Fernandes, docente de Comunicação Social na UFPR e ex-funcionário da Gazeta do Povo, foi sensato ao dizer que não é possível estabelecer interlocução com pessoas sem honestidade intelectual ou política em relação a certos assuntos. De fato, sabemos que não tem sido (jamais foi) viável debater laicidade, sexualidade ou qualquer coisa que o valha com fundamentalistas.

Fernandes sabe também o quanto é sofrido debater arte mesmo entre aquelas pessoas com pós-graduação, que acreditam na laicidade do estado. Na época em que trabalhava na Gazeta do Povo, teve que convencer a chefia do jornal de que reportar exposições de arte no caderno cultural era importante. Por meses trabalhou em justificativas, por exemplo levantando estatísticas sobre a visitação em museus em Curitiba.

O que nos leva a outra enorme dificuldade causada pelo conservadorismo e falta de intimidade com a pesquisa acadêmica da chamada elite intelectual brasileira: a exotização do funk. A Professora Estefânia Barboza, pesquisadora de Direito, começou a sua fala citando as letras de duas músicas de funk carioca, dizendo que o funk é machista e baixo e que ela não gosta, obviamente querendo fazer uma distinção entre o funk e Gaudêncio Fidélis, curador da exposição em pauta no evento.

Profª Estefânia, a senhora se esqueceu do constrangimento que uma repórter reacionária do SBT infligiu a Mariana Gomes, pesquisadora da UFF, dizendo em rede nacional que funk e feminismo jamais casariam e que portanto a pesquisa dela era um embuste? Isso aconteceu quatro anos antes da Queermuseum.

A falta de sensibilidade de Barboza, que nada sabe sobre funk carioca e a pesquisa acadêmica que ele inspira na antropologia, nos estudos de mídia, na musicologia (vide as pesquisas de Adriana Facina, Carlos Palombini, Hermano Vianna, Mariana Gomes, entre tantas outras), mostra que ela não deveria discutir publicamente o assunto antes de melhorar o seu repertório. Ao escutá-la falando desta forma sobre o funk e logo em seguida expressando pesar pela perseguição às dissidências identitárias no país, baseada na exposição Queermuseum, fiquei muito frustrado. E o fato de isso ter acontecido no dia 20 de novembro não ajuda.

Que eu saiba, por enquanto não existe uma cartografia do ativismo, do artivismo ou simplesmente da arte queer/cuir/kuir no Brasil ou na América Latina. Mas existem grupos e artistas conhecidas em todo o continente que atuam com base em discussões sobre teoria queer, pós-estruturalismo, colonialidade, interdisciplinaridade, entre outros assuntos quentes tanto nas artes quanto na academia. Sendo generoso, acho que poucas dessas pessoas passaram perto da Queermuseum.

Se eu pudesse dizer algo diretamente a Gaudêncio Fidélis, seria o seguinte: eu sinto muito pela perseguição que você está sofrendo. Também quero combater o fundamentalismo. Mas eu ainda não entendi o risco que você escolheu correr chamando a sua exposição de Queermuseum. Eu sei que o seu mestrado foi defendido na NYU, mas nunca te vi em congressos que discutem a teoria queer e suas aplicações no Brasil. Quanto menos te vi em eventos que discutem a dissidência de gênero, racismo ou assuntos relacionados, antes da sua exposição no Santander. Pelo contrário, o que vi foi uma pessoa branca prometendo “esclarecer” o debate, discurso que jamais seria dito em muitos dos contextos que discutem arte e questões sociopolíticas no país. Também não sei qual é a sua opinião em relação à perseguição que uma artista do Coletivo Coyote sofreu depois de fazer uma performance no campus de Rio das Ostras da UFF em 2014.

Mas você parece querer reclamar pra si o título de curador que colocou a discussão queer no mapa das artes, e isso foi antes do incidente no Santander, quando pensou a concepção da Queermuseum. Ou você não tinha ouvido falar da insatisfação de ativistas e artistas do país todo com relação à sua abordagem?

A arte transviada que se declarou queer/kuir/cuir entrou no Brasil pelo nordeste. Solange to Aberta!, por exemplo, foi uma das primeiras (a primeira?) manifestações artísticas que cruzaram o país aplicando a visão da teoria queer de que sexualidade e gênero são processos culturais que acontecem em meio ao status quo classista, racista e sexista.

Documentário “Cuceta — a cultura queer de Solange tô Aberta”, Dirigido por Cláudio Manoel Duarte.

O STA! escolheu o funk como linguagem, justamente pela versatilidade deste gênero artístico e musical em discutir e representar questões socioculturais e epistemológicas em meio a uma tradição elitista na academia, em muitos sentidos já nocauteada pelos estudos culturais, feministas e decoloniais. Pêdra Costa, uma das envolvidas no projeto STA!, também já foi difamada por conta de uma performance — sete anos antes da Queermuseum.

O que me leva à fala de Fidélis, que bradou nunca ter existido na história do Brasil tamanha difamação e perseguição a uma curadoria. Disse até que nunca na história do mundo houve um ato de censura institucional tão sinistro a uma exposição, se referindo à covardia do Santander, chegando a falar que “nem no nazismo” (ele declara isso a partir de meados dos 28:30 no registro do evento ) . Ah Fidélis, será mesmo? Tenho certeza que se a gente se debruçar na história da arte no capitalismo, vamos encontrar alguns outros exemplos.

O desmantelamento da UERJ, os ataques à proposta de Base Nacional Curricular e a visão do funk carioca como uma aberração cultural são todas oriundas do mesmo implacável sistema de sexismo, racismo e desprezo à pesquisa acadêmica. Lembremos disso e das artistas que foram perseguidas, violentadas, e que diferente do elenco da Queermuseum não têm visibilidade, contratos com galeristas e obras em coleções particulares, e que com muita frequência estão muito distantes da possibilidade de se sustentarem com o retorno financeiro de suas pesquisas. Lembremos da juventude negra massacrada pela sociedade brasileira, cujas expressões culturais são insistentemente deslegitimadas de maneira anti-intelectual, inclusive através de sandices anacrônicas proferidas por docentes de universidades federais.

Imagem feita por Jeffe Grochovs de panfletos jogados pelas galerias do Santander Cultural na abertura da Queermuseum.

O ativismo queer/kuir/cuir é interseccional e ele sempre vai lutar contra o fundamentalismo. Mas a luta também é contra opressões epistemológicas, apagamentos e assimilação. Queremos que exista plena liberdade de produzir arte e conhecimento crítico em relação ao status quo sexual e de gênero no país, mas também queremos ser vistxs e que o nosso trabalho seja reconhecido.

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