O cinema de animação consegue traduzir as mais sutis facetas da existência humana

Tiago Alcantara
10 min readJan 18, 2017

A terceira parte da entrevista com o pesquisador de animação e professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba, Alberto Lucena Barbosa Jr. também marca o último capítulo de uma verdadeira aventura pela história da animação.

O que deveria ser apenas uma troca de mensagens de "jogo rápido", com duas ou três declarações para uma matéria sobre o tema* se tornou uma experiência cheia de aprendizado a cada nova e completa resposta. Nesse trecho, Barbosa Jr. fala sobre a influência do cinema ocidental na arte de animação oriental e também comenta alguns dos estúdios que arrebatam audiências pelo mundo.

A identificação do estilo é tão importante — e um fato tão natural na arte — que é por meio desse fator que se faz a categorização da arte e se pode organizar seu desenvolvimento histórico

Para quem chegou agora, o caminho até aqui:

A seguir, a conversa com o especialista e autor do livro A Arte da Animação: Técnica e Estética Através da História (Editora Senac, 2002).

Ainda há um certo enquadramento do gênero de animação como uma produção voltada para crianças? Qual seria a razão para essa visão?

Alberto Barbosa Lucena Jr. — Essa é uma noção tratada de maneira confusa por gente da própria animação que, ou não entende a natureza do processo de produção disponível, ou quer mesmo se dar bem instaurando esse tipo de confusão.

A natureza artificial inerente a criação da imagem no cinema de animação naturalmente o conduziu a exploração da forma gráfica do desenho e da pintura como seu processo por excelência, visto a natureza ilimitada de expressão visual de tais mídias. Entretanto, se a animação podia usufruir dessa liberdade plástica, por outro lado a grande quantidade de desenhos necessários à confecção do filme impedia essa exploração gráfica ilimitada, especialmente no que se refere à figuração realista. Portanto, a tecnologia do cinema de base óptica não permitia que a animação explorasse a forma realista no mesmo nível icônico visto nas pinturas feitas com tinta a óleo da tradição clássica das artes plásticas.

A animação era, por isso, obrigada a trabalhar com uma forma gráfica simples. Essa forma gráfica estilizada inviabilizava o convencimento completo da audiência para narrativas dramáticas, que requeriam encenação elaborada para tratar de temática adulta. Mas era eficiente para lidar com a forma caricaturesca, humorística.

Os primeiros desenhos animados exploraram esse tipo de imagem destinada ao público adulto, porém fizeram sucesso mesmo foi com o público infanto-juvenil, que se identificava mais com tais imagens estilizadas e tramas igualmente simples baseadas em gags (piadas visuais). Os estúdios, claro, logo notaram esse apelo junto aos jovens e procuraram tirar vantagem econômica disso.

Disney rompeu com esse modelo após o advento do som, apresentando os primeiros atores sintéticos desenhados em tramas mais elaboradas. Mas havia um limite intransponível para os personagens desenhados que almejavam encenar temas sérios, sutis, pois a forma gráfica estilizada imposta pela tecnologia óptica não colaborava para estabelecer aquele contrato de suspensão de descrença com o público. Daí a animação de personagem acabar restrita aos temas de fantasia, aventura e ficção científica, cujas estórias são mais livres e apelam mais à imaginação, onde tudo é possível, onde se pode inventar à vontade sem cair no ridículo. E esse universo da fantasia é especialmente atraente ao público infanto-juvenil.

Hoje em dia, quando a animação digital 3D enfim permitiu a superação da barreira estilística imposta pela tecnologia óptica do cinema, os atores sintéticos hiperrealistas logo atraíram o interesse do público adulto para as estórias de fantasia. Só então esse público se permitiu a suspensão de descrença para embarcar nesse tipo de aventura.

Isso explica o sucesso dos recentes e atuais filmes de super-heróis, como também explica o fracasso do animador Ralph Bakshi em querer fazer O senhor dos anéis em desenho animado na década de 1970 — e o sucesso retumbante do cineasta Peter Jackson em refazer esse filme nos anos 2000, quando a animação computadorizada 3D enfim viabilizou a elaboração de efeitos e personagens sintéticos realmente convincentes.

O acesso aos trabalhos de estúdios orientais influenciou a forma como o ocidente faz animação? Ao mesmo tempo, vários produtos orientais se inspiram no cinema de Hollywood. Como se dá essa troca?

Alberto Barbosa Lucena Jr. — Na medida em que os filmes japoneses granjearam popularidade e respeito no ocidente, seria natural encontrar alguma influência do seu estilo por aqui. Afinal, trata-se de um fundamento da natureza: copiar o que dá certo — e em vista das condições, fazer adaptações e se possível melhorar. O próprio código genético, base da vida, funciona assim.

Na cultura humana é a mesma coisa. Não seria diferente com o cinema de animação. Por isso vejo um pouco sim da dinâmica das animações japonesas de fantasia/ficção-científica nos filmes de super-heróis feitos por Hollywood, e mesmo de certas concepções de efeitos (caso de explosões). Mas quando olhamos as animações puras, a influência dos animes no ocidente é praticamente nenhuma. Mesmo quando se assiste um filme com um robô gigante, como O gigante de ferro (Brad Bird, 1999), a mecânica e principalmente o espírito embutido no design geral (caracterização de personagem, enredo, fala, som, cor, etc.) possuem o padrão típico da tradição artística ocidental clássica.

O gigante de ferro (1999), de Brad Bird

A explicação está na estrutura da arte ocidental, na eficiência da estética do modelo clássico de arte, que estabeleceu um padrão universal de expressão (o mesmo ocorre com o modelo de explicação científica, não por acaso vindo a tona junto com o modelo clássico de arte na Grécia Antiga).

O mais comum mesmo é o inverso, com a animação japonesa se abastecendo na tradição clássica ocidental. Como é de conhecimento geral, toda a cultura japonesa moderna — bens de consumo, construção civil, moda, arte, etc. — é fruto de um investimento sistemático na cópia dos objetos e procedimentos ocidentais, decisão governamental que remonta a meados do século XIX e ficou conhecida como Revolução Meiji, a qual buscou modernizar o Japão, que, na metade do século XIX, vivia ainda em plena era feudal. Do mesmo modo fizeram os japoneses com o cinema de animação desde seu início. Mesmo quando, já na década de 1960, a série televisiva do Speed Racer estourou no ocidente, isso foi devido aos ensinamentos adquiridos por seu criador, Tatsuo Yashida, que trabalhou na versão nipônica do Super-homem e aplicou o estilo do super-herói americano em seus personagens.

O mérito dos japoneses foi conseguir fazer a adequada adaptação dessa influência com a sua antiga e original cultura. O resultado foi extraordinário, com o Japão sendo o único outro país que, ao lado dos Estados Unidos, efetivamente possui uma indústria de animação, com uma estética reconhecível que conseguiu se comunicar internacionalmente.

Estúdios como Disney, Pixar, Laika e Ghibli usam técnicas, argumentos e estéticas bastante diferentes. Como o sucesso comercial deles ajuda na popularização do gênero?

Alberto Barbosa Lucena Jr. — O ponto alto na carreira de qualquer artista é quando ele (e o público) se descobre detentor de um estilo original. É então quando realmente começa sua existência artística, ocasião na qual sua personalidade artística é revelada — e se dá o consequente retorno em termos de prestígio e dinheiro, já que o público naturalmente tende a valorizar obras que apresentam formulações artísticas estimulantes por seus diferentes e enriquecedores pontos de vista sobre aqueles temas que mobilizam as pessoas.

A identificação do estilo é tão importante — e um fato tão natural — na arte que é por meio desse fator que se faz a categorização da arte e se pode organizar seu desenvolvimento histórico. Se é assim com artistas individuais, esse fenômeno também é identificado em grupos de artistas, lugares, povos e épocas. Não podia, portanto, ser diferente com os estúdios, até porque trata-se de empreendimentos conduzidos por pessoas que geralmente se destacam exatamente por serem portadoras de capacidade artística especial.

Walt Disney: liderança no mundo da animação (Divulgação/Disney)

O estúdio Disney fornece o exemplo perfeito. Embora não tão talentoso como desenhista, Disney possuía um senso estético apurado, definindo a linha artística que colocou seu estúdio na liderança do mundo da animação desde sempre.

As apostas de Disney foram certeiras, seja no campo da estética como no desenvolvimento técnico — Disney sempre esteve na vanguarda em ambas as vertentes e serviu de modelo para outros estúdios de sucesso.

No Japão, Disney sempre foi a principal referência. No começo da década de 1980, quando George Lucas precisou de um animador para orientar o recém-criado departamento de animação digital na sua empresa de efeitos especiais, ele foi na Disney e contratou o John Lasseter. Aí começou a história da Pixar, sempre atrelada à Disney — e agora parte do mesmo conglomerado.

Com o estúdio Laika não é diferente — e o mesmo poderia ser dito sobre o Estúdio Aardman, também identificado com a animação stop-motion. Embora criado por um empresário de fora da área artística, o Laika foi erigido em cima do Estúdio Vinton, uma das grandes forças criativas na história da animação em stop-motion. E no seu início ainda foi buscar a colaboração de um animador de sucesso com stop-motion — Henry Selick dirigiu O estranho mundo de Jack, filme de grande impacto quando do seu lançamento em 1993, e dirigiu o primeiro filme da Laika (Coraline, 2009), mostrando a direção artística que o estúdio deveria seguir.

Laika: dez anos de evolução de Coraline até Kubo

O Laika chegou a explorar animação computadorizada, mas foram as soluções técnicas e expressivas conseguidas em stop-motion que atraíram o público ao identificar uma marca artística original. É isso que o público mais aprecia para valorizar um artista ou uma obra.

Meu vizinho Totoro (1988), de Hayao Miyazaki

O mesmo se verifica no estúdio Ghibli e outras produtoras japonesas, que não abandonaram a animação 2D tradicional, o visual delicado de pintura em aquarela, mesmo quando os temas tratam de violência urbana. Nisso eles estão ligados a sua tão antiga quanto bonita e original cultura de pintura com o uso da água. O público já espera esse tratamento plástico como uma marca desse estúdio.

Por sua vez, a Pixar nasceu atrelada ao desenvolvimento da animação digital 3D. Essa técnica aplicada na concepção de aventuras com personagens infantis sedutores, na linha da Disney, definiu junto ao público a “cara” da Pixar.

O alto padrão de qualidade desses estúdios garante ao público a certeza de sempre assistir bons filmes. Por sua vez isso também estabelece um alto padrão para a concorrência. Quem desejar entrar nesse mercado sabe que precisa oferecer obras capazes de rivalizar com esse nível de produção. Quem sai ganhando é o público — ainda que a dificuldade de concorrência possa limitar as escolhas do público àqueles estúdios que já conquistaram o selo de qualidade. Mas então o barateamento dos recursos digitais para fazer animação e a demanda por cursos de formação de animadores, apontam uma tendência de crescente oferta de filmes por parte de diversificados produtores. Além do público, é o próprio cinema de animação que ganha com isso.

Arte: Brau Nunes/ComCiência

Quanto a escolha temática e o tratamento dos argumentos, tanto na forma plástica como na estrutura narrativa, a animação em geral e os grandes estúdios que têm se destacado, o que se observa é um esmero dos artistas em proporcionar abordagens cada vez mais instigantes e capazes de sensibilizar igualmente o público infantil e adulto. Na verdade não há novidade nisso — só para ficar num exemplo famoso, cito os filmes Dumbo (Disney, 1941) e Gerald McBoing Boing (UPA, 1951) que apresentaram, com muita sutileza e criatividade, veja só, o problema do bullying, de que hoje tanto se fala. Foram feitos em desenho animado tradicional.

Gerald McBoing Boing: Oscar de melhor curta de animação de 1951

O que acontece agora é uma maior liberdade oferecida pelos recursos digitais que permite levar adiante a expressividade desses temas desafiadores. Isso acontece mesmo com o uso de materiais tradicionais, como se vê na animação stop-motion, que agora pode contar com controle computadorizado na fotografia e materiais com maior alcance plástico (silicones, ligas metálicas).

Na animação digital 3D, um filme como WALL-E (Pixar, 2008) mostra toda a ousadia a que a animação vem se permitindo, novamente apoiada no avanço técnico que a CG pode agora oferecer. Tendo por argumento o problema ecológico e o consumismo sem limite, o filme chega a passar seu primeiro terço sem diálogo, e no entanto segura firme a atenção do público por puro mérito cinematográfico. É um feito e tanto!

No extremo oposto, em um filme da mesma época mas de muita ação (Kung Fu Panda, Dreamworks, 2008), temos uma comédia de aventura que tira sarro dos clichês dos filmes de artes marciais, inspirando-se em elementos da cultura oriental para nos apresentar uma abordagem cinemática como não se vê nas animações feitas no Japão, China ou Coreia do Sul.

Enquanto isso, penso que no ocidente não se alcançaria a mesma verdade artística que se percebe no tipo de filme característico de uma produtora como o estúdio Ghibli.

Aquela mistura de natureza mágica e animação híbrida (ao mesmo tempo total e limitada), casa bem com aquela estrutura narrativa que nos parece desconexa mas encontra respaldo na filosofia, no folclore e na própria experiência histórica recente (e traumática) do povo japonês.

O conto da princesa Kaguya (2013), de Isao Takahata

Parece mesmo que só o cinema de animação consegue traduzir as mais sutis facetas da existência humana.

As novas tecnologias da imagem têm ampliado esse potencial, com o público respondendo positivamente a essas investidas criativas da animação.

*O professor Alberto Lucena Barbosa Jr. foi entrevistado como parte de uma matéria sobre animação, para o dossiê 183 da revista ComCiência. A publicação digital faz parte do Labjor (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo) da Unicamp.

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