Breves comentários à questão da Liberdade Religiosa no Catolicismo.

T. Brum
9 min readDec 13, 2023

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A Doutrina Católica é clara em afirmar que devemos nos submeter à verdade, e isso é especialmente verdade no que tange religião. Por isso, é certamente um grande pecado professar uma falsa religião e não apenas isso, mas algo que em nível jurídico é grave e deve ser combatido. Podemos dizer que crimes materiais são graves, então quanto mais será um crime contra o Espiritual que é de uma hierarquia superior. Assim, se falsificar dinheiro é grave, muito pior será falsificar a Religião. Soma-se que se o fim do poder civil é paz da sociedade então ele deve prezar pelas virtudes em algum grau, pois pelas virtudes teremos uma boa moralidade e pela moralidade teremos a paz — e como a Religião é a promotora da moralidade, então deve ser preservada. Ademais, se toda autoridade provém de Deus, então toda autoridade humana deve, necessariamente, respeitar o mesmo Deus e sua Religião e lutar pela sua conservação e defesa. Por fim, o erro não possui direitos — e isso é uma sentença autoevidente, do contrário se diria que a verdade não existe ou que pelo menos não importa ou, pior, que a verdade e o erro são a mesma coisa; contudo, no próprio decorrer de entender este argumento ou mesmo tentar o refutar, ou ainda do uso fruto da linguagem (afinal, há uma construção correta para entendimento mútuo), fazemos uso da verdade e combatemos o erro, evidenciamos que o erro não é defensável. Veja: se você tentar corrigir meu pensamento o estará provando, pois estará dizendo exatamente o mesmo que eu: “você está errado e isso não é verdade, você não tem o direito de defender este ponto”. Assim, ou você aceita que eu estou certo e o erro não possui direitos, ou tenta dizer o contrário e prova que eu estou certo no curso da própria argumentação, porque para você mostrar que eu estou equivocado vai significar a aceitação prévia, a priori, do meu argumento antes mesmo de você elencar o seu. Se poderia dizer ainda sobre o erro que se a Justiça existe, se o certo existe, se o Direito existe, se há crimes e acertos, então é evidente que o erro não tem direitos — temos, é verdade, a “permissão” (enquanto possibilidade) de errar em alguns níveis, mas haverá sempre uma punição (para o crime) ou correção fraterna (para o que não chega a ser crime) e a vontade dos indivíduos de fazer isso ao presenciarem o erro ocorrer; logo, se concluí pela experiência empírica que o erro não possui direitos. Dito de outra forma, qual seria a função, qual seria o objetivo e fim último da correção dessas ações se o erro tivesse algum direito? Nenhum. Ora, Deus corrige seu povo. Disso se segue, mais uma vez, que o erro não tem direitos ou então Deus não seria Deus. Cabe reforçar que, devido a tudo isso, temos o direito de buscar a verdade com honestidade, mas não de nos mantermos no erro ao vermos o mesmo. Por essas razões o erro da falsa religião é um mal a ser combatido.

Mas combatido não em todas as esferas, pois o próprio Doutor Angélico afirma que nem tudo que é imoral deve ser proibido juridicamente, mas antes os vícios mais graves e que fazem grande mal ao bem comum. Assim sendo, uma asserção privada ao erro em relação à religião pode ser aceitável, enquanto não perturbar o bem comum, e é isso que defende a Dignitatis Humanae de acordo com o Dr. Jhon Lamont — isso em nível de lei civil, não em nível moral como explica o Padre Brian Harrison em seu texto. Ademais, o mesmo documento não dá permissão para adesão ao erro religioso absolutamente, algo que é evidentemente errado pelo Magistério, mas antes, devido às circunstâncias não serem de uma sociedade Cristológica, que se há a permissão negativa para professar a falsa religião em algum nível maior ENQUANTO, e apenas nessa condição, a sociedade não retornar para o patamar de haver um centralismo cristológico novamente — tal fator, argumenta o Bispo Wilhelm Emmanuel Von Ketteler, quebraria a base que permitiria um combate maior e efetivo desse erro, mas em uma sociedade onde não há mais tal base a premissa se vai e, portanto, um combate mais direto a tais prática não poderá ser efetivado, embora aceito como algo que pode e deve ser feito em uma sociedade Cristológica. Assim, sem uma unidade de Fé é necessário que aturemos a presença deste erro de forma acidental e condicional, e é exatamente isso que pede o CVII no documento citado como bem argumenta o Padre Brian W. Harrison. No mais, é necessário reforçar que que ainda nessas condições estipuladas pelo CVII — que geram algum nível de tolerância situacional — seria um abuso da situação se a autoridade temporal perimir atos gravíssimos, como por exemplo, se sob o pretexto de liberdade religiosa, tolera seitas que negam a existência de um Deus pessoal, ou que prejudiquem a moralidade. Dessa forma, o ensino do CVII pode ser resumido, nas palavras do Padre Brian, em:

1) Há um direito humano de não ser forçado a agir em particular contra a consciência (não-católica); 2) Há um direito humano de não ser obrigado a agir publicamente contra a consciência (não-católica); 3) Existe um direito humano, dentro dos devidos limites, a não ser impedido de agir em particular de acordo com a consciência (não-católica); 4) Há um direito humano, dentro dos devidos limites, a não ser impedido de agir publicamente de acordo com a consciência (não-católica).

No mesmo sentido, retomo a excelente argumentação do Padre Bernard Lucien, em seu artigo: 1.Dignitatis humanæ personæ afirma o direito natural à liberdade [externa] de agir, em matéria religiosa, SEGUNDO A SUA CONSCIÊNCIA; 2. E a doutrina católica já estabelecida anteriormente nega a existência de um direito natural à liberdade externa de agir, em assuntos religiosos, COMO SE QUER;

Ele argumenta:

Mas é bem possível, e infelizmente muito comum, que um homem aja como quer, sem agir de acordo com sua consciência. Muitas vezes, de fato, o pecador age contra sua consciência, embora em outros casos ele aja de acordo com sua consciência culposa e equívoca. Pode até acontecer que um homem, tendo se endurecido e se tornado indiferente tanto ao bem quanto ao mal, aja sem qualquer julgamento de consciência.

Além disso, em cada homem, o juízo de consciência é exercício pela razão prática que apreende primeiro os princípios gerais da ordem moral. Este conhecimento dos princípios universais é acessível a toda a inteligência humana. E essa acessibilidade objetiva também se aplica ao Fato da Revelação divina completada em Jesus Cristo, porque esta Revelação é acompanhada de sinais de credibilidade muito certos e adaptados à inteligência de todos os homens. Claro, o conhecimento dos princípios gerais de moralidade e religião varia entre as pessoas, de acordo com as condições do meio social, educação, bem como em virtude de outros dados individuais. Mas essas várias condições que modularam o acesso ao conhecimento de princípios gerais e universais são por si observáveis ​de um ponto de vista externo.

E assim, pelo menos em parte e em alguns casos, é possível julgar cuidadosamente do lado de fora (supondo que se tenha uma razão legítima para fazê-lo) se uma pessoa age de acordo com sua consciência ou não.
[…]

Assim sendo, como visto, o CVII reforça a doutrina católica ao não apoiar uma liberdade religiosa indiscriminada e totalmente sem limites, nem tampouco defende se fazer o que quiser, mas antes retoma a doutrina já exposta de haver limites reais para a liberdade religiosa, mas sem afetar as livres consciências das pessoas (o que não foi condenado por Papas anteriores), pois a partir da análise lexicográfica do Padre Lucien de antigos documentos pré CVII é efetivamente o direito à liberdade de “agir como se quer” que foi então visado, sem negar em anda a liberdade para a consciência das pessoas, pois são coisas diferentes como visto.

No mais, o CVII vai apenas dar continuidade ao ensino e fazer a adição da questão da liberdade de consciência — que, reforço, não é ilimitada. Na palavras do Padre Lucien o CVII “não afirma o direito para agir como quiser. A imunidade em questão é o direito previamente definido, portanto o direito agir de acordo com sua consciência”. Assim sendo, os Papas e documentos pré Vaticano II não condenaram se agir de acordo com sua consciência, deixaram a permissão para tal, afinal “é apenas a afirmação de um direito à liberdade agir como se deseja (em assuntos religiosos) que foi condenada”, ainda que talvez eles tenham cogitado condenar como pessoas privadas agir pela sua própria consciência, mas, reforço, NÃO O FIZERAM [1] — de modo que se pode pensar que “o que foi ensinado oficialmente difere das ideias dos homens que mais contribuíram para a elaboração dos textos”, porque para nós vai importar o que foi definido pelo Magistério — que nos dois casos é Infalível.

É absolutamente necessário recordar também que é totalmente proibido forçar conversões de não cristãos. Devido a esse princípio absoluto é, por consequência, necessário permitir em algum nível a existência da falsa religião, pois sua absoluta repressão significaria, em última instância, o mesmo que forçar alguém a se converter como bem argumenta Suárez e outros. Por isso, várias exortações de Papas e teólogos, como expõe o Padre Brian, vão em direção de impedir a total repressão da falsa religião, mas não apenas isso, mas também de tolerar a mesma em vários níveis. Tal mostra que a perspectiva dada por muitos católicos é errada, à saber, de que “sob nenhuma circunstância existe algum direito da pessoa humana (isto é, um direito natural) que a autoridade humana não possa impedir a manifestação pública de uma religião falsa (isto é, não-católica)”. Dessa maneira, em algum nível é plausível considerar que existe uma permissão, ou tolerância, para a prática da falsa religião, mas NÃO de forma absoluta como defendem muitos.

Portanto, em algum nível o erro da falsa religião deve ser tolerado como direito negativo situacional civil e tal é muito claro pelo Catecismo:

2108. O direito à liberdade religiosa não é nem a permissão moral de aderir ao erro (33), nem um suposto direito ao erro (34), mas um direito natural da pessoa humana à liberdade civil, isto é, à imunidade do constrangimento exterior, dentro dos justos limites, em matéria religiosa, por parte do poder político. Este direito natural deve ser reconhecido na ordem jurídica da sociedade, de tal maneira que constitua um direito civil (35).

2109. O direito à liberdade religiosa não pode, de per si, ser ilimitado (36) nem limitado somente por uma «ordem pública» concebida de maneira positivista ou naturalista (37). Os «justos limites» que lhe são próprios devem ser determinados para cada situação social pela prudência política, segundo as exigências do bem comum, e ratificadas pela autoridade civil, segundo «regras jurídicas conformes à ordem moral objectiva» (38).

Atenção ao ponto dos limites: “devem ser determinados para cada situação social”, que é exatamente o que argumenta o Bispo Ketteler, ou seja, a atual inexistência de uma sociedade Cristológica faz da unidade na Fé inexistente, o que torna a norma absoluta uma letra morta. Ainda assim, como visto, sua total repressão seria não outra coisa que forçar a conversão de não cristãos, algo absolutamente inaceitável. Assim sendo, é evidente que mesmo em uma sociedade cristológica a falsa religião teria ALGUM espaço, e de modo algum deveria ser totalmente combatida, mesmo porque as consequências mais práticas seriam negativas ao bem comum o que levaria ao objetivo contrário do poder temporal e por isso é algo que demanda muita prudência para ser feito. Portanto, uma repressão total e absoluta da falsa religião não faz parte da Doutrina Católica independente da situação. O que faz parte é alguma repressão, mas permitindo sua existência privada, e pública em algum grau, e sem chegar ao ponto de forçar a conversão de ninguém e sem, de modo contrário, permitir sua existência totalmente livre em uma sociedade que não é Cristológica.

[1]. Citação completa: “No século 19, muitos teólogos, e talvez mesmo Gregório XVI e Pio IX, consideraram que o homem não tem o direito (natural) de agir em assuntos religiosos, no foro externo e público, logo que ele esteja em erro (portanto, mesmo que ele aja realmente de acordo com sua consciência). Este julgamento teológico foi, além disso, temperado, para a prática, desenvolvendo a teoria da tolerância civil para o bem comum. Esses teólogos, esses papas, talvez, estivessem, portanto, prontos para condenar a afirmação de um direito natural de agir de acordo com as próprias consciências em assuntos religiosos. E, no entanto, é apenas a afirmação de um direito à liberdade agir como se deseja (em assuntos religiosos) que foi condenada.” (LUCIEN, 2020)

Bibliografia:

CATECISMO: < https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p3s2cap1_2083-2195_po.html >

HARRISON, Brian W. Liberdade civil para não-católicos: o ensino do Vaticano II prenunciado na Tradição Católica. 2020. Encontrado em: < https://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/vaticano-ii/libedade-religiosa/1044-liberdade-civil-para-nao-catolicos-o-ensino-do-vaticano-ii-prenunciado-na-tradicao-catolica >

LAMONT, John R. O ensino católico sobre Religião e Estado. 2022. Encontrado em: < https://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/vaticano-ii/libedade-religiosa/1080-o-ensino-catolico-sobre-religiao-e-estado >

LUCIEN, Bernard. Vaticano II e a Hermenêutica da Continuidade: o caso crucial da Liberdade Religiosa. 2020. Encontrado em: < https://apologistascatolicos.com.br/vaticano-ii-e-a-hermeneutica-da-continuidade-o-caso-crucial-da-liberdade-religiosa/ >

KETTELER, Wilhelm Emmanuel. Liberdade Religiosa e a Igreja Católica. 2015. Encontrado em: < https://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/vaticano-ii/libedade-religiosa/830-liberdade-religiosa-e-a-igreja-catolica >

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T. Brum

Escritor de artigos relacionados a sociedade privada, catolicismo e assuntos diversos.