Turismo, infraestrutura e partilha

Tiago F Duarte
7 min readMay 10, 2016

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I.

Uma das teorias da presente crise financeira defende que esta é uma crise de excesso de liquidez: a necessidade imperativa de reinvestimento de capital não encontra escoamentos suficientemente rentáveis. O presente momento do capital seria o de um circuito de espera. O termo é emprestado da aeronáutica e refere os padrões de voo destinados a aeronaves que se veem obrigadas a adiar a aterragem, fazendo caminhos pré-definidos de espera. A metáfora é óbvia: o capital não pode parar nem consegue encontrar sectores suficientemente rentáveis para extrair os lucros que necessita para manter as taxas de crescimento. O campo de inferências desta metáfora é vasto e discutível, mas há uma que nos interessa particularmente: o capital de investimento, qual ave de rapina, ou drone militar, perscruta as diversas interações económicas caindo repentinamente sobre as que possam revelar uma hipótese mais sedutora de valorização.

II.

Tornaram-se notórias nas últimas décadas várias regiões onde a desindustrialização se revelou quase apocalíptica: vide o neologismo ruin porn acerca do fascínio que suscitam as ruínas de Detroit. O tecido económico destes territórios era tão dependente de uma particular indústria que o seu colapso deixou a nu a infraestrutura nevrálgica da circulação de valor. Do mesmo modo que um objecto apenas se nos torna presente quando não funciona como era suposto, a dimensão estruturante do capital só se torna verdadeiramente evidente quando por alguma razão diminui ou aumenta brutalmente de velocidade, já que ao seu normal funcionamento chamamos apenas economia. Nas grandes cidades modernas essa estrutura de acelerações e travagens é parcialmente escondida por trás da multiplicidade de indústrias em concurso. Essa perfeita camuflagem apenas serve a reforçar a ideia de que a cidade é, por excelência, também ela capital: é-o não apenas no comércio a retalho — porventura a face do capitalismo mais perceptível enquanto tal, mas também como polo brutal do cruzamento das infraestruturas económicas e materiais de reprodução da força-de-trabalho enquanto capital: dos prédios às escolas, da bolsa de valores ao armazém, do ginásio à discoteca, das estradas à central de transportes.

III.

A brutal irrupção do turismo em Lisboa conjuga os dois fenómenos anteriormente mencionados. Há uma súbita e intensa movimentação de capital em direção ao mercado imobiliário da cidade que perturba profundamente o modo como esta é percepcionada pelos seus habitantes. As faces mais visíveis deste influxo são em primeiro lugar a alteração dos fluxos urbanos de pessoas e mercadorias — o aparecimento de turistas e do comércio destinado ao turismo — e em segundo lugar o aumento do preço do imobiliário. Essa aceleração torna óbvias as dimensões ontológicas do capital: a reconfiguração de hábitos, trajectos, consumos e modos de vida que acontece num piscar de olhos, sem particular atenção às dimensões afectivas que as “pessoas” possam ter colocadas nos territórios.

O escândalo vulgar que acompanha o turismo surge balde de água fria na cara de uma classe média apanhada de surpresa num jogo que julgava dominar. O turismo não é uma alteração da economia urbana — de um ecossistema equilibrado — mas antes a extrema aceleração dos processos que construíram as cidades e as sociedades tal como as conhecemos.

IV.

A força de este impacto não significa no entanto uma clarividência quanto à natureza do processo, em parte porque a dimensão crítica reduz o seu olhar precisamente à fenomenologia mais imediata do fenómeno — comércio e habitação — e à figura do pretenso agente em si — o turista. Não obstante a imediatez da sua presença, estes são elementos consideravelmente menores dentro dos processo económicos e governativos que se materializam na gestão contemporânea da cidade.

Um olhar rápido às tendências globais de taxas de lucro por sector revela algo de interessante: os lugares cimeiros de rentabilidade são obviamente ocupados por indústrias tecnológicas e financeiras, aos quais se seguem os sectores de serviços, transportes e comunicações globais. O turismo, apesar da sua prevalência global, não é uma categoria económica em si, mas uma composição de diferentes sectores: hotelaria, transportes, comunicação e comércio. Havendo especificidades do turismo não há uma autonomia do sector, este é apenas uma variação de uma tipologia global de consumo que funciona acrescentando valor a uma infraestrutura planificada: a sua exterioridade ao território sujeita-o sem clemência aos movimentos enquadrados de determinado ambiente hermético. De outro modo, a um território habitado é sobreposta uma grelha de movimentos e comportamentos que terraplana as múltiplas dimensões existenciais em curso. É essa grelha que permite o aparecimento do turista e das indústrias a ele associadas, e não o contrário. O que o paradigma do turismo vêm demonstrar não é a particular nocividade de uma subjectividade ou de uma particular personagem da vida contemporânea, mas pelo contrário, que todos somos turistas, no sentido em que todos estamos sujeitos a esta grelha infraestrutural e aos seus efeitos.

V.

É no mínimo estranho que a dedicada antropologia urbana que se dedica a produzir um bestiário cosmopolita tenha tão pouca capacidade autorreflexiva. A multiplicação de vilões no palco urbano — do hipster ao turista — deixou relativamente intacto o próprio empreendimento taxionómico e a quantidade abissal de cinismo e ressentimento necessários de mobilizar para enfrentar essa tarefa tão contemporânea: o prazer de não gostar. O desprezo silencioso pelo outro, tão forte e tão impotente, tão cultivado e tão estéril, é por excelência um dos principais traços dos modos de existência metropolitanos, e, apesar do refinamento que faz questão de exibir, não é menos banal do que uma tarde passada à procura de uma casa de fados “típica” em Alfama com o guia da Time Out na mão. A questão não é, apenas, ética, nem parte da necessidade de um universalismo que reconheça inequivocamente no outro um irmão. Parte, pelo contrário, da necessidade de reconhecer o que contém de miséria existencial essa postura generalizada que consiste em posicionar-se enquanto juiz e carrasco da própria mundividência. Esse judicialismo existencial corresponde a um tipo de subjectividade urbana cuja emergência é contemporânea à do turismo e consumo de massa. A atomização contemporânea parece ter reduzido o fervor dos revolucionários ao preciosismo ansiogénico dos colecionadores. A vida das cidades, essa explosão de desterritorializações prenha de situações e encontros, parece ser agora não mais do a elaboração de roteiros de pastelaria autêntica e a entomologia das lojas “com história”. Talvez o limite mais claro das várias declinações da teoria da alienação seja esse, onde quem denuncia a alienação se afirma através da terraplanagem do mundo, como se a única hipótese existencial ainda merecedora de crédito fosse a de pertencer à corte de uma aristocracia crítica, cujo desfortúnio económico seria signo de integridade intelectual, mas fundada, claro, na necessidade tão pequeno-burguesa de reconhecimento. Que coincidência entre o turista e esta figura? total: são variações de um mesmo indivíduo. Visto de fora surge-nos irremediavelmente perdido nas infraestruturas da aceleração do movimento de mercadorias; visto de dentro, resiste nas ruínas de uma subjectividade esgotada.

O turismo não é a imposição do “falso”, do “inautêntico”, do “espectacular” ou do “simulacro”: o único que revela o famoso pastel de bacalhau com queijo da serra é precisamente a intensificação dos dispositivos que estruturam a nossa reprodução quotidiana.

VI

A cidade é então um acumular de infraestruturas de controlo e de reprodução do capital. Nos intervalos temporais e territoriais desse domínio surgem e ressurgem formas de vida que de modo imediato ou estratégico abrem brechas no trânsitos do poder.

Diz Furio Jesi: “Pode amar-se uma cidade, podem reconhecer-se nas suas casas e nas suas ruas as memórias mais remotas e secretas; mas apenas na hora da revolta a cidade é verdadeiramente sentida simultaneamente enquanto o “local da corte” e como a própria cidade: própria porque ao mesmo tempo minha e do outro; própria porque campo de uma batalha que se escolheu e que a colectividade escolheu; própria porque se torna um espaço circunscrito no qual o tempo histórico foi suspenso e onde todo o acto vale por si próprio, nas suas consequências imediatas. Há uma maior apropriação da cidade fugindo ou avançando no alternar das cargas do que brincando enquanto criança pelas suas ruas ou mais tarde passeando com uma rapariga. Na hora da revolta já não se está só na cidade.

Qualquer posicionamento credível contra os efeitos da gentrificação e da turistificação deverá ter presente que estes fenómenos são efeitos concretos de um determinado modo de organização capitalista, sob pena de uma legitima rejeição se tornar numa mera birra reaccionária, como aliás tem sido a presente declinação simultaneamente ingénua e possidónia das críticas ao turismo. A reformulação das condições de exploração e de valorização, e das contradições que lhes são inerentes, exige que se pondere a emergência de novas formas de fazer política. Perfilam-se dois modos de lutar contra o que acontece na cidade de Lisboa: o primeiro será o de multiplicar os locais de encontro e de construção de formas-de-vida: colectividades, associações de vizinhos e moradores, centros sociais, “comunas”, grupos de discussão, hortas e jardins colectivos. O segundo será mobilizar essa outra cidade, construída nos encontros e contaminações entre esses diferentes momentos, no sentido de bloquear as infraestruturas do capital.

Somente a construção material de uma concepção diferente do que é a cidade poderá substituir-se aos processos em curso. O que a crítica vulgar ao turismo (e ao capitalismo) não percebeu de todo é que a “economia da partilha” só triunfa porque o capital avança capturando os momentos de partilha em si. Apenas a constituição política destes permitirá um confronto sério com os dispositivos que governam a cidade e isso, infelizmente, não passa em nenhum momento por apresentar reclamações ao Presidente da Câmara.

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