A Grande Dissociação

Tiagoyhr
5 min readMay 25, 2024

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Foto de Ricardo Stuckert

A primeira vez que vi o arroio dilúvio, nunca vou esquecer, senti um grande mal-estar, um aperto, uma dor pelas águas que mereciam estar limpas, que não mereciam a nossa sujeira. O arroio dilúvio nada mais é que um verdadeiro esgoto a céu aberto, longo e quilométrico, mas ele era só para ser um arroio limpo que corre pro rio. Ao longo da avenida Ipiranga, vários canos simplesmente despejam dejetos domésticos ali e aquilo corre pro rio sem tratamento.

Ao longo dos anos, aquela dor inicial que eu sentia pelas águas foi se naturalizando como se fosse “assim mesmo”. Os arroios são sujos, o Guaíba é poluído, ponto. Acompanhei por um tempo os esforços para tratar os esgotos, devolver ao rio uma água consideravelmente limpa. Pesquisei um pouco: era um assunto em voga nos anos 90, havia o pró-Guaíba, havia planejamento para limpar as águas, cuja sujeira era relativamente recente. Era possível e saudável tomar banho no Guaíba ainda na década de 70, mas logo depois uma industrialização desordenada e sem nenhuma consideração com o meio-ambiente aconteceu. Era o modelo agressivo de industrialização da ditadura. O rio se poluiu rapidamente (rio, lago, seja qual for a nomenclatura forma correta, o Guaíba). Os outros rios ao redor, como o rio dos Sinos e o Jacuí, tiveram o mesmo destino. Pesquisadores diziam que era possível limpar o rio, a vida aquática ainda poderia voltar a ser próspera e respeitada, com todos os seus peixes e afins. Talvez, veja só, em até uns 3 anos de limpeza, seria possível tomar banho no Guaíba! Já imaginei isso, seria muito bom poder me banhar ali, seria também integrar de novo o Guaíba à cidade porque o rio é como alguém que a cidade agride e depois tira de sua vista, para não ver o mal que causou.

O pró-Guaíba esbarrou em empresas poluidoras que não queriam tratar seus resíduos, despejavam direto no rio. O esgoto doméstico é relativamente fácil de tratar, mas a poluição dos químicos das empresas é mais danosa, destruidora e mais cara de tratar. E o que pode um rio contra o poder do dinheiro? O pró-Guaíba deixou de existir. E eu cresci nessa cidade me acostumando e me conformando com a violência que se faz contra as águas. Eu olhava pro dilúvio e sempre era desagradável, sempre me doía e me dói até hoje, mas encolhia os ombros, tentava pensar em outra coisa. O mesmo vale para o Guaíba inteiro. O que eu poderia fazer? E o meu comportamento era o mesmo de quase todos os outros porto-alegrenses.

Aqui eu cresci e, como quase todos os outros porto-alegrenses, eu esqueci que Porto Alegre é uma cidade náutica, uma cidade, veja só, com “porto” no nome. Com muitos corpos d’água violentados pela nossa sujeira em valões sujos e canos. Eu me afastei do rio, separado por um muro. Vira e mexe votava em alguém que se preocupava com o rio, mas os eleitos com essas pautas eram sempre minoria.

O porto-alegrense vive dissociado do rio. Preso em suas questões pessoais e cego quanto ao ambiente que o rodeia. É uma tragédia silenciosa o quanto somos capazes de sermos alheios aos nossos arredores — e o quanto isso é fácil.

Poucos anos atrás, descobri o quanto o rio fora aterrado outrora. A orla foi reformada e olhei para o Guaíba de novo também. O DMAE, que eu acompanhava, começou praticamente a gritar sobre as questões hídricas da cidade ainda em 2018, talvez antes, mas só ouvi em 2018. A pauta começava a renascer, alguns em Porto Alegre começavam a lembrar aos outros que essa é uma cidade fundamentada nas águas. E as águas agora não estavam “apenas” sujas, elas eram também perigosas. Eles podiam inundar a cidade, vomitar de volta para nós a sujeira que jogamos nelas. De certa forma, as águas estão agora sendo recíprocas.

Mas o tom da pauta voltando eram de urgência, emergência, preocupação e denúncia. De 2014 pra cá, a prefeitura e o Estado pararam até de fingir que se preocupavam com a pauta ambiental em Porto Alegre. Essa capital do Rio Grande do Sul está, evidentemente, inserida no contexto maior do Brasil e a ascensão da extrema-direita entre 2013 e 2022 foi forte aqui. Entre vários problemas, preconceitos, pautas “morais”, guerras culturais, descaso social, ideias de Estado mínimo e outros horrores, vinha também uma ideia econômica agressiva, muito similar àquela dos tempos da ditadura que esteve por trás dos primórdios da poluição pesada do rio, que acontecia com nenhuma preocupação ambiental. Em 2019, Eduardo Leite e uma corja de deputados estaduais picotaram as leis ambientais do Estado, o que passou muito silenciosamente pela população gaúcha, lembro que vi apenas a notícia no Sul21. Sebastião Melo foi destruindo até a leis de matas ciliares pra fazer os prédios feios, caros e anti-urbanistas da Melnick. Aliás, a pauta urbanista começou a crescer nos setores progressistas da cidade, como reação a tudo isso.

Fora daqui, quase ninguém sabia disso. Nacionalmente, os problemas locais eram eclipsados por questões como o garimpo ilegal na Amazônia e o espetáculo de tosqueira que se tornou o noticiário sob o governo do ex-presidente. E, diga-se de passagem, a tragédia que acontece com o Guaíba é comum nas grandes cidades. O Tietê de São Paulo, a lagoa do Rio de Janeiro e tantos outros rios e corpos d’água que hidratam e mantém a vida em grandes cidades foram transformados, em grande parte, em esgotos a céu aberto. E os esforços para limpar os rios vêm de poucos, como se fossem apenas poucos, e não simplesmente todo mundo, que precisasse de água limpa. Tratamento de esgoto é um problema que se generaliza. E aliás é hora dessa pauta crescer e de medidas serem tomadas e de, pela graça da natureza, escorraçarmos a extrema-direta do poder.

Pois bem, voltando ao Guaíba, um acontecimento chamado Aquecimento Global agitou as águas também nos céus e dessa vez o abandono das questões ambientais foi tamanho que a cidade não estava preparada.

E o Guaíba se vingou de nós.

As áreas alagadas são, em grande parte, áreas que foram outrora aterradas. A sujeira que volta com as águas é nossa. É uma dívida coletiva que todos temos com o rio, afinal absolutamente todo mundo bebe água, escova os dentes, toma banho.

E os porto-alegrenses se lembraram que essa cidade, afinal, é uma cidade náutica.

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