Me apague da sua memória
A vista daquele mirante ainda era tão linda quanto diziam ser quando foi inaugurado, quase um século atrás. Abaixo, a Avenida Paulista como um rio inundado por um cardume de peixes se mantinha imponente.
Curiosamente, estava sozinho observando o tráfego abaixo e a vista da cidade ao longe.
Esperava alguém.
A mensagem que havia enviado para ela lhe causaria arrepios se fosse direcionada a si. Precisamos conversar. Essa era a frase que significava que não poderia ser uma conversa pelo holotransmissor ou semitelepática. Aquela era uma conversa que precisavam ter cara a cara, algo que caíra em desuso nas últimas décadas.
Pedira que ela o encontrasse ali por que era um local especial para os dois. Muitas vezes vinham até ali, holograficamente, admirar a vista, conversar e até conhecer e encontrar outras pessoas. Em carne e osso só haviam estado ali duas vezes: quando se conheceram, preparando uma exposição que aconteceria no local e no primeiro encontro quando resolveram assumir algo mais sério.
Conhecendo-a, sabia que chegaria dali a cerca de meia hora, no exato horário em que haviam combinado de se encontrar. Era tempo suficiente para refletir um pouco mais sobre como abordaria o assunto que precisava tratar com ela.
Sentou-se em uma das mesas que haviam próximas ao parapeito do prédio, concentrou-se em sua memória de longa escala, repassou alguns diálogos ficcionais que havia lido para se preparar para a conversa que teria, redefiniu em segundo plano alguns investimentos que havia feito e remarcou uma consulta em seu odontomecanologista.
O tempo voou. O tempo sempre parece voar quando queremos que passe devagar, pensou.
Ele a viu se aproximando depois de passar pela porta de entrada no térreo do prédio. Há muitos anos havia crackeado o sistema de segurança daquele prédio e, como era de se esperar de uma instituição pública, o sistema não havia sido melhorado desde então.
Viu-a no elevador preocupada enquanto era levada ao último andar do edifício.
Viu-a atravessar a galeria e chegar a extremidade do restaurante que dava no mirante.
E, finalmente, viu-a aproximar-se em carne e osso para a conversa que precisavam ter.
Ela não o cumprimentou. Simplesmente, sentou-se à mesa perguntando:
“Amor, está tudo bem?”
Ele imaginou que ela chegaria com esse nível de preocupação, mas não esperou que ela fosse tão direto ao ponto. Ele reconsultou os padrões de conversa que havia memorizado nos textos de ficção, mas isso levou mais tempo do que imaginava.
“Por favor, não faça essa cara de quem está fazendo consultas virtuais para uma simples conversa”, ela disse.
Afinal, ela o conhecia muito bem.
“Me desculpe”, ele conseguiu falar. E resolveu olhá-la nos olhos quando percebeu que ainda não havia feito isso desde que ela sentara em sua frente.
Ela lhe devolveu um meio sorriso e ele resolveu começar a falar. Caso contrário, corro o risco de não sair do lugar. Torceu para que não gaguejasse. Era tão incomum usarem a voz nesses tempos, que parecia estranho quando era preciso falar com algo ou alguém em voz alta.
“Me desculpe”, repetiu.
“Você já disse isso”, ela emendou rapidamente.
Ele sentiu sua testa esquentar e uma pequena gota de suor escorrer pelo seu rosto. Quando foi que havia ficado tão quente? Foi sua vez de sorrir antes de continuar.
“Sei que é incomum pedir para falarmos pessoalmente e não pelos meios comuns, mas realmente tem algo que acho importante falar olhando dentro dos seus olhos.” Se ela podia ser direta, ele também podia.
“Não esperava menos. Imagino que queira que eu te apague da minha memória, certo?”
Porquê ela tinha que ser tão direta?
“Mas por que imagina isso?” Teve que devolver.
“Ora, não vejo outra razão para a seriedade com que me convidou para sentarmos, nesse lugar que nós dois sabemos ser especial, e conversarmos sobre algo.”
Ele desviou o olhar do dela, passou a mão pela testa, fez um movimento com três dedos na mesa, escolheu uma bebida no menu que se projetou e perguntou se ela gostaria de beber alguma coisa.
“Peça o meu preferido”, ela respondeu.
Ele pediu um suco de laranja gaseificada e tonalizada com álcool semissintético especial para seres humanóides (algo que não era aconselhável beber com frequência pois viciava rapidamente). Mas não sem antes lhe dar um sorriso amplamente devolvido por ela.
“Acho que começamos de forma errada”, ele voltou a falar enquanto aguardava o pedido. “Certamente vamos chegar nesse ponto da conversa, mas acredito que deveríamos ao menos perguntar um ao outro como foi nosso dia.”
Ela rapidamente fechou a cara novamente.
“Desculpe, Cris. Acho que só não tenho tempo para ficar imaginando ou remoendo qual seja o motivo dessa nossa conversa. Por isso preferia e prefiro ir direto ao ponto. Acho que nós dois temos coisas importante para resolver depois daqui, afinal, hoje nem é um de nossos dias de encontro, virtual ou pessoal.”
“Jess, está tudo bem”, ele recomeçou exatamente no momento em que o semirrobô trazia os pedidos para a mesa. Ele aguardou a criatura se retirar para continuar a conversa. Percebeu também o milésimo de segundo a mais que a máquina demorou para voltar ao balcão depois de já tê-los servido. Malditas máquinas curiosas. “Está tudo bem”, ele repetiu. “Tome um gole da sua bebida e continuamos nossa conversa.”
Ela virou toda a bebida de uma vez e o encarou aguardando que a conversa prosseguisse.
“Bom”, ele finalmente tomou coragem, “você acertou o motivo: gostaria que me apagasse da sua memória. Só achei que era importante explicar para você os motivos que me levaram a pedir isso, mesmo que isso não faça sentido, se decidir pelo sim…”
Ela levantou a mão sinalizando que ele parasse de falar, um gesto muito antigo.
“É a primeira vez que você se depara com uma situação como essa?”, ela perguntou.
“Como assim?”
“Você nunca pediu para alguém te apagar da sua memória? Ou te pediram isso?”
Ele a olhou desconcertado.
“Parto do princípio de que se vou te apagar, não vou saber ou lembrar de nada que vivi ou convivi com você, nem das conversas que tivemos, certo?”
“Sério?” , ela o olhava incrédulo, como se ele acabasse de falar algo bobo, infantil. “Eu sei que essa técnica de erase é relativamente nova, mas já há várias soluções disponíveis para você saber quantas vezes precisou fazer isso.”
Ele sentiu seu rosto corar nervosamente.
“Eu confesso que não sabia que existia algo assim. Eu até fiz algumas leituras…”
“Não tem problema”, ela o cortou. “Percebi que você poderia não saber desde o momento em que me chamou para nos falarmos. Há um pseudoalgoritmo que permite que você simplesmente conte quantas vezes você pediu ou fez erase. Você está com seu operacional disponível para novas entradas?”
“Sim, estou”, ele respondeu apressadamente.
“Encosta seu polegar no meu.”
Ele a obedeceu.
Foi tudo muito rápido. Quando reabriu os olhos, não havia ninguém sentado na sua frente. Não sabia muito bem o motivo de ter ido até aquele lugar nem o que estava fazendo sentado olhando o mirante sem objetivo. Eu poderia muito bem admirar isso holograficamente, pensou.
De repente, sentiu uma nova memória que ficava no limiar entre o último plano e o lixo cerebral.
Você tem 1 erase feito com sucesso, dizia simplesmente.