O PECADO NEFANDO: CASA GRANDE E SENZALA.

ruan
4 min readJul 5, 2018

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Engenho de Itamaracá, Frans Post.

A sexualidade colonial, em semelhança aos tempos atuais, não era homogênea. Ao mesmo passo que a tensão entre as diferentes sexualidades se organizasse de modos diferentes, tendo em mente o contexto da época (marcado pelo escravismo, a misoginia e crenças religiosas correspondentes à época), desde o começo da história brasileira as relações sexuais e afetivas não pertenceram somente ao campo do que chamamos hoje de heterossexualidade. Embora fossem objeto de extrema repreensão, punição e demonização, o Brasil não escapou do pecado nefando da sodomia.

Na época das famigeradas Casa Grande e Senzala, o Brasil ainda era uma colônia estrangeira. Enquanto seus senhores brancos moravam na Casagrande, a população negra africana e seus descendentes escravizados em geral levavam suas vidas nas Senzalas, trabalhando nos engenhos e grandes plantações das fazendas como objeto de trabalho na produção escravista.

O pecado nefando (aquele do qual não se deve falar), um dos termos usados na época para designar relações sexuais e afetivas entre homens ou entre mulheres, podia ser observado em todas as camadas sociais. Governador ou artesão, pajem ou protegido, senhor ou escravo, cristão ou gentio, homem ou mulher, clérigo ou soldado. Haja vista o contexto hierárquico social no qual encontramos a época colonial, não é incorreto afirmar que as relações sexuais e afetivas obedeciam ao mesmo modelo desigual, certamente até quando se discute sobre relações entre pessoas do mesmo gênero.

As relações interpessoais no Brasil Colônia, em especial aquelas que não se encaixam no modelo heteronormativo, se desenvolveram num contexto que proporcionava o encontro entre visões diferentes de mundo. Dentre elas embora uma se prevaleça, a europeia cristã pela questão da colonização, em detrimento das outras, cada uma contribuiu para a formação da mentalidade da sociedade na época.

Muito longe de ser uma questão somente pertinente ao novo mundo, é preciso salientar que em terras europeias essas relações sexuais e afetivas dissidentes também foram alvo de preocupação, tanto da população, quanto da religião e do Estado, havendo até mesmo organizações, como o Tribunal do Santo Ofício, cujo propósito era julgar tais casos, dentre outros, considerados graves pela religião católica.

No Velho Mundo a preocupação popular, a exemplo de Valência na Espanha, entre os séculos XVI e XVII, dirigia-se muito mais às condutas que eram consideradas como desviantes do que pelo ato sexual em si. As denúncias faziam referência às pessoas do mesmo gênero (estudiosos salientam esse tipo de comportamento denunciado entre homens) que tinham uma amizade muito íntima, que “festejavam” demais, andavam de mãos dadas ou trocavam afagos. Adotar ou ter trejeitos e vestimentas do gênero oposto atraía estranhamento e denúncias. Quanto ao caso das mulheres, é visível nas crônicas populares que eram tratadas como “machos” se adotassem comportamentos do gênero “masculino”, o oposto do esperado de uma mulher na época.

O impacto persecutório não foi desigual na Europa apenas em questões geográficas, diferente disso, enquanto a nobreza gozava de certa liberdade sexual, a perseguição contra pessoas do mesmo gênero que se relacionavam entre si, fortalecia-se entre as camadas mais populares. Os mais perseguidos eram os artesãos, deserdados e trabalhadores. Existia até certa nostalgia de um passado glorioso quando essas relações entre pessoas do mesmo gênero na nobreza eram comparadas ao vínculo entre mestre e discípulo no Renascimento, tornando-se objeto de glorificação.

Um bom exemplo dessa disparidade aconteceu com um senhor paraense de engenho, Francisco Serrão de Castro, que foi acusado de abusar sexualmente com requintes de violência diversos de seus escravos, todos africanos, independentemente se fossem solteiros ou casados, a ponto de parte deles terem ido ao óbito. A condição de escravo modifica todos os aspectos da vida humana. Não apenas um instrumento de trabalho, a existência do negro escravizado estava inteiramente pautada na servidão. Dessa forma, observa-se uma tremenda impossibilidade do indivíduo escravizado dizer não para as vontades do senhor de engenho (de seus filhos e protegidos também) — seja por medo de futuras punições ou pela contexto social vigente.

Contudo, diferente do caso supracitado, existiram senhores como Luiz Delgado que tratavam seus companheiros nefandos de outras maneiras — até mesmo quando o indivíduo em questão era um de seus criados. Delgado, como consta nos relatos históricos, os tratava com ternura: ora ostentava-os aos olhos públicos, ora os penteava na janela para todos verem. Ofendia muito mais a população e a religião o fato de que Delgado não atendia aos papéis esperados por um homem na sociedade do que por sua gritante sodomia.

Pela misoginia tão enraizada no contexto cultural colonial, o nefando feminino não era centro das atenções da Inquisição, fato pelo qual devemos certa obscuridade quanto aos relatos históricos sobre o assunto. Um dos juristas mais famosos do século XVI julgava desnecessário saber aos detalhes as relações de sodomia feminina. Ainda segundo o juiz, a ausência da figura masculina e do falo faziam com que essas relações não se caracterizassem como uma verdadeira sodomia. Logo, em 1646, a Inquisição portuguesa se dispensou do cargo de julgar o que consideravam como torpezas e molícies femininas

Ainda sim, existem diversos relatos sobre as relações afetivas e sexuais entre mulheres de variadas idades, posições sociais, até mesmo entre freiras. Felipa de Souza, uma famosa baiana que viveu entre meados de 1590, casada com um pedreiro, teve seus casos relatados na história. Segundo o que se conta, manifestava interesse tanto por mulheres casadas, quanto por solteiras. Apetecia-lhe conquistar seus interesses amorosos através de recados com presentes, oferecendo até dinheiro. Confessou ter praticado o pecado nefando com mulheres e moças diversas, até mesmo num convento.

Leitura Recomendada sobre o assunto:

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade do Brasil império, da colônia à atualidade.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados.

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Caprino, bacante, possesso

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