No contexto do Brasil Império e começo da República, diferentemente do que se pode concluir, o declínio do poder da Igreja Católica e a ascensão do pensamento científico não significou uma quebra do paradigma de opressão e perseguição vivenciados pelo o que hoje chamamos de minoria LGBT.
No lugar destinado às ameaças eclesiásticas de danação eterna e do julgamento religioso temos uma ciência liderada pela medicina de caráter higienista, por profissionais médicos-legistas e psiquiatras preocupados com o bem-estar social e com as regras estabelecidas sobre o conceito do normal, proporcionando a existência de um novo tipo de controle a vida íntima e em sociedade.
Se nas páginas anteriores da história do ocidente e do Brasil o imaginário e as normas sociais construíam-se quase puramente de acordo com as regras do cristianismo, sob os olhos perscrutadores do Santo Ofício, nesse novo período são repaginadas de acordo com a ciência vigente, nunca existindo uma verdadeira ruptura dos arcaicos pensamentos — tão-somente uma manutenção sob novas roupagens. Agora, o controle do comportamento da população regrava-se de acordo com uma suposta neutralidade científica, baseada fortemente na ideologia higienista. Para esse pensamento, a doença tomava forma de um problema social que se alastrava sobre toda a experiência humana.
Uma noção de patriotismo muito pragmática surgiu em meados do século XIX, onde o Estado, ao juntar forças com o especialista em higiene, invadiu o interior antes sacrossanto da família brasileira, passando a norteá-la de acordo com as necessidades governamentais: através do intuito de criar rebentos de corpos saudáveis para a pátria, numa sociedade minada pela ideologia da supremacia branca burguesa, rígidas normas sociais foram estabelecidas em cima do comportamento e da sexualidade brasileira.
Num contexto onde tanto a promiscuidade quanto o celibato não eram vistos com bons olhos, o casamento ideal, entre o homem e a mulher, plenos em seus papeis sociais pré-estabelecidos foi reforçado. A ideia das relações sexuais entre o casal também sofreu modificações, agora era enxergado como uma obrigação cívica do matrimônio, díspar aquela visão colonial que demonizava o ato.
[…] se o Estado Liberal visava primordialmente a aparelhar para os novos tempos a família da classe dominante, nem por isso o restante da população ficava alheio a intromissões. À medida que o Estado reforçava sua influência sobre o corpo social, as classes menos favorecidas iam sendo paulatinamente higienizadas, mediante campanhas de moralização e higiene coletiva, além da assistência filantrópica, que serviam para manter o pacto social e, com ele, a unidade normatizadora da família — que constituía o núcleo básico do Estado burguês emergente no Brasil. (TREVISAN, 2002, p. 171–172)
Haja vista os pontos supracitados, não é estranho chegar à conclusão de que tudo o que não se encaixava nesse modelo era visto como anormal, como um perigo ao bem-estar biológico e social da pátria. Se tanto o indivíduo libertino quanto o celibatário, segundo a opinião médica da época, corriam perigos tanto físicos quanto psicológicos oriundos de suas práticas afeito-sexuais, negar a “vocação natural” (em outras palavras, relacionar-se com indivíduos do mesmo gênero) do homem e da mulher apresentava-se como um delito mais grave ainda — principalmente no contexto do movimento de institucionalização da heterossexualidade nos séculos XIX e XX.
Em meados do século XIX o psiquiatra Benedict A. Morel desenvolveu a teoria da degenerescência onde se sustentava que falhas psíquicas e biológicas (inclusive de caráter sexual) podem ser transmitidas hereditariamente e pôr em risco toda a espécie humana, pensamento este que deu terreno a preocupação científica quanto aos comportamentos considerados como homossexuais na época.
O corpo e o sexo, ao adentrarem no campo de projeção da ciência, foram esmiuçados e traçaram-se linhas de suas regularidades, normalidades. A heterossexualidade, ao tornar-se norma, converteu-se o gabarito de inteligibilidade deste sistema de regularidades, e o que não se conformasse às suas linhas de regularidade, o que não fosse filtrado, era consequentemente irregular […] (PRETES & VIANNA, 2007, p. 370–371)
A medicalização do olhar sobre as sexualidades não-heterossexuais não foi capaz de encontrar qualquer diferença fisiológica entre quem agia de acordo com a norma e quem caía na rede dos “degenerados sexuais”, embora não por falta de tentativa e palpites mirabolantes. Desde a anatomia desses indivíduos, até mesmo o modo com que se relacionavam foi perquirido, havendo até mesmo quem analisasse seriamente cartas de amor e indagasse, alguns até afirmando, sobre a capacidade de existir amor entre eles.
A sugestão dos profissionais dedicados a estudar o “crescimento” das práticas homossexuais era uma maior ação do Estado no controle dessa sexualidade perversa, respaldados pela tradição positivista que acreditava numa “’’ciência’’ aplicada como mola propulsora do progresso social e mantenedora da ordem social” (GREEN, 2000, p. 192).
No século XIX, Foucault afirma que o homossexual torna-se uma personagem, contendo “um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa” (1999, p. 42). Desta forma, observa-se o surgimento da ideia de que o homossexual era de quase uma espécie própria.
Não é estranho que o comportamento homossexual fosse visto com maus olhos até mesmo na vida política. Há relatos de políticos homossexuais nos tempos imperiais que foram alvos de comentários. Relata-se sobre certo político atingido por essas conversas que era famoso por aparecer com seus amantes em público — amantes estes que auxiliava generosamente em questões financeiras, empregatícias e até mesmo matrimoniais.
[…] Viveiros de Castro aludia às grandes qualidades morais e políticas desse homem, que chegara a ser nomeado governador do Estado, mas, graças à fama de pederasta, tivera seu nome vetado numa lista tríplice para senador, na qual competia com “duas nulidades” […] (TREVISAN, 2002, p. 178)
Tal qual o comportamento homossexual masculino, as mulheres também não escapavam da estigmatização. Enquanto homens eram chamados de uranistas, elas recebiam alcunhas como tríbades, sáficas, lesbianistas, fanchonas e viragos.
Esse comportamento, segundo a opinião da época, as classificava como loucas, congênitas ou viciadas. Esse vício tinha fama de ter originado da educação moderna, das aberrações sexuais exigidas por seus companheiros, da vida em internatos e até mesmo a literatura moderna foi apontada como possível causa. Pessoas famosas da época, como as atrizes Suzana C. e Blanche foram vítimas de comentários e análises sobre seus envolvimentos íntimos e sexuais.
Como se percebe ser homossexual em terras brasileiras (ou, pode-se concluir, qualquer outra sexualidade que não se encaixasse no modelo hegemônico), embora não mais tão vigiados pelas vistas da Igreja Católica dos tempos coloniais, ainda não era de modo algum fácil e livre de estigmas. O fim do Brasil Império e o começo da República foram marcados, na história LGBT, por uma nova onda de perseguição que ganhou novas roupagens — essas iluminadas pela luz da ciência.
Leitura recomendada sobre o assunto:
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade do Brasil império, da colônia à atualidade.
LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado.
PRETES, Érica Aparecida; VIANNA, Túlio. A História da Criminalização da Homossexualidade no Brasil: da sodomia ao homossexualismo.
GREEN, James N.. Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX
FOUCAULT, Michel. HISTÓRIA DA SEXUALIDADE I: A VONTADE DE SABER.