Vestido
(Predicativo do sujeito, não substantivo)
Às vezes sinto que logo criança percebi minha falta de habilidade com a noção de tempo, espaço e percepção da realidade. Sonhava e por minutos achava que aquilo tinha acontecido, dormia com livros literalmente debaixo do travesseiro para sonhar com eles, imaginava cenários, torcendo que se concretizassem no dia seguinte. Acordado, fechava os olhos, desejando coisas como “quando eu abrir a porta desse quarto, eles vão ter sumido daqui.”
Hoje, adulto, me sinto ainda mais perdido nesses três conceitos. Não sei quando, mas me dei conta que não conseguia me lembrar direito da infância. Não sei o quanto é normal, o quanto sou na verdade um chato dramático. O importante é — coisas pequenas me lembram de momentos já tão profundos, longes, que nunca seriam lembrados de outra forma. Aconteceu isso hoje.
Minha relação com tudo é complicada, tudo sempre incomodou e é claro que aparência entra nisso tudo. E eu lembrei.
De quando eu devia ter menos de 10 anos, fazia curso de inglês e minha avó cuidava de nós pela tarde. Com a recente conquista de eventualmente me arrumar sozinho, gostava de me vestir como se fosse um personagem de série teen da Disney: usei uma camisa colorida, um tênis fofo da barbie, uma legging e uma saia jeans velha. Pequena. Nesse dia, meus pais brigaram com minha avó. Nesse dia, me explicaram o que era um pedófilo. Como eu devia me vestir para não atrair olhares de homens. Como eu não devia facilitar para eles. Como meninas, de vez em quando, eram as mais culpadas pelo o que lhes acontecia.
De como um pouco antes da adolescência, tinha um cabelo longo, que odiava amarrar. Um longo, quebrado de tantos alisamentos, cabelo. Minha mãe sempre dizia o quanto odiava o jeito que eu o tratava, horrível, era armado, igual uma vassoura. Até o dia que o namorado da minha tia, riu. Riu de mim, da minha mãe, disse que estava feio, perguntou porquê não penteava.
Senti um tapa, um puxão, minha mãe me arrastava para o quarto da casa pelos cabelos, nos trancou lá e me bateu, depois, pegou uma escova e o penteou, o separou em três tiras e fez uma trança, puxando minha cabeça com aparentemente toda a força que podia. No fim, me pondo em frente ao espelho, disse que agora eu estava bonito. De tranças, com meu rosto vermelho e inchado, enquanto eu ainda tentava parar de chorar.
Lembrei da vez que minha mãe comentou como devia me vestir como ela para ir a igreja. Como as pessoas notavam, que eu a envergonhava. Me mostrou mensagens de algumas — recomendavam ficarem de olho em mim. Pois eu estava virando, “você sabe, coisa que não presta”
Das festas de 15 anos, onde tentava fugir dos vestidos, da maquiagem, em vão. De como boa parte delas eram passadas em banheiros. A pessoa no espelho que me encarava, assustada, antes de enfim vomitar, de chorar, desejando o fim de tudo, num misto de inveja, admiração e não-pertencimento com todas as mulheres lindas que sempre estavam lá.
Da vez que meu namorado da época, que sabia que sou trans e que dias antes confessou estar confuso com isso, que às vezes não conseguia imaginar um futuro comigo, me olhou com os olhos mais doces do mundo. Sorriu daquele jeito bobo. Me olhou com o vestido que a mãe dele insistiu pra eu usar, pela praticidade de se trocar rápido. Um olhar tão doce. Quando ela saiu, se aproximou, segurou meu rosto com as duas mão e disse que eu estava lindo, fofo. Nesse dia, percebi. Que devia ser assim. Ser amado, ser bonito, ser fofo. Para isso, eu devia odiar cada segundo daquela maneira. Aprendi que para crescer, o caminho era esse.
Acabei arrumando um meio termo. Nada de vestidos, mas calças femininas e camisas sociais justas não incomodam, fico realmente bonitinho. Sou bem tratado. Recebo mais bom dias, mais sorrisos, mais elogios — a farsa novamente recompensada. Por isso, quando perguntei se estava bonito, me espantei quando meu melhor amigo negou. Como? Eu sabia que estava, usava até um salto alto, coisa que sempre me recusei. “Não gosto quando você está vestido assim.” foi a resposta completa.
E lembrei. Algumas vividamente, uma ligada a outra, as lembranças acima descritas borbulharam em mim. E apenas sozinho, no meu quarto, finalmente entendi o óbvio.
Não preciso usar vestido pra ser amado.