Como nós falamos sobre inclusão trans importa

Espaços feministas estão cada vez mais focando em inclusão trans, mas muitos não possuem a habilidade teórica para justificar essa inclusão de forma que não reitere concepções ultrapassadas e perigosas sobre identidade.

Transfeminismo Marginal
12 min readMay 30, 2018

Como uma mulher trans com afinidade pelo feminismo radical, eu frequentemente me encontro em uma estranha posição quando se debate, no campo da justiça social, sobre mulheres trans em causas e movimentos feministas. Por um lado, eu me sinto encorajada em ver tantas pessoas de esquerda defendendo nossos direitos dentro desses movimentos. Por outro lado, eu temo que muitas das justificativas apresentadas para nossa inclusão não são muito atrativas na melhor das hipóteses, ou baseadas em noções de gênero ultrapassadas na pior.

É difícil navegar essa situação. Eu não quero afastar aqueles argumentando por nossa inclusão porque eu não quero que eles desistam de suas posições, mas eu também não quero nossa inclusão baseada em argumentos ineficazes ou contraproducentes. Então, decidi tentar esclarecer o que está errado nas justificativas comuns para a inclusão trans, bem como fornecer algumas justificativas melhores fundamentadas na análise feminista materialista.

Identidade de gênero

Um argumento comum para a inclusão trans é construído em volta do modelo de identidade de gênero. Esse modelo pressupõe que essa identidade de gênero é de longa data, e que parte de uma estável e estática percepção de si mesmo como homem ou mulher que pessoas trans teriam mantido pela maior parte de suas vidas. Além disso, aqueles que fazem um apelo pela identidade de gênero argumentam que a razão para incluir mulheres trans no feminismo e em espaços exclusivos de mulheres é que mulheres trans se identificam como mulheres, e portanto, são mulheres.

Existem dois problemas com esse argumento. Primeiro, o conceito de identidade de gênero e o modelo sobre o qual ela é construída não aguenta escrutínio. Segundo, porque é uma justificativa fraca para inclusão. Esse argumento frequentemente é recebido com a resposta: “bem, e se eu só mudasse como eu me identifico sempre que eu quisesse ser incluída em algum lugar?” Críticos dessa justificativa temem que ela eliminaria a habilidade de apontar para grupos com experiências, interesses e ideias compartilhadas. Eu vou discorrer sobre ambas dessas objeções separadamente.

A identidade de gênero é simplesmente baseada em um modelo incorreto de gênero e sexo. Ela se apoia em uma distinção clara entre gênero e sexo que é fundamentalmente insustentável. Judith Butler aborda a distinção entre sexo e gênero em seu famoso livro Problema de Gênero problematizando a noção de que sexo é uma realidade natural enquanto gênero é uma construção social. Butler argumenta que:

“se o caráter imutável do sexo é contestado, talvez essa construção chamada ‘sexo’ é tão culturalmente construída quanto gênero; de fato, talvez sempre tenha sido gênero, com a consequência que a distinção entre sexo e gênero não é uma distinção de qualquer modo.”

Enquanto esse argumento é um tanto carregado de jargão em sua explicação, ela está simplesmente sugerindo que nós podemos entender sexo como tão socialmente construído quanto gênero, e pode esclarecer as maneiras pelas quais a distinção entre sexo e gênero é uma distinção artificial designada para nos fazer ver sexo como mais natural. Existe, é claro, uma quantidade considerável de literatura científica que contesta o “caráter imutável” do sexo.

Então, se essa distinção entre sexo e gênero é falsa, o modelo de identidade de gênero como uma mera percepção de si mesmo que diverge de nosso sexo não é adequado. Não podemos separar a percepção de nosso gênero das forças sociais que constroem tanto sexo quanto gênero; e que influenciam a maneira como nos percebemos. Se tanto gênero quanto sexo são construídos, então podemos imaginar um mundo onde não teríamos uma concepção de nós mesmos baseada em sexo ou gênero. Isso indicaria que o conceito de identidade de gênero não é um conceito estável e imutável, mas sim contingente e dependente em noções socialmente e culturalmente prevalentes de gênero.

Não é suficiente simplesmente apontar que a justificativa identidade de gênero é construída em um modelo defeituoso. Nós devemos também reconhecer que ela representa alguns sérios problemas políticos para as políticas feministas. O feminismo é um movimento construído em volta da libertação de mulheres, e é um movimento dirigido por mulheres. Críticas feministas do modelo de identidade de gênero temem que se a mulheridade for reduzida à autoidentificação nós perderemos a habilidade de definir ser mulher como um conjunto de experiências e realidades político-sociais compartilhadas.

Embora eu tenha preocupações sobre essas críticas, parece óbvio para mim que nós precisamos de uma noção de mulheridade para nos organizarmos e essas preocupações estão fundadas em medo genuíno de que possamos perder essa noção. Mais tarde nesse artigo, eu sugerirei como nós podemos construir uma concepção de mulheridade sem o apelo para identidade.

Sexo Cerebral

Um argumento um pouco menos comum (mas ainda ocasionalmente utilizado) é o argumento que mulheres trans têm cérebros de mulheres e são portanto de alguma forma fisiologicamente mulheres. Esse argumento contesta a estabilidade do sexo argumentando que alguém pode ter um “cérebro feminino” tendo um “corpo masculino” mas acaba por falhar em prover uma justificativa sólida para a inclusão trans, e reitera noções nocivas de gênero e sexo.

O conceito de sexo cerebral é simplesmente falso. A maioria dos estudos científicos de renome falhou em demonstrar diferenças significativas na anatomia cerebral entre homens e mulheres. Um estudo de 2015 da Universidade de Tel Aviv analisou varreduras cerebrais de quase 1500 indivíduos e concluiu que apesar de algumas diferenças de tamanho em certas regiões do cérebro baseadas no gênero, eles não puderam separar os cérebros em grupos masculinos ou femininos distintos.

Adicionalmente, não existe evidência que as diferenças de tamanho regionais que alguns estudos observaram resultam em uma estável percepção de identidade masculina ou feminina. Sendo assim, nós não podemos concluir que sexo cerebral provem uma razão biológica de que mulheres trans são “mulheres de verdade.”

Além de ser uma reflexão incorreta do consenso científico contemporâneo, a ideia de sexo cerebral é ativamente nociva e fundamentada em noções perigosas de essencialismo biológico. Ao argumentar que mulheres trans se identificam ou se comportam como mulheres por causa de sua estrutura cerebral, aqueles que recorrem ao “sexo cerebral” reforçam todo um conjunto de teorias antifeministas que dizem que mulheres têm processamento espacial, habilidades racionais, etc. inferiores em relação a homens. No geral, essa teoria e justificava para a inclusão assume que o sexo é imutável e capaz de explicar comportamentos de gênero, e vai contra décadas de análise feminista quanto ao caráter socialmente construído de tanto gênero e sexo.

Por essas razões, nós não deveríamos argumentar pela inclusão trans na base de sexo cerebral. Nós precisamos de uma teoria melhor para explicar a necessidade de inclusão trans.

Repensando “Mulher”

A fim de construir um argumento mais convincente para a inclusão trans, nós devemos primeiro entender exatamente o que os conceitos de “mulher” e “mulheres” significam, e como podemos definir mulher de modo a não abandonar uma identidade para feministas se organizarem em torno e nem construir uma identidade que exclua algumas pessoas que têm razões genuínas para serem incluídas na luta feminista.

Sem ficar teórica demais, quero sugerir que o grupo de pessoas que chamamos de “Mulheres” não precisa ser sinônimo de um grupo com experiências inteiramente idênticas. Afinal, as experiências de mulheres cis são variadas. A raça, classe e capacidades físicas de qualquer mulher cis irão mudar vastamente as formas de opressão social que ela enfrenta. Mulheres negras estão sujeitas a formas únicas de misoginia que mulheres brancas simplesmente nunca irão experienciar. Mulheres ricas estão imunes a algumas das piores e mais violentas formas de misoginia com base na classe social delas. Mulheres sem deficiência estão protegidas de toda uma gama de experiências de negligência médica e tratamento inadequado que mulheres com deficiência experienciam. É óbvio que as mulheres não têm todas as mesmas experiências, e que diferentes mulheres encaram diferentes opressões e formas de misoginia.

Apesar destas diferenças, nós ainda vemos mulheres se organizando juntas por libertação coletiva. Mulheres ainda encontram momentos de solidariedade, interesses compartilhados e motivos para lutarem juntas como mulheres. Só porque algumas mulheres não vivenciam certas formas de misoginia, não significa que elas não sejam mulheres. Só porque algumas mulheres vivenciam níveis maiores de misoginia, não significa que elas sejam mais mulheres do que qualquer outra. Quando analisamos as diferenças radicais entre as experiências das mulheres, começa a ficar claro que qualquer organização ou ativismo que seja feito por mulheres em nome das mulheres é, na verdade, uma coalizão que une pessoas com experiências radicalmente diferentes, mas metas em comum. Feminismo é sempre uma coalizão pronta.

Assim, nós podemos reconhecer que “mulher” e “mulheres” não são categorias que se referem a um grupo homogêneo, e mais importante, que entender o feminismo como uma coalizão política nos permite reconhecer diferenças entre várias mulheres se unindo por uma meta comum.

O reconhecimento de que o feminismo e todas as organizações em torno da mulheridade é uma coalizão não é novo, e nem sou eu a primeira a sugeri-lo. Feministas negras como bell hooks, Patricia Hill Collins, Kimberle Crenshaw, e muitas feministas de países colonizados como Chandra Mohanty, todas reconheceram que raça significa que não há uma experiência unificada em ser mulher, mas que mulheres podem querer formar alianças feministas apesar de suas diferenças porque elas têm metas que só podem ser atingidas trabalhando juntas.

Assim, quando analisamos as categorias de “mulher” e “mulheres”, nós percebemos que precisamos reconceitualizar estas ideias não como identidades estáveis e unificadas, mas como alianças que podem ser estrategicamente formadas pela libertação coletiva.

Uma Justificativa Materialista Para A Inclusão Trans

Agora que podemos ver as maneiras pelas quais a organização feminista em torno da mulheridade é sempre uma coalizão política, quero apresentar um argumento sobre por que as mulheres trans deveriam ser incluídas nessa coalizão. Simplificando: as mulheres trans devem ser incluídas na coalizão feminista porque compartilhamos algumas experiências de misoginia com mulheres cis, porque compartilhamos metas liberatórias com o feminismo e porque nossa exclusão torna o feminismo mais fraco.

É óbvio que as mulheres trans compartilham algumas experiências de misoginia com mulheres cis. Existem muitos casos que podem ser apontados aqui. As lésbicas trans são submetidas a tratamentos lesbofóbicos e misóginos por muitos terapeutas e médicos que apoiam a teoria da autoginefilia e argumentam que as mulheres trans que não são atraídas por homens não são de fato transexuais, mas sim fetichistas. Embora as especificidades sejam diferentes, essa é uma experiência semelhante às muitas experiências de lésbicas cis de serem informadas de que sua sexualidade é desviante e precisa ser reorientada. Além do mais, há uma altíssima presença de mulheres trans na prostituição, que é um fenômeno social particularmente marcado por gênero. Mulheres trans são submetidas a níveis alarmantes de violência por parceiros íntimos e de assédio sexual. As mulheres trans, simplesmente, experienciam muitas das mesmas formas de violência misógina que as mulheres cis sofrem.

Oponentes da inclusão trans frequentemente argumentam que as mulheres trans não passam pelas mesmas experiências que as mulheres cis, e que muitas mulheres trans que transicionam mais tarde na vida não tiveram uma vida inteira de serem submetidas à misoginia. Embora seja verdade que as mulheres trans não experienciam exatamente as mesmas formas de opressão (negação do acesso ao aborto, uso da gravidez como trabalho reprodutivo, etc.), isso não significa que não tenhamos lugar no feminismo. Afinal, as mulheres pobres experienciam formas de misoginia que as mulheres ricas nunca irão, mas as feministas reconhecem que suas experiências ainda derivam da dominação masculina e que elas podem ter o objetivo comum de derrubar o patriarcado. Como tal, não é relevante que as mulheres trans não passem por algumas formas de opressão, ou não tenhamos passado por toda a nossa vida, pois ainda enfrentamos opressões decorrentes da dominação masculina e compartilhamos a meta de acabar com o patriarcado.

Não é apenas importante o fato de que estamos sujeitas a algumas das mesmas formas de violência; é também de importância crucial o fato de que estamos sujeitas a essa violência por causa do patriarcado e da dominação masculina. A demanda por corpos trans na prostituição é impulsionada pelos desejos dos homens. A maioria das pessoas que assediam e abusam de mulheres trans são homens. A maioria dos médicos e psicólogos que nos maltratam são homens. Nós experimentamos a violência dos homens porque somos mulheres. Isto significa, naturalmente, que temos um interesse comum na derrubada da supremacia masculina e do patriarcado. Nossa libertação só pode vir através da destruição do patriarcado. Isso indicaria, é claro, que compartilhamos metas com o feminismo.

Quando começamos a pensar sobre a inclusão trans a partir dessa perspectiva, começamos a reconhecer que as mulheres trans deveriam ser incluídas no feminismo não por uma noção abstrata de identidade de gênero, ou porque nossa estrutura cerebral nos torna mulheres, mas porque compartilhamos experiências materiais e objetivos com outras mulheres. As mulheres, como classe, compartilham a experiência de serem moldadas nos tipos de pessoas que são exploradas, subjugadas e oprimidas pelos interesses e dominação dos homens como classe. Como diz Beauvoir, “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Mulher é então uma posição materialmente construída que emerge da luta de classes entre homens e mulheres. E as mulheres trans estão absolutamente em um lado dessa luta. O lado das mulheres. Compartilhamos a mesma posição de classe dentro da sociedade patriarcal e os mesmos objetivos da derrubada dos homens como classe dominante.

Mulheres também não são, sob uma perspectiva materialista, apenas pessoas que compartilham uma anatomia ou características sexuais semelhantes. A feminista materialista Monique Wittig explica que o sexo não é uma divisão que ocorre naturalmente, mas que é uma justificativa para a construção de mulheres como um grupo de corpos exploráveis. “Uma análise feminista materialista mostra que aquilo que nós consideramos causa e origem da opressão é somente a “marca” que o opressor impõe sobre os oprimidos: o “mito da mulher” com suas manifestações e efeitos materiais nas consciências e nos corpos apropriados das mulheres.” Assim, ser mulher não é ter um certo corpo, não é ter sido sempre uma mulher, não é ter experiências de violência idênticas. É ser um membro da classe oprimida e explorada pelos homens como classe. Sob tal paradigma materialista, a necessidade de incluir mulheres trans no feminismo é óbvia.

Motivos para preferir essa justificativa

Tenho argumentado que deveríamos reconceituar o feminismo não como construído em volta de um conjunto de experiências ou anatomia compartilhadas, mas como uma coalização entre aquelas que compartilham certas experiências de opressões por homens, e que tem por objetivo a destruição do patriarcado. Concluindo, quero prover três motivos pelos quais eu acho que essa é a justificativa adequada e preferível para a inclusão de pessoas trans.

Primeiro, a exclusão das mulheres trans prejudica o feminismo. Excluir as mulheres com experiências variadas significa que aquelas que estão teorizando e trabalhando para a libertação das mulheres estão de fato excluindo perspectivas importantes. bell hooks argumentou que a obsessão feminista branca e a decepção com a inclusão das mulheres no local de trabalho poderiam ter sido evitadas pela inclusão de mulheres negras na organização feminista. Afinal, as mulheres negras passaram anos no mercado de trabalho e já sabiam que a inclusão na força de trabalho não era suficiente para a libertação. Da mesma forma, mulheres trans podem atestar de maneira única sobre os perigos do essencialismo de gênero e as noções estáticas de identidade. Nossa ausência é uma perda de conhecimento para o feminismo.

O segundo motivo pelo qual penso que é preferível uma justificativa materialista para a inclusão trans, é que ela não depende de um conceito essencialista de mulheridade. Em vez de argumentar que as mulheres são definidas por uma essência compartilhada, esse argumento deixa espaço para reconhecer as diferenças que as mulheres têm e para entender a mulheridade como uma coalizão entre pessoas com experiências radicalmente diferentes. Como resultado, essa abordagem para a inclusão trans evita as armadilhas tanto da identidade de gênero quanto dos argumentos de sexo cerebral para inclusão.

O terceiro e último motivo pelo qual devemos preferir essa justificativa é que ela situa “mulher” como uma categoria útil para a organização política. Podemos entender a mulheridade como uma coalizão, no entanto uma que compartilha algumas experiências e alguns objetivos. Não a transformamos em um termo sem significado, mas, pelo contrário, fazemos dela um termo que permite inclusão mais expressiva. Essa justificativa para a inclusão de pessoas trans permite um entendimento sobre o conceito de “mulher” que, ao mesmo tempo, não o torna sem significado e nem o define tão estritamente, de forma a excluir e ignorar diferenças. Mas, essa teoria reorienta a mulheridade para uma questão de solidariedade.

Eu espero que esse artigo tenha sido uma intervenção útil nos debates do feminismo contemporâneo sobre inclusão trans. Tenho forte esperança de que aquelas que apoiam a inclusão de mulheres trans usarão as justificativas apresentadas aqui no lugar das noções de identidade de gênero ou sexo cerebral. Estou satisfeita em ver o tema da inclusão trans progressivamente enfatizado em espaços feministas; só espero que consigamos justificar e defender melhor essa ênfase.

Esse artigo é uma tradução autorizada de um texto de Alyson Escalante. Você pode ler o texto original aqui: https://medium.com/@alysonescalante/how-we-talk-about-trans-inclusion-matters-75e1c6fce5dc em inglês.

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