with all of my dreams unfit for a day

Rael
3 min readMay 6, 2023

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La reproduction interdite, de Magritte (1937)

foi diante desse espelho em um sonho que algo se manifestou para que meu reflexo enfim surgisse. um momento de virada — latente e manifesta — , cujos efeitos estão em curso até agora.

Espelho no banheiro do consultório da minha analista (Maio/2023)

passei alguns meses tendo sonhos com teor semelhante: há um espelho e eu estou de frente para ele, só que o reflexo é puro vazio, borrão incompreensível. não tem rosto, não tem eu. o mesmo sentimento é imperioso: o de não estranheza, familiaridade. bem, ciente de que o inconsciente desconhece a palavra não e que também o sentido conhecido das palavras não está dado, podendo vir a significar exatamente seu oposto, estou obrigatoriamente diante do justo estranho e infamiliar que me habita, que diz desse próprio movimento de não reconhecer possuir um rosto, de não ter um contorno. ora, só no mundo dos sonhos pra acontecer uma presepada dessas, não é? todo espelho reflete alguma imagem, certo? nesse caso, o meu reflexo na vida em vigília é que me trazia — e ainda traz — problemas.

ouvi dizer que repetimos para aprender a não repetir mais, talvez seja uma via de se pensar. a repetição pode dizer de um acaso, da produção de algo da ordem de uma diferença. em outro momento, sonhei que estava no banheiro do consultório onde faço minha análise. a sala de espera parecia mais um palácio, mas o banheiro era exatamente como na foto. as luzes estavam apagadas, eu me olhava no espelho. de repente, estou com uma vela em formato de tridente nas mãos, cujos pavios eram feitos de algodão. “sozinhos”, os pavios pegam fogo e enfim eu me reconheço no reflexo do espelho. e aí a estranheza onírica se instaura: quem é essa pessoa que eu tanto evito reconhecer? e que agora em caráter inescapável, demanda uma resposta, demanda um certo olhar que por diversas vezes fora postergado, sabe-se lá porquê. minha analista me remete ao meu filme favorito (sem saber) e à minha cena favorita dele: a de um vestido que pega fogo sozinho e que demanda um certo olhar também.

esse sonho só foi possível depois de uma intervenção que fez toda a diferença, tenho certeza disso. não é à toa que se diz que sonhamos para o analista. eu jurava que ia surtar, me fragmentar em diversos pedaços, implodir, perder o absoluto controle. minha analista me conteve, não me deixou cair nesse abismo em mim, reiterando com veemência que eu possuía um rosto, um contorno. esse significante realmente provocou alguma coisa. a cisão psíquica é inevitável, mas ela não precisa significar uma constante e insuportável invasão. após essa sessão eu sonhei com o meu reflexo. o acaso é produzido, quase que artesanalmente. mas isso não significa que o jogo de olhar/ser olhada não implique em dificuldades e em atribuições incessantes de sentido. não tem escapatória da relação com o Outro.

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Rael

psicólogo e psicanalista. traduzo algumas coisas. sylvia plath e ethel cain 24/7