Cidadania não é favor, é dever.

Turma do Jiló
4 min readNov 8, 2019

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Carolina Videira [1]

Julia Cachapuz [2]

Estar diretamente inseridos nos debates acerca da inclusão social nos possibilita analisar o meio em que vivemos e, também, fazer inúmeras críticas a respeito dele. Nós da Turma do Jiló escutamos relatos, quase diários acerca da falta de cidadania, preconceitos, mas, principalmente, sobre a falta de informação que uma boa educação inclusiva pode fornecer.

O que venho contar hoje é bastante corriqueiro e ocorreu mais precisamente no último domingo, durante um almoço de família no clube.

Para quem não sabe, vou contextualizar: sou mãe de duas crianças, uma de 11 e outra de 8 anos.

O mais velho tem uma síndrome rara que o impede de andar e falar. Portanto, meu filho é uma pessoa com deficiência. Além disso, adora assistir futebol, andar de bicicleta (com as suas devidas adaptações, é claro), sendo, também, um dos maiores fãs de brigadeiro que já conheci. A deficiência é só uma parte de quem ele é e de como vive. Isso não o torna menos humano do que qualquer outro indivíduo parte da sociedade.

Dentre inúmeras experiências as quais vivencio junto de minha família, e pelos relatos da comunidade atendida pela Turma do Jiló, a mais corriqueira é sentir a pena das pessoas de fora quando encontram conosco. Desde os olhares piedosos, cabeças baixas, demonstrações de espanto, até a maneira como falam, todos transbordam compadecimento, como se fôssemos sobreviventes de uma grande tragédia, ou algo do gênero.

Infelizmente isso é um padrão. E precisa acabar.

Retomando a situação, estava almoçando com a minha família e uma senhora que observava meu marido brincando com o João no colo acabou se comovendo com a cena. Ela se levantou de onde estava e veio até nossa mesa parabenizar o pai do meu filho por ser um bom exemplo de figura paterna.

“Eu queria te dar os parabéns! Não podia deixar de falar como você é um pai especial” disse ela.

Acredito que as intenções dessa senhora — e as de cada uma dessas pessoas que repetem esse padrão de compadecimento — sejam de fato as melhores. No entanto, não devemos deixar de nos questionarmos: Parabéns pelo quê? Por ser um bom pai? Por ser responsável? Por cuidar decentemente do seu filho? Parabéns por quê?

Isso não incomoda vocês?

Por incrível que pareça, isso chateia quem está aqui, deste lado, escutando essas frases.

A partir de uma breve reflexão, conseguimos enxergar além e atentar para o fato de que todas essas atitudes são, nada mais, nada menos, do que a falta de uma base educacional inclusiva.

Quando alguém me para afim de comemorar a minha maternidade exemplar, imediatamente compreendemos que não é natural uma criança com deficiência frequentar os espaços comuns sem chamar atenção. Toda vez parece uma grande celebração da presença dela, como se fosse vencedora pelo simples fato de sair de casa. Novamente gostaria de lançar um questionamento: você, que é uma pessoa sem deficiência, comemora a sua saída de domingo à tarde?

Durante o século XX, Pierre Bordieu[3], grande sociólogo francês, traduziu essa forma de constrangimento que sentimos como “violência simbólica”. Ou seja, uma forma de agressão gerada a partir do encontro entre quem a sofre e quem a pratica, entretanto, tudo é feito de modo inconsciente, já é automático, incluído na forma como somos criados. Congratular meu marido por sua ótima paternidade pode ter sido uma atitude moldada nas mais puras intenções, todavia, não deixa de ser traduzida como um exemplo nítido de violência simbólica.

Esse tipo de agressão se torna muito mais danosa quando situado em questões de raça, gênero, etnia, religião e classe social.

Dentro dos trabalhos desenvolvidos pela nossa OSC, tentamos ao máximo esclarecer esses entraves aos educadores das escolas atendidas pela Turma a partir de inúmeras aulas pertencentes ao “Curso de Desenvolvimento Profissional para Professores”. Através de uma implementação intensa da educação inclusiva, a diversidade deixa de ser algo tratado como “especial” e passa a ser encarada como algo normal à sociedade. O tempo todo, caminhamos a fim de eliminar esses preconceitos que, querendo ou não, são pedras no sapato de quem sofre na pele.

Para além da discussão acerca do preconceito, gostaríamos de adentrar um outro espaço que fica evidente ao refletirmos acerca de todas as pautas levantadas até então: a normalização da intolerância.

Que surreal, não? Sermos parabenizados por sermos pais e mães responsáveis. Como se isso fosse algo de outro planeta. Sermos parabenizados por sermos humanos e cidadãos. Acredito que esse seja o ponto que resume toda a discussão: estamos vivendo como se praticar cidadania não se enquadrasse nos nossos deveres, mas sim em um privilégio alheio aos comportamentos que deveriam ser regra.

Estamos tão acostumados a presenciar comportamentos agressivos, somos tão expostos a violência em absolutamente todas as áreas da vida humana, que, ao invés de nos chocarmos com a brutalidade, nos chocamos com as boas maneiras.

Como bem idealizou Hannah Arendt[4] durante o século XX, a massificação da sociedade é tão agressiva e rápida que nos tornamos indivíduos incapazes de realizar julgamentos morais, simplesmente aceitamos o que nos é imposto sem levantar questões. Seguimos normalizando violência e nos espantando com a cidadania como deve ser.

Face a todas essas problemáticas, a nossa Turma enxerga a educação inclusiva como a saída para o fim de todo o tipo de violência encorajada por “pré conceitos”. Enxergamos a inclusão social como a melhor ferramenta para o fim dessas situações constrangedoras que colocam pessoas, tão humanas quanto eu ou você que está lendo este texto, em cheque. Mas acima de tudo, educar para trazer à luz a ideia de que cidadania não é favor. Cidadania é dever.

Referências:

[1] Empreendedora Social, Mestre em Neurociência, Especialista em Gestão das Diferenças e Práticas Inclusivas, Presidente da Turma do Jiló, Coodenadora da Pós-Graduação de Educação Inclusiva do Instituto Singularidades.

[2] Estudante de Jornalismo, estagiária da Turma do Jiló, Escritora apaixonada.

[3] BORDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. In: ____ A violência simbólica: um constrangimento através do corpo. P. 137–139. Rio Grande do Sul: Educação&Realidade, 20(2): 133–184. Jul./Dez. 1995

[4] ANDRADE, Marcelo. A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação.

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Turma do Jiló

A Turma do Jiló é uma associação sem fins lucrativos que visa implementar e garantir a Educação Inclusiva dentro de escolas públicas.