Sobre promessas e lições de liderança no cativeiro

J. Almança
11 min readApr 15, 2019

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Quando discutimos exemplos de liderança e resiliência, vemos na Bíblia o relato da história de José, filho de Jacó/Israel (Gênesis 37–50). Permita-me fazer primeiramente um resumo sobre a vida de José conforme as Escrituras até assumir o posto que lhe foi revelado nos sonhos.

A Bíblia nos mostra que José era o mais novo da família de 12 irmãos. Apesar de ser o favorito do pai (e da mãe dele), pela perspectiva da época, isto não significava muito na questão de herança ou poder. Em linhas gerais, primogênitos recebiam uma benção maior e quanto mais velho, mais ‘direitos’ — toda vez que isso não era seguido, era tratado como exceção, inclusive nas Escrituras — vide Jacó e Esaú, Efraim e Manassés, etc). Demonstrava desde já ser responsável, fiel e obediente ao seu pai. Além de ter uma túnica colorida que o diferenciava dos irmãos gerando ciúmes, José era também um sonhador. Em seus sonhos e revelações, ele via que seria grande, pois os irmãos e pais se prostrariam perante ele (Genêsis 37:1–11).

Aos 17, os seus irmãos motivados por ciúmes planejam matá-lo. O primogênito, Rúbem, temeroso das consequências dos atos, tenta apenas dar um susto em José, o lançando em um buraco. Ao voltar para buscá-lo, descobre que os irmãos o venderam para alguns mercadores de escravo. Desesperado, ele cria um plano — suja a roupa de José com sangue de animais e conta ao pai que José morreu (Gênesis 37:23–36). Os mercadores descem ao Egito e José é vendido como escravo a Potifar, um oficial de Faraó e capitão da guarda. De filho preferido e sonhador, torna-se escravo.

Durante o período como escravo, José ganha a confiança e se torna o administrador dos bens de Potifar, quando este percebe que “Deus estava com José e o fazia prosperar” (Gênesis 39:3–4). Quando José adquire uma posição de alta estima, ele é testado pela mulher de Potifar que tenta o seduzir de diversas formas. Firme em sua postura, ele nega os avanços e, por este motivo, ao fugir de um dos avanços mais ousados, é acusado de estupro e é lançado na cadeia em que “os prisioneiros do rei eram colocados” (versículo 20). Quando a situação parecia melhorar ao assumir um posto de importância, o seu compromisso com Deus e com o seu senhor o fez ter uma postura que o colocou em uma situação ainda pior — um prisioneiro. Mas na cadeia, José também caiu nas graças do carcereiro e se tornou o “gerente” da prisão (Gênesis 39:21–23).

Em Gênesis 40, desde que a história de José começou a ser relatada, é a primeira vez que ele usa o dom de interpretar os sonhos para ajudar outros e não sobre si mesmo. Ao se deparar com o padeiro e copeiro do rei cabisbaixos, ele se aproxima para ver o porque eles estão tristes. Eles informam que é porque tiveram sonhos mas não sabem como interpretá-los. Ao ouvir os sonhos, ele diz que o copeiro seria restaurado, mas o padeiro seria enforcado (v. 21 e 22). Por fim, ocorre como José interpretou.

Dois anos depois, o Faraó tem um sonho. Perturbado por não saber o que significa, convoca todos os magos do Egito e ninguém consegue interpretar o sonho. O copeiro então se lembrou de José (Gênesis 41:9) e relata ao Faraó como ele interpretou o seu sonho de forma correta. José é trazido depressa — mas há tempo de trocar de roupa e se barbear. Entre os versículos 15 e 32, o Faraó relata seus sonhos (7 espigas boas x 7 espigas mirradas, 7 vacas gordas x 7 vacas magras) e José os interpretam revelando que haveria 7 anos de fome no Egito. A intepretação é decorrente do dom divino, mas José segue e em Gênesis 41:33–36, propõe um plano ao Faraó de como lidar com a fome:

33 “Procure agora o faraó um homem criterioso e sábio e ponha-o no comando da terra do Egito. 34 O faraó também deve estabelecer supervisores para recolher um quinto da colheita do Egito durante os sete anos de fartura. 35 Eles deverão recolher o que puderem nos anos bons que virão e fazer estoques de trigo que, sob o controle do faraó, serão armazenados nas cidades. 36 Esse estoque servirá de reserva para os sete anos de fome que virão sobre o Egito, para que a terra não seja arrasada pela fome.”

Em Gênesis 41:41, o Faraó vendo não apenas o espírito de Deus em José mas também o plano que lhe pareceu bons aos seus olhos, nomeia José como o governador (vizir) do Egito, o seu “segundo”. Após receber as benesses e a honra da posição, José se empenha em trabalhar de novo, como vemos em Gênesis 41:46: “ele se ausentou da presença do Faraó e foi percorrer todo o Egito”.

Aos 30 anos, ele atinge a maior posição de poder humano (abaixo do Faraó que era visto como divino). José foi instrumental para a sobrevivência do povo de Israel em seus primeiros passos, na mudança ao Egito para escapar da fome que assolava a região.

Há algumas lições importantes que a história de José nos traz, mas a linha principal que mais me impressiona é como o relato nos comunica um equilíbrio claro entre, de um lado, a sua disposição e atitude de agir e, do outro lado, a provisão e manifestação divina. Ouvi uma vez o Pr. Henrique Vieira dizer algo nas linhas de que “tornar-se cristão pode acabar dificultando a capacidade da pessoa seguir a Jesus, pois muitas vezes ao invés de fazer algo, ela opta por esperar, transferindo a responsabilidade para Deus atuar ao invés de se esforçar e agir”. José nos mostra como não cair nessa armadilha.

Sobre sua postura, percebemos que José nunca deixou que seus sonhos ou visões o impedissem de fazer o trabalho do dia, de cumprir a função que lhe foi assignada.

Seja como entregador de recados do pai, escravo, prisioneiro ou governador, José demonstra a diligência de trabalhar sem perder o foco. A sua vocação de ser líder era traduzida na sua postura de trabalhar, inspirar confiança e, por fim, liderar — outros escravos, outros prisioneiros ou uma nação. Não sabemos os caminhos de Deus para realizar o que nos revelou, portanto cabe a nós ser atuantes e fazer “com todas as nossas forças, tudo o que vier às mãos para fazer” (Eclesiastes 9:10) e “como se estivéssemos fazendo sempre para Deus” (Colossenses 3:23).

Na sua jornada até ser lançado na cadeia, José entendeu 3 características sobre as oportunidades que Deus prepara — e, após a interpretação do sonho do copeiro na cadeia, ele aprendeu a quarta característica. Vejamos:

1. Bastava um encontro para que a sua vida mudasse — seja um encontro com os mercadores de escravo, um encontro com a mulher do seu senhor, um encontro com os servos do Faraó, um encontro com o próprio Faraó;

2. Estes encontros sempre ocorrem de forma inesperada e/ou repentina, portanto não se deve viver antecipando a oportunidade, mas apenas na constância do seu compromisso.

3. Estes encontros sempre exigem sacrifício: seja da sua túnica colorida, da sua posição de status na casa do seu senhor ou até do seu próprio conforto

Em Gênesis 40:14, após interpretar o sonho do copeiro, José pede para que ele lembre-se dele quando sair e fale a seu respeito (de como foi injustamente preso) ao Faraó. Ele tentou se livrar da situação tentando usar as próprias palavras e esforços, aproveitando a oportunidade criada pela ação decorrente do dom recebido. Ou seja:

- José sabia que apenas na presença de Faraó seu caso seria ouvido e revertido. Ele sabia que esse encontro mudaria o curso da sua história (característica #1).

- José sabia que o copeiro tinha contato com o Faraó e que poderia gerar essas oportunidade do encontro. Foi algo repentino (característica #2).

- Apesar de ser o líder, José sabia que a cadeia não era seu lugar, não só por ter sido preso injustamente mas por causa dos seus sonhos. Apresentar-se ao Faraó poderia significar que ele seria condenado ou morto. Mas ele sabe que sacrifício era necessário (característica #3).

Pensando nas três primeiras características, parecia racional tentar aproveitar essa oportunidade. Alguns poderiam até pensar que era a forma como Deus apresentou a chance de ele receber justiça. Nesta situação, ele estava apto a ser capaz de aproveitar as oportunidades, mas para de fato aproveitar de forma completa, não basta fazer o certo, tem que ser na hora certa, no momento certo. Pela misericórdia de Deus, o copeiro se esquece de José e ele segue na prisão por mais dois anos (no início de Gênesis 41). Após estes dois anos adicionais na cadeia enquanto ele espera a oportunidade de falar ao Faraó, ele aprende a quarta característica:

4. Estes encontros ocorrem para que a vontade de Deus seja realizada: o objetivo de Deus de colocar José na presença do Faraó não era para libertá-lo da cadeia ou justificá-lo — Deus o chamou para ser o líder do Egito para que isso pudesse gerar salvação para a nação de Israel. Para Israel sobreviver, o Egito teria que sobreviver também.

Se o copeiro tivesse feito como José pediu e se lembrado dele quando saiu da cadeia para falar ao Faraó, ele provavelmente teria sido liberto e, quem sabe, teria se tornado eventualmente o líder da cozinha do palácio. A vontade de José seria realizada, mas provavelmente tanto as nações do Egito e de Israel teriam perecido na fome.

Precisamos entender que há situações em que Deus nos faz ser esquecidos para que sejamos lembrados na hora devida.

Quando José é chamado às pressas para entrar na presença de Faraó, ele não sabe o motivo. Mas ele aprendeu que não está lá para buscar sua vontade. Faraó apresenta o seu sonho, José interpreta de forma correta. Ele fez o que lhe foi pedido e sabia que por ter ajudado ao Faraó, teria a abertura para pedir algo. Se José só quisesse buscar a sua vontade, ou seja, ser liberto ou ser justificado, ele poderia ter usado a situação para demandar justiça contra a mulher de Potifar — ele poderia ter pedido o que quisesse. Mas porque ele aprendeu a quarta característica, ele usa a abertura que a revelação do sonho lhe proporcionou para propor um plano para gerenciar a fome para que o Egito sobreviva e, assim, Israel também — pois essa era a vontade de Deus.

Importante observar que José usou de todas as experiências que teve e as pessoas que conheceu (o famoso “networking” que tanto se ouve nas empresas) para desenvolver sua estratégia e pautar suas ações.

José sabia que para atingir seu objetivo, não bastava revelação e inspiração divina, mas também era necessário conhecimento do reino, do povo e de liderança.

No tempo que ele ficou como escravo de Potifar e na cadeia, ele foi exposto e aprendeu o que o povo do Egito buscava — tanto na visão dos escravos que interagiam com as partes baixas da sociedade egípcia, como da alta sociedade que era quem Potifar se relacionava e com quem os prisioneiros interagiam. José aprendeu como o Egito funcionava. A interpretação do sonho de Faraó veio do dom de Deus, mas o entendimento para formular o plano de nomear supervisores para colheita de comida, montar celeiros e estruturar o estoque e venda veio da vivência dele no Egito. No exemplo de José, para que nós realizemos os sonhos e conquistemos as promessas de Deus, não basta apenas os dons e inspiração divinos mas temos que estar inseridos de forma ativa em nosso ambiente, para que nossas ações não traduzam apenas a nossa conexão com Deus, mas também nossa conexão com os outros.

Veja bem, de forma alguma estou fazendo alusão à uma visão pós-moderna de que basta usar suas próprias forças e dons para atingir seus sonhos, que basta “mentalizar” que tudo dará certo.

Aprendemos também com o relato de José que a provisão e manifestação divinas são pontuais, porém são indispensáveis.

Se não fosse o dom divino, José poderia ter sido um bom líder de escravos e prisioneiros, mas nunca teria a oportunidade de ter entrado na presença de Faraó. Foi a forma como José usava o dom que gerou a oportunidade de se apresentar perante o líder mais poderoso do mundo. Percebemos a relevância do dom divino pois a história de José sempre foi povoada por sonhos e revelações — começando pelos seus, mas eventualmente se concentrando nos outros ao seu redor (copeiro, padeiro, Faraó). Todo dom que vem de Deus impacta primeiro a nossa própria vida antes de se expandir e começar a impactar os outros.

Por fim, José demonstrou e desenvolveu um traço indispensável para quem almeja ser um líder segundo Deus — a vocação de ser “o segundo”.

José naturalmente entendeu que mesmo que tivesse autoridade, o poder não emanava dele. Quando jovem, o poder era do seu pai. Como escravo, o poder era de Potifar. Como prisioneiro, o poder era do carcereiro. Como governador/vizir, o poder era de Faraó. Mesmo que você sente no topo da cadeia alimentar, seja o dono da empresa, CEO de uma grande corporação, presidente de um país, temos que sempre entender que o poder não é nosso — agimos na autoridade outorgada por aquele que tem o poder. O máximo que seremos é sempre o segundo. Arrisco dizer que Deus apenas direciona pessoas para esses cargos de liderança quando a vocação de ser segundo está estabelecida e, caso seja esquecida, Deus retira a posição — vide o caso de Saul em I Samuel 16. O que pauta nossas vidas é João 15:5 — entendemos que “sem Ele, nada podemos fazer”.

Este entendimento é crucial não apenas para atingirmos o sonho, mas para terminarmos nossa vida bem. A Bíblia pouco relata sobre a vida de José após meados dos seus 40 anos (durante os 14 anos em que executou o plano proposto ao Faraó e todo o cumprimento do que havia sonhado, incluindo a restauração e preservação da sua família). José morreu com 110 anos (Gênesis 50:26) e o fato de ter sido embalsamado e colocado em um sarcófago, indica que morreu com alto status dentro do Egito. Fiel até a morte.

Notas:

1. Sobre a interpretação do sonho de José sobre as 11 estrelas, o sol e a lua se curvando perante ele: considerando que Raquel faleceu antes de ver José de novo e que Jacó nunca de fato se curva (no relato Bíblico há apenas o relato dos irmãos se curvando), talvez a interpretação de Jacó tenha sido equivocada. Olhando para o panteão Egípcio, o sol era visto como deus criador, a lua como deusa da vegetação e cria-se que os céus/estrelas originaram os deuses. De certa forma, talvez o sonho fosse para revelar que a nação do Egito se curvaria perante ele.

- Isto é apenas uma ideia pessoal com base na leitura, não tenho estudo ou revelação suficiente no momento para defender essa hipótese.

2. Segundo as escrituras, José tinha 30 anos quando assumiu o posto maior do Egito — algumas pessoas tentam usar esse fato para argumentar que José foi uma exceção em posição de alta hierarquia tão novo. Outros podem mencionar que o “sofrimento” de José não foi tão grande quanto os dos patriarcas que vieram antes dele, pois foi abreviado ‘cedo’. O fato é que a expectativa de vida do Egito antigo era cerca de 30 anos, ou seja, José foi nomeado líder quando já estava no “fim de sua vida” nos parâmetros da época na região.

https://redhistoria.com/la-esperanza-de-vida-en-el-antiguo-egipto/

https://veja.abril.com.br/ciencia/governantes-do-antigo-egito-sofriam-de-desnutricao-e-tinham-expectativa-de-vida-de-30-anos/

Imagens

José e a túnica colorida: https://images.app.goo.gl/XW4UQC3nxeZyt2fv6

José governador: https://images.app.goo.gl/Qih6ihVwW7v9v4kVA

José no cárcere: https://images.app.goo.gl/QFA2LkFHRmUau79d8

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J. Almança

Construindo uma vida não-cartesiana. // Building a non-cartesian life.